quinta-feira, 25 de outubro de 2007

“Vou-me licenciar por obra e graça do Espírito Santo”

Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro (1926-1993), o escritor português que também foi advogado e condutor de Fórmula 2, que viveu em Lisboa e em Londres, que conheceu as faces da ditadura e da democracia, tinha esse dom fantástico de olhar para o que se passava à sua volta com um humor perspicaz e corrosivo, o tal que ajuda, em muito, a ter consciência crítica. Entre 1969 e 1980, o país esteve sob a sua acutilante mira nas crónicas Redacções da Guidinha, que publicou, primeiro, no Diário de Lisboa e depois, no O Jornal.

O texto que, de seguida, se lerá é descarada transcrição duma dessas crónicas:

“Nestas coisas da vida uma pessoa ou tem sorte ou não tem eu cá por mim tenho de confessar que não sou das que tiveram mais sorte e tudo porque comecei a tirar a minha instruçãozita (sic) primária antes das reformas contra-reformas sugestões de reformas propostas de reformas discussões sobre reformas questões sobre reformas estudos sobre reformas esperas por reformas e o mais que há sobre reformas e o resultado deste meu azar de ter começado a ir à escola antes de tudo isto foi que tive de estudar uma data de coisas para fazer exame da primeira classe mais uma data de coisas para fazer exame da segunda classe mais uma data de coisas para fazer exame da terceira classe e nem digo mais quantas coisas para fazer o da quarta classe para verem como as coisas eram tenebrosas até tive de aprender a ler para tirar a quarta classe o que mostra como a gente era perseguida e torturada e mal-tratada nos tempos antigos se no meu tempo já andassem estas reformas todas no ar eu tinha-me safado muito melhor para começar não tinha tido aulas durante metade do ano por causa da reforma e tinha passado para a segunda classe sem saber fazer contas de multiplicar vai na segunda classe com uns sarilhitos tinha passado para a terceira sem saber fazer contas nem de multiplicar nem de dividir e para entrar no liceu sem eles darem por isso arranjava-se uma dispensazita de exame por não saber ao certo como é que ia ser a reforma é claro que no liceu avançava da mesma maneira (…) enfim o que eu quero dizer é que acabava por entrar na faculdade que é para onde eu quero ir sem ninguém perceber que eu não sabia ler nem fazer contas de multiplicar e de dividir com as coisas assim eu tenho a certeza de que chegava ao fim sem abrir um livro o que até facilitava a vida porque se me obrigassem a abrir um livro eu estava frita por não saber ler e isso de ir às aulas era coisa que eu não fazia porque havia de arranjar maneira de lá não pôr os pés umas vezes porque não ia porque não havia professores outras vezes porque estava à espera que fosse resolvido o problema de transportes (…) outras vezes não ia porque estava dispensada de ir enquanto não viesse a reforma e outras vezes não ia porque não ia e pronto ninguém tem nada com o que faço enfim chegava ao fim do curso e davam-me um canudo todo escrito em latim (…)” (In A Guidinha antes e depois, págs, 115-117).

Ora bem, trata-se de um texto datado de 22 de Junho de 1974. Tem, portanto, trinta e três anos, já feitos. Mas, podia ter sido escrito hoje, ou não?

Livros consultados:
– Luís de Sttau Monteiro (2002). Redacções da Guidinha, Areal Editores (compilação de crónicas publicadas no Diário de Lisboa, entre 1969 e 1970).
– Luís de Sttau Monteiro (2004). A Guidinha antes e depois, O Independente (compilação de crónicas publicadas no Diário de Lisboa e no O Jornal entre 1972 e 1977, com introdução de Helena Gubernatis).

Imagens retiradas de:
– http://www.cm-lisboa.pt/docs/imagens/LuisSttauMonteiro_s_0.jpg
– http://www.arealeditores.pt/CE/biblio/gifs/00701.gif

12 comentários:

Bruce Lóse disse...

Parece-me que estamos a esquecer outro título importante de Sttau Monteiro, aquele em que o homem da gravata às riscas é exaurido pelas tias da linha e outros lugares comuns da sociedade dormente no seu próprio declínio. Mas um homem, de facto, não chora...

