domingo, 22 de abril de 2007

O que é a lógica?

A lógica elementar, formal e informal, é uma disciplina de tal modo formativa e ao mesmo tempo básica que é inaceitável que não seja ensinada desde cedo a todas as pessoas. É um pequeno escândalo que se possa considerar alguém um cidadão instruído sem saber lógica elementar, ao passo que todos concordamos que não se pode ser um cidadão instruído sem ter a mais pequena ideia da composição da água ou da arquitectura do sistema solar.

A lógica elementar é um instrumento fundamental para ajudar o cidadão a ter um sentido crítico apurado, ao mesmo tempo que o põe em contacto com um aspecto central do conhecimento. A lógica estuda a argumentação e o raciocínio, procurando entre outras coisas distinguir a argumentação correcta da falaciosa, assim como compreender e sistematizar o próprio fenómeno da argumentação ou raciocínio correctos. Fundada por Aristóteles no séc. V a. C., a lógica formal foi desenvolvida pelos seus sucessores, nomeadamente os estóicos. Depois as coisas ficaram em grande parte estagnadas, até ao séc. XIX (apesar de alguns desenvolvimentos medievais notáveis que todavia não tiveram grande influência no mundo académico em geral), altura em que se dão novamente desenvolvimentos impressionantes, redescobrindo-se nomeadamente a lógica estóica, que é a base de todas as lógicas formais contemporâneas.

A lógica é importante por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque precisamos de raciocinar para descobrir muitas coisas que não podemos saber directamente pela observação. Na verdade, a quase totalidade do conhecimento mais sofisticado que temos do mundo, nomeadamente o conhecimento científico, não resulta directamente da observação — é produto também do raciocínio. Pessoalmente, acho preocupante que muitos cientistas não tenham uma formação sólida em lógica formal e informal, apesar de terem de ter formação em matemática, o que é uma ajuda modesta — mas nem todo o raciocínio é matemático.

Em segundo lugar, porque a lógica nos permite melhor discutir assuntos sobre os quais não há resultados científicos definitivos, ou sobre os quais os especialistas das áreas em causa discordam. Discutir ideias é trocar argumentos, e esses argumentos podem ser melhores ou piores — mas se nem sabemos bem o que é um argumento, e o que o distingue de uma simples afirmação, e como se distinguem os bons dos maus argumentos, não podemos discutir com o grau de seriedade e sofisticação que os assuntos profundos e graves que nos interessam merecem.

Em artigos seguintes veremos o que são os argumentos.

18 comentários:

antfilfon disse...

Muito pertinente este post. Só muito tarde aprendi lógica e então verifiquei como muito do que se diz por aí, o que faz opinião pública nos média e no convívio social, no mesmo contexto ou em contextos diferidos, não passa de lixo assertivo. Fico à espera da continuação.

Anónimo disse...

A lógica informal apesar de ser uma disciplina consolidada não possui uma grande aceitação entre os lógicos. Não se costuma dizer que mais vale ter conhecimentos profundos numa área específica do que conhecimentos técnicos acerca da arte de argumentar?

A lógica informal não seria uma tentativa da filosofia em criar um certo rigor, uma certa objetividade? Uma busca pelo rigor? Além disso uma tentativa de estabelecer diálogo dentro da filosofia, entre as mais variadas filosofias? Dizer que a filosofia se faz por meio de argumentação?

Qual é a real expressividade da lógica informal dentro da lógica? Ou, mais, dentro da filosofia?

antfilfon disse...

Vou tentar resumir o que julgo ser o problema.
A lógica e o raciocínio informal podem frequentemente ser 'traduzidos' em lógica formal. Foi esse um dos grandes objectivos de Bertrand Russel na expectativa de uma analiticidade do pensamento filosófico e de o tornar numa ciência. Infelizmente o seu protegido Wittgenstein veio demonstrar que isso não pode ser em todos os casos, o que não invalida que desde que a informalidade seja convencionada, o que acontece muito frequentemente, a tradução para a lógica formal possa ser integralmente aplicada.

NCD disse...

Há muito tempo que tenho esta ideia, precisamente: a lógica devia ser uma matéria fundamental.
Gostaria desaber mais sobre isto: que conteúdos e bibliografia lhe parecem adequados a esta matéria? Eu lido com crianças e adolescentes e gostaria de os despertar para estes assuntos...

Desidério Murcho disse...

Cara ncd

Depende do nível etário. No 11.º ano é obrigatório ensinar lógica, mas porque não há exames alguns professores não a ensinam; outros, optam pela lógica aristotélica, que está tão errada como a física de Ptolomeu, e não permite clarificar a argumentação (ninguém argumenta usando silogismos).

Para crianças muito pequenas o programa de filosofia para crianças de Lipman é em grande parte um programa de lógica informal e poderá querer consultar o Centro Português de Filosofia para Crianças, da SPF.

Em termos de conteúdos, é essencial a lógica proposicional, elementos de lógica informal e a linguagem da lógica de predicados. A partir de que idade é possível ensinar isto explicitamente, não sei. Mas nada disto é mais complexo ou mais abstracto do que a trigonometria, por exemplo, ou a química básica.

Quanto a bibliografia didáctica, o meu manual A Arte de Pensar, para o 11.º, apresenta de forma intuitiva a lógica proposicional, com muitos exercícios. O livro "Lógica", de Newton-Smith (Gradiva) ensina lógica proposicional e de predicados, mas a professores ou estudantes universitários. O meu livro "O Lugar da Lógica na Filosofia" ajuda os professores a compreender melhor a lógica e a escolher conteúdