Um dos acontecimentos editoriais do ano foi a recente publicação entre nós do primeiro livro de Gary Larson. O livro – que vai contentar tanto quem o vai receber de prenda de Natal como quem o vai dar, que não deixará de o espreitar primeiro – é o primeiro livro de Gary Larson publicado em Portugal.
Quem é Gary Larson? Nascido em 1950, norte-americano e formado em comunicação, é actualmente um dos mais aclamados cartunistas mundiais. Durante quinze anos, de 1 de Janeiro de 1980 a 1 de Janeiro de 1995, publicou em 1700 jornais de todo o mundo (infelizmente nunca aqui, tanto quanto sei) engraçadíssimos desenhos da série “The Far Side”. Esta série com uma única tira desenhada de cada vez mostra o imensamente variado mundo da vida animal e a interacção dos animais com os humanos. O humor, por vezes a roçar o surrealismo, é fabuloso. Está, em geral, alicerçada em sólidos conhecimentos de biologia, embora a arte do desenho humorístico não seja de modo nenhum obrigada a respeitar a ciência. A admiração que os cientistas têm por Larson pode ser verificada do facto de se encontrarem muitos desenhos dele nos fabinetes e laboratórios. E também – e talvez principalmente – por duas novas espécies animais, um piolho e uma borboleta, terem sido baptizadas recorrendo ao nome de Larson.
Tal como nas fábulas de La Fontaine os animais de Larson falam. E dizem coisas que os humanos deviam escutar... A série, embora finalizada por decisão do seu autor que temia vir a repetir-se (fez o mesmo que o seu colega Bill Watterson, que interrompeu a sua série “Calvin e Hobbes” no pico da glória), mas encontra-se por aí sob a forma de vários livros em língua inglesa, dos quais se venderam milhares e milhares de cópias. Há um volume grande “The Complete Far Side”, saído em 2003 na Andrews McMeel Publishing. Também se encontram alguns desses cartunes na Internet, mas aí com maior dificuldade, uma vez que o autor é muito zeloso da sua propriedade intelectual e ameaçou, embora com muita piada, quem divulgasse os desenhos sem a sua expressa autorização (disse que os desenhos eram seus filhos e que, naturalmente, o pai se preocupava em saber por onde andavam os seus filhos). E há calendários, postais ilustrados e vário outros artigos de “merchandising” (ao contrário do que contece com os desenhos do “Calvin e Hobbes”, cuja comercialização fora dos jornais e livros está proibida pelo autor).
A obra que agora saiu, depois de um trabalho esmerado da editora Gradiva (controlado à distância e com atenção de pormenor pelo próprio Larson), intitula-se “Há um cabelo na minha terra!” e subinitula-se “Uma história de minhocas”. O original norte-americano data de 1998 e chegou ao topo do “New York Times”. O autor do prefácio é um cientista famoso, o norte-americano Edward O. Wilson, especialista em formigas, autor de teses polémicas como a da sociobiologia (explicação biológica do comportamento social) e a da “consiliência” (reunião dos saberes) e um grande apóstolo, nos últimos anos, da biodiversidade. A Gradiva fez sair ao mesmo tempo que o livro de Larson uma das últimas obras de Wilson, “A Criação”, em que este advoga um encontro entre ciência e religião.
O livro, com as ilustrações inconfundíveis de Larson, parece um livro de histórias infantis. Mas não é! É um livro para leitores de todas as idades. Inclusivamente, pode até ser perigoso deixá-lo em mãos muito infantis pois o cabelo de que fala o título – e esta revelação funciona já como um aviso à navegação – é o cabelo de uma senhora morta, que naturalmente é comida debaixo da terra pelas minhocas. Pois a recusa de uma minhoquinha a comer o cabelo que está no seu prato de terra vai fazer com que o pai-minhoca lhe conte uma história, que saberemos no fim ser verdadeira. Essa relato de ficção-verdade desmonta a ideia muito comum nas histórias infantis de que os animais são bons, que a Natureza vive na maior harmonia e que a Terra é o paraíso. Pelo contrário, ensina-nos, se o não soubermos já, que os animais têm tanto ou mais de malvado que de bondoso e que a Natureza é mais a guerra do que a paz (cada espécie vale-se de tudo e mais alguma coisa para assegurar a sua sobrevivência individual!) e que a Terra tem tanto de inferno como de paraíso. A moral é, assim, uma espécie de anti-moral: devemos tentar compreender o mundo, que é como é, e não da maneira que os contadores de histórias com bons finais gostavam que fosse. Se não compreendermos o mundo, podemos nós próprios não vir a ter um bom final. E mais não digo, porque já disse muito. Espero não ter diminuído ao leitor o prazer da leitura dessa autêntica lição de história natural, em páginas com pouco texto mas magníficas estampas a cores.
Apesar das várias mortes espalhadas por ela, a história do livro faz-nos aprender biologia e ecologia de um modo bem disposto. O livro é, além do mais, uma obra-prima do humor. Segundo Edward Wilson, no prefácio, o humor serve para “suavizar a nossa percepção da adversidade, colocando-a mum nível psicologicamente aceitável”. E acrescenta: “É uma reacção profunda e primitiva”. Esclarece, com base decerto na teoria da evolução, que vem do chimpanzé. E é uma obra-prima em defesa da biodiversidade. Continua Wilson: “Deixem a família de vermes comer a sua terra com orgulho. Precisamos todos uns dos outros, cada um no seu nicho específico...”
Este livro abre-nos o apetite para os cartunes do “The Far Side”, cheios de vacas e cobras, cães e gatos, protozoários e gorilas. Oxalá a Gradiva consiga também obter os direitos de publicação dos outros desenhos de Larson, pois se trata de um humor a que temos direito, um humor inteligente que nos faz pensar no sentido da vida.
O humor de Larson é tão formidável que corre o risco de não ser compreendido. Uma das histórias reais mais curiosas que aconteceram com Larson tem também a ver com cabelos. Foi um cabelo que apareceu não na terra, mas num desenho da série “The Far Side”, em que um gorila a catar outro encontra um cabelo louro e comenta: “Andaste a fazer investigação com a Jane Goodall?”. A referência era à famosa primatóloga e antropóloga britânica que tem dedicado a sua vida ao estudo dos primatas na Tanzânia. O Goodall Institute ficou com os cabelos em pé: achou que a piada era de mau gosto e escreveu imediatamente a Larson uma carta ameaçadora, pretendendo que o autor retirasse o cartune. Mas estava a ser mais papista que o papa, pois a própria Goodall, quando soube, fartou-se de rir. Os cientistas têm, na sua grande maioria, sentido de humor. Jane Goodall não se inibiu de escrever, a pedido do autor, o prefácio do livro “The Far Side Gallery 5”, contando a sua versão da história. Em voluntária contrapartida, Larson decidiu doar todos os direitos desse controverso cartune (alguns desles estampados em “t-shirts”) ao instituto patrocinado pela cientista. A cena mais engraçada ocorreu, porém, quando Larson visitou o Gombe National Park, na Tanzânia, no qual vivem alguns dos macacos estudados por Goodall. Um deles, mais impetuoso, atacou Larson, o que levou Goodall comentar com tanta oportunidade como gáudio: “Não sei como é que ele soube do cartune”.
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