domingo, 28 de outubro de 2007

Novos tratamentos para a SIDA

A SIDA, o flagelo dos nossos tempos, é causada por um retrovírus, o VIH. Os retrovírus são assim chamados porque o seu material genético é ARN e não ADN, necessitando de uma enzima, a transcriptase reversa (também conhecida como ADN-polimerase ARN-dependente), para realizar um processo de transcrição reverso, isto é, produzir ADN partir de ARN. Quando os retrovírus infectam uma célula, escravizam a maquinaria celular inserindo cADN (ADN complementar do ARN) viral no ADN da célula invadida através de uma enzima chamada integrase.

No caso específico do VIH, são invadidas células que expressam um receptor proteico denominado CD4: macrófagos, células dendríticas e os linfócitos T-auxiliar (também conhecidos como células CD4) - leucócitos que organizam a resposta do sistema imunológico às bactérias, infecções fúngicas e vírus . A ligação da partícula viral à membrana celular, nomeadamente à CD4, é proporcionada pela glicoproteína gp120 existente à superfície do envelope viral. A interacção inicial com o receptor promove uma mudança da estrutura da molécula gp120, de forma a expor o local de ligação a outros receptores, os receptores de quimocina CCR5 ou CXCR4 ou a proteína fusina, existente nas células T. Após ligação da gp120, há uma alteração estrutural da proteína viral transmembranar gp41 de modo a facilitar a fusão membranar com a consequente entrada do vírus na célula.

Uma vez inserido o cADN do vírus no material genético humano, este pode permanecer em estado de latência durante muitos anos. Quando activado, o cADN viral é transcrito em ARN que por sua vez usa a maquinaria celular para produzir (expressar) as proteínas virais que codifica. Estas proteínas são transcritas numa longa cadeia, todas ligadas, e é necessário cortar esta cadeia, o que é feito por uma enzima denominada protease.

As transcriptases reversas por vezes cometem erros na leitura da sequência de ARN, o que resulta no facto de nem todos os vírus produzidos numa célula infectada serem iguais. Os erros de transcrição traduzem-se em pequenas diferenças nas proteínas que constituem a membrana do vírus ou nas enzimas virais o que torna muito complicada a produção de uma vacina. De facto, as vacinas funcionam induzindo a produção de anticorpos que reconhecem sequências específicas das proteínas de superfície e se estas estão em constante mudança os anticorpos deixam rapidamente de ser efectivos.

Assim, os medicamentos actualmente disponíveis para o tratamento da SIDA actuam de forma a inibir passos específicos no ciclo de vida do vírus, nomeadamente a nível das três enzimas já referidas, a transcriptase reversa, a integrase e a protease, bem como a nível da entrada do VIH nas células, isto é, inibindo a fusão celular.


Os anti-retrovirais que actuam a nível da transcriptase reversa (Inibidores da transcriptase reversa, a bolinha vermelha no esquema) são bastante específicos, já que apenas os retrovírus possuem transcriptases reversas, mas veêm a sua acção dificultada devido à constante mutação desta proteína. Foram os primeiros a ser desenvolvidos e dividem-se em inibidores da transcriptase reversa nucleosídeos e não-nucleosídeos e funcionam impedindo a transcrição do ARN viral (a amarelo) em ADN (a azul).

Os inibidores da protease (a bolinha vermelha) são o segundo grande grupo de medicamentos e funcionam ligando-se às proteases (a tesoura no esquema) impedindo que elas cortem a cadeia proteica nas proteínas individuais necessárias à formação de um novo vírus.

Foi aprovado pela FDA há quinze dias o primeiro inibidor de integrase, que impossibilita a inserção do c-ADN viral (a azul) no ADN humano (a vermelho). O novo medicamento, Raltegravir (MK-0518, comercializado como Isentress TM), foi desenvolvido pela Merck e parece ser o medicamento mais potente já desenvolvido, sendo especialmente importante porque é eficaz contra vírus multi-resistentes.

Em 2003, o Laboratório Roche lançou o Fuzeon (enfuvirtide), o primeiro inibidor de fusão e também o primeiro anti-retroviral a agir antes da invasão pelo vírus VIH-1. Maraviroc, um antagonista do CCR5, está em ensaios clínicos de fase III; o inibidor de fusão de segunda geração TRI-999 está ainda em fase pré-clínica. Todos são peptídeos, os dois últimos derivados de uma parte (o domínio HR2) da proteína gp41, a proteína viral que recorta a membrana das células CD4 como a «agulha de uma máquina de costura».


