sexta-feira, 26 de outubro de 2007

AJUDA À RÚSSIA


Minha crónica do Público de hoje:

Abriu ontem, com pompa e circunstância, no Palácio da Ajuda, uma exposição sobre os czares russos: “De Pedro, o Grande, a Nicolau II - Arte e Cultura do Império Russo nas Colecções do Hermitage”. A mostra insere-se num conjunto de três que visam a instalação em Lisboa de um pólo permanente do Museu Hermitage, de São Petersburgo, a cidade fundada em 1703 por Pedro, o Grande.

São bem conhecidas as dificuldades por que os russos passaram quando se tornaram “novos pobres”, dificuldades bem patentes nos seus museus, mas agora com a alta do petróleo estão bem melhor. Poderia pensar-se que a Federação Russa nos está a ajudar, enriquecendo-nos culturalmente ao facultar os seus excelentes tesouros. De facto, é ao contrário: é Lisboa que, armada em “nova rica”, ajuda Moscovo. A exposição, que custou 1,5 milhões de euros, é paga integralmente por nós, quer com dinheiros públicos através do Ministério da Cultura e do Turismo de Portugal quer com dinheiros privados através do Millennium BCP (é com o dinheiro dos clientes, que também foi dado ao filho do fundador) e da Portugal Telecom. Assim como vão ser pagas integralmente por nós as próximas exposições e, provavelmente, a sucursal lisboeta do Hermitage. Eu não sei se somos suficientemente ricos para pagar tudo isso. A Inglaterra, que é mais rica do que nós, acaba de anunciar, por falta de dinheiro, o fecho do pólo do Hermitage em Londres. A questão que se coloca é legítima: mesmo dando de barato que dispomos de meios abundantes (algo que levanta muitas dúvidas a utentes de hospitais, reformados, alunos e professores), o retorno proporcionado pela contemplação dos luxos dos czares justificará o enorme investimento?

A minha resposta é clara: não. Por uma razão muito simples. Temos excelentes tesouros descurados aos quais devíamos atender em primeira prioridade. Por exemplo, no tempo de Pedro, o Grande, o rei D. João V mandou construir a Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra e o Palácio de Mafra, também contendo uma esplêndida biblioteca. O Estado português, se quisesse valorizar o nosso património cultural e levá-lo não só a todo o país como à Rússia e a outras partes do mundo, empreenderia um grande programa de conservação e digitalização dos fundos históricos das bibliotecas nacionais, com especial atenção para os nossos autores. Boa parte dos nossos livros antigos estão em estado lastimoso, roídos pela usura do tempo, e precisam de mãos carinhosas que os amparem. A digitalização é a moderna forma não só de levar a nossas casas os conteúdos do património escrito como também de preservar os originais. Os países mais avançados, como a Rússia, estão a avançar por aí.

E podia falar longamente das intervenções que urgem no nosso património físico. A porta da Biblioteca Joanina está em mau estado e boa parte do edifício não pode ser mostrada ao público. Tal como a Joanina, o Palácio de Mafra (que fecha às 17h) não tem condições para ser visitado por deficientes, para além de grande parte do seu espaço estar entregue aos militares. Há monumentos ao abandono: Em Agosto fui ao Santuário do Cabo Espichel e está uma ruína que mete dó. Podia também falar da gritante falta de meios dos nossos museus. No último domingo tive de sair do Museu Grão Vasco porque fechava à hora de almoço. E deixei de ir ao Museu Nacional da Ciência e da Técnica porque foi encerrado. Nem vou a Vila Nova de Foz Coa porque sei que não está lá o tão prometido museu. E podia ainda dizer que havia outras exposições para importar e que importam mais, como as de Washington e Berlim sobre os Descobrimentos.

«Quando os russos virem a exposição vão ficar muito satisfeitos com o carácter verdadeiramente espampanante que ela vai ter», disse ao «Expresso» Fernando Baptista Pereira, o comissário local. Eu irei ver, até porque estou curioso por saber como é mostrada a presença lusa na corte dos czares (Ribeiro Sanches foi médico de Catarina II em São Petersburgo), mas não sei se vou ficar satisfeito. Espampanante? O novo riquismo sempre foi saloio.

8 comentários:

Luís Bonifácio disse...

Você ainda está surpreendido?