Já quanto aos professores primários que se queixam de os seus alunos não sabem ler por causa do "sistema", costumo responder com uma citação de outro dos meus autores favoritos:
"Trabalhai que sereis salvos" (in Bruce Lóse, Cum vacum num est luctandum"
Depois tiro umas passas do bolso para remoer entre os dentes.

Anónimo disse...

Afinal, havia outra... :)

guida martins

Anónimo disse...

não sabem ler, mas lá que sabem ir a sites de jogos, isso sabem...


que nesta coisa das novas tecnologias, nós vamos ser os maiores...ai vamos vamos, ou então o sr. socrates zanga-se com o sr gates...e o negocio vai por água abaixo

cs

mosca disse...

De facto podia ter sido escrito hoje, e podia vir a ser escrito daqui a outros 33 anos que continuava a fazer sentido; independentemente dos avanços e recuos do sistema de ensino em Portugal (e se calhar no resto do mundo) há-de sempre haver quem o critique contrapondo a sua experiência pessoal, mesmo que os seus "tempos de estudante" já lá tenham ido à duas ou três décadas (neste caso o autor tinha quase 50 anos quando escreveu este texto)!
Nunca percebi se este lugar comum se deve ao desprezo/incompreensão/inveja pela infância/juventude, mas desconfio de que, neste país onde as crianças /jovens ainda são vistos como uma coisa menor e não seres humanos, não é de preocupação genuína e desinteressada que estamos a falar...
Permito-me fazer o mesmo exercício, mas a uma distância menor do meu período de instrução (ainda em curso), que sorte têm as guidinhas de hoje! como eu trocava sem olhar pra trás a minha escola pela da minha sobrinha (7 aninhos, 2ª classe)!

Anónimo disse...

Caro(a) mosca,
corrija a gralha em "ido à duas ou três décadas".
Cumprimentos.

Anónimo disse...

“Para Salvar os Náufragos da Educação em Portugal Mais do Mesmo? (Não Obrigado!)”

No dia de ontem o País assistiu pela primeira vez da nossa história recente à divulgação de um “ranqueamento” das escolas nacionais, públicas e privadas, baseado nos resultados dos exames dos respectivos alunos no 9º ano de escolaridade, o último da afamada “escolaridade obrigatória”. Convém lembrar que a justificação substantiva de um ensino obrigatório por parte do Estado corresponde à noção de que tal educação é fundamental para os cidadãos nacionais ao longo de toda a sua vida em sociedade. Uns e a outra retirarão dessa educação benefícios vultuosos. Ora, os resultados que estiveram em liça, como agora mais detalhada e indisfarçavelmente se demonstrou (porque os dados são conhecidos e estão disponíveis para a sociedade), apresentam-nos, e confirmam o que em voz baixa se dizia, um imenso “oceano de náufragos”– filhos, escolas e pais incluídos. Que esses filhos serão, mais tarde ou mais cedo, e vem aqui enormemente ao caso, os futuros trabalhadores da nossa “sociedade do conhecimento e tecnologicamente vanguardista em construção” (“governamentalmente dixit!”).
Por isso, quem ontem viu e assistiu, em mais um “remake” de outros filmes passados, ao tom lamentoso e monocórdico com que a “Nossa Senhora Ministra da Educação” se exprimiu sobre os insucessos e as dissemelhanças entre as escolas, um tom e teor discursivo ideologicamente bolorento, que ajuda à passividade e ao cruzar de braços perante a “má-sorte” dos pobres interiorizados e dos potenciais excluídos das periferias das cidades, tem de indignar-se. Porque o “reino da pequenez” continua nu, ainda que algumas cambiantes possam ir num sentido justificado (a avaliação do desempenho ou as provas de acesso à carreira docente são exemplos).
Exige-se, temos todos, e sobretudo os mais bafejados pela “roda da fortuna” de entre os nossos concidadãos, que obrigar a actuar sobre o "estado de coisas" o Ministério e a “Nossa Senhora” que nele impera, as Direcções Regionais (para se justificarem como entes vivos), as Direcções das Escolas, as Autarquias e os pelouros de Educação respectivos, para em prazos curtos (dois/três anos no máximo), apresentarem outros resultados nos alunos em potencial risco de naufrágio e exclusão. Actuações que prescrevam metas concretas para atingir, impondo padrões de resultados mínimos nos exames nacionais, e com taxas de progresso ano a ano desses mesmos padrões. E se forem necessários recursos e instrumentos excepcionais para realizar no terreno essas metas, eles são mais que exigíveis e justificados.
Cada aluno que fica para trás é menos um adulto a chegar aos patamares que a democracia e a cidadania activa impõem.
Discursos como o de ontem são, por isso mesmo, inaceitáveis e intoleráveis. O tempo da autocomiseração e das “desculpinhas mornas e medíocres”, ideologicamente correctas, para cima dos insucedidos e mais pobres, tem de ser atacado de raiz e denunciado. Portugal tem a obrigação moral de preparar as suas crianças e jovens para a vida deste século – que todos sabemos que não vai ser nada fácil…!