Os tratamentos com inibidores quer de integrase quer de fusão são muito onerosos e são utilizados apenas contra vírus que desenvolveram resistência aos restantes medicamentos. Curiosamente, desde pelo menos 1996 que se sabe que derivados do ácido cafeico, os diCQA presentes em pequenas quantidades em inúmeras plantas - o ácido dicafeoilquínico no grão verde de café, por exemplo -, são inibidores potentes e específicos de integrase, mas, tanto quanto saiba, não foram ainda submetidos a testes clínicos. Recentemente foi descrita uma forma biológica de produzir estes químicos a partir do girassol, que os sintetiza como defesa contra o fungo sclerotinia sclerotiorum. Os cientistas da Universidade de Bona e do Centro de Estudos Europeus Avançados e de Pesquisas (Caesar) que descobriram o processo já patentearam o processo biológico e esperam descobrir qual o gene responsável pela biossíntese para o clonarem em bactérias e ser assim possível a produção de diCQAs da forma barata e em grandes quantidades que a extracção de plantas não permite.

Mas o panorama do tratamento da SIDA pode mudar em breve com o trabalho publicado na sexta-feira na Plos Pathogens e desenvolvido no Instituto de Genética Molecular de Montpellier, França. Os cientistas descobriram que a molécula a que chamaram ICD16 actua não a nível de proteínas virais, em constante mutação, mas sim dos mecanismos celulares que o VIH usa para se multiplicar.

«Em vez de atacar os componentes que o vírus transporta consigo, nós pretendemos atingir aqueles que são usados na célula», afirmou Jamal Tazi, investigador do Instituto Genético e Molecular, citado pela agência France Press.

De acordo com os responsáveis pelo estudo, a descoberta pode abrir portas a «uma nova estratégia para desenvolver uma classe inovadora de medicamentos anti-VIH» dirigida à célula humana infectada e não ao vírus em si, o que evita que este desenvolva resistências.

Esta é, sem dúvida, uma excelente notícia para minimizar um flagelo que está a destruir a humanidade, embora os necessários testes laboratoriais e ensaios clínicos façam prever que, a ter sucesso e ultrapassar todas as fases de teste, este derivado da isoquinolina só estará disponível daqui a alguns anos.

5 comentários:

Rita disse...

Acho que este blog faz um excelente serviço na divulgação da ciência. Ocorre-me apenas uma pequena questão. Porque motivo escrevem todas as siglas em inglês, como são por todos conhecidas, com excepçãp para DNA e RNA?... Sim, porque querem escrever em português... Ok.... Não gosto (tb estou na área cientifica e não me soa nada bem...), mas consigo entender. Então se é por isso o que aconteceu ao HIV/VIH?......

Palmira F. da Silva disse...

oops:

obrigado Rita! Falhei o VIH mas já alterei.

Normalmente também uso as siglas em inglês mas num espaço de divulgação acho pedagógico usar acrónimos em português, no caso em que em que estes existam ou em que faça sentido a mudança. Não faz muito sentido mudar o acrónimo conhecido como laser, por exemplo.

Anónimo disse...

Embora os vírus possam mudar consideravelmente e embora o vírus da SIDA tenha sofrido alterações significativas, a verdade é que essas alterações não acrescentaram informação nova, codificadora de estruturas e funções totalmente inovadoras, com a capacidade de transformar o vírus num organismo inteiramente novo, portador de características novas e mais complexas.

Daí que as variações a que se assistam nos virus, e o desenvolvimento de resistência aos medicamentos, nada tenham que ver com uma hipotética evolução susceptível de transformar partículas em pessoas ao longo de milhões de anos.

A conversão, por exemplo, de um réptil numa ave, a avaliar pelas enormes diferenças morfológicas existentes entre ambos, só seria possível mediante mutações que introduzissem quantidades inabarcáveis de informação genética nova, altamente especificada, ordenada e integrada, o que manifestamente não é o caso nas variações do virus da SIDA.

Regina disse...

este blog é interessantíssimo! sou aluna de ciencias farmaceuticas em coimbra e estou neste momento e estudar virologia, farmacoterapia e farmacologia!!! este post ajudou-me a compreender um pouco melhor a dinamica deste vírus e claro a ter um melhor entendimento das estratégias terapeuticas a adoptar. O grande problema para descobrir a cura reside paradoxalmente na extrema simplicidade deste retrovírus! Tenho o vosso blog ligado ao meu! bem-hajam!

Renato disse...

O tratamento que vai alterar (penso eu) todo o paradigma que é o actual "tratamento para HIV" já está a caminho.

Gostava de ver um post sobre o KP-1461, da Koronis Pharma, que usa o VDA (viral decay acceleration, um mutagénico) para extinguir o HIV. É um medicamente que aproveita o que o HIV melhor sabe fazer, isto é, sofrer mutações. A ideia é fantástica e foi o primeiro medicamento destinado a HAART que conseguiu extinguir, repetidamente, o malvado HIV.
já o povo diz: «Se não os podes vencer, junta-te a eles».

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