Mas você não sabe que a classe dirigente (e talvez 80% da população) acha que tudo o que é estrangeiro é bom e o que é nacional é uma mer--
(Figo, Ronaldo, café delta e o vinho as excepções à regra)

Você não sabe que na cabeça dessa gente não existe património nacional? Como é que você quer mostrar aos estrangeiros uma coisa, que na cabeça dessa gente, não existe.

Se por acaso existe alguma coisa que possa ser considerada património, então tem de ser destruída, pois essas inteligências acham isso uma impossibilidade física.

Nota: O facto de o exército ocupar parte do convento de Mafra, contribui, e muito para a preservação do edifício.

Exemplo de "património" que dentre de em breve deixará de o ser:
http://novafloresta.blogspot.com/2007/09/partimnio.html

Carlos Medina Ribeiro disse...

«Temos excelentes tesouros descurados...»

O quadro de Júlio Pomar, que estava dado como perdido, e que afinal estava numa arrecadação do CCB...

Ralg disse...

"um grande programa de conservação e digitalização dos fundos históricos das bibliotecas nacionais[...]. Boa parte dos nossos livros antigos estão em estado lastimoso, roídos pela usura do tempo, e precisam de mãos carinhosas que os amparem."
Ainda me estou a rir com esta. Mesmo o projecto da Biblioteca Nacional Digital avança ao gosto dos directores! Bibliotecas em Portugal é para por os professores de castigo:)

Anónimo disse...

Se não fosse estar dado como perdido, esse quadro já tinha sido destruído, vendido ou pior ainda oferecido ao Hermitage por um acto de parolice da nossa classe política.

Venham mas é cerimónias de penacho, muitos pópós de alta gama, muitos bancos a perdoar dívidas (do filho do chefe do banco), que isso de património, tal como disse o grande Eça de Queiroz: " É uma seca! Uma verdadeira seca! "

Alfaómega

Luís Bugalhão disse...

é o resultado de termos um 'portugal dos pequeninos em bicos de pés'.
como presidimos à união europeia, e o presidente da federação russa vem visitar a nossa 'capital', temos que mostrar que aqui também é europa.
é também mais um resultado das esperanças defraudadas neste, e por este, governo do, enfim, engenheiro pinto de sousa: também na cultura estamos fartos de evoluir!
aliás, para esse senhor, o único défice que interessa é o do 'carcanhol', quando o cultural apresenta mais de três dígitos há séculos... mas que dizer. continuamos serôdios. é preciso é futebol, fátima e... fado rasca.

façamos o pouco que está ao nosso alcance para alterar este estado de coisas. o carlos fiolhais está a fazê-lo, denunciando mais este 'crime' de lesa pátria. bem-haja por isso.

Anónimo disse...

Meu Caro Professor: Em épocas de crise e/ou doença em suas casas os remediados conformam-se com o dito: vão-se os anéis e fiquem os dedos. Nós, como somos hoje um país que desonra a resposta de Pombal ao embaixador de Espanha, quando por ele ameaçado de uma possível invasão, curvamos a cerviz perante o estrangeiro entregando os anéis da fazenda pública (já estarão aqui contabilizados o recente aumento de impostos dos reformados?) e os póprios dedos dos pobres que se encarquilhem em posição esmolar. Aliás, já nada me espanta mesmo quando, para dar cobertura a despesas estatais faraónicas, nos mandam apertar o cinto. Pudera não! Quem o diz são os manda-chuva que usam suspensórios.

Anónimo disse...

Meu caro Carlos Fiolhais
Como de costume, esperei pelo jornal (que recebo 24 horas atrasado) para o ler. Nostalgias do cheiro a papel...
Alguém se terá lembrado de oferecer a Putin alguma da música de Marcos Portugal, que consta que chegou a ser mais apreciado na Rússia que o próprio Mozart? Ou uma ou outra das árias que Luísa Todi terá cantado durante a sua longa permanência na corte de Catarina, a Grande? Ou ao menos terão brindado com o verdelho do Pico ("Czar") que era um dos vinhos preferidos dos czares?
Qualquer dia não se irão apenas os anéis, como diz o Rui Baptista. Haverá que hipotecar os dedos.

Fernando Martins disse...

Peço desculpa pelo off topic mas poderiam falar no Cometa que se encontra agora visível, caro Doutor Fiolhais?

É que é tão raro poder desfrutar de tal espectáculo...

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