Anónimo disse...

Se não soubesse a data do texto diria que tinha sido escrito nos dias de hoje.
Será que se o ministerio da educação for extinto e as escolas passarem a auto-gestão alguem nota?
O que se fez( ou melhor não fez) na educação nestes ultimos 30 anos deixa muito a desejar, até quando andaremos a regular o ensino pela lei de bases de 86?
O que se exige é rigor, só passar quem sabe e só lecionar quem sabe, mas o ministério tornou-se noutro empregador publico, depois queixem-se que o estado quando cortar vai cortar a doer, pois quando foi pra meter a trabalhar primos, tios, familia, calões e outros que nem formação tinham não se lembraram, o povo precisava de emprego, e n me refiro tanto aos professores, refiro-me à cambada do ministerio, os professores são os que menos culpa têm, e tiro o chapéu aos execelentes professores que conheci e conheco, poucos, muito poucos mas bons.

Fátima André disse...

Não haverá texto mais actual. Podem ler a notícia qe ontem da Lusa sobre este assunto em relação ao Novo Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior que está mesmo a preparado para sair da fornada em mais um normativo. Aqui fica:
http://revisitaraeducacao.blogspot.com/
Até os meus melhores alunos do ensino básico estão indignados... e com toda a razão!!! Não se valoriza o mérito, o esforço... está-se a premiar a preguiça, o maus hábitos,o mau comportamneto... engfim, a bandalheira total!
Temos que mostrar estatisticamente sucesso e a forma de o fazer é recorrer à passagem administrativa, mesmo que o aluno não ponha os pés na escola.
Ser ou não ser... é tudo igual para a ilustre Tutela :(

Anónimo disse...

Não !!!!

Não !!!!

Contaram só pra você.


Alfaómega

Anónimo disse...

Quem é que votou neste governo? Agora aguentem!!!!

Anónimo disse...

E o que diria a Guidinha do Sttau Monteiro se soubesse que agora nas aulas de ciências da natureza do 5º ano estão incluidos os desenhos animados, que a maioria dos alunos conhece, da série "Era uma vez..."?
Eu pensava que a escola era para lhes mostrar o que eles ainda não conhecem, ou pelo menos para o apresentar de forma mais original. Mostra bem o quanto se desconhece o que os alunos entretanto já aprenderam nos desenhos animados...

guida martins

Anónimo disse...

À produção inútil e em excesso dá-se o n ome de logorreia, doença secular lusitana, resultante da necessidade de os Estados julgarem que produzir muitas lei, normas e regulamentos, transmite a ideia de que os Governos trabalham a Bem da Nação.

Este vício doentio já vem dos nossos antepassados. Querem um exemplo?

Em 1892 o deputado F. Vasconcelos declarava que "uma das causas que no nosso paiz tem mais directamente contribuido para o atrazo e situação geral decadente que aqui se observa, consiste exactamente na facilidade insensata com que se tem admittido e tolerado que os governos que se succedem no poder, ousem appresentar medidas de reformas arbitrarias, mal pensadas, incompletas e incongruentes."

Ao que um outro deputado respondeu:
"Não temos emenda".

Ainda hoje... não temos emenda.

A panaceia da educação ou uma jornada em loop?

Novo texto de Cátia Delgado, na continuação de dois anteriores ( aqui e aqui ), O grafismo e os tons da imagem ao lado, a que facilmente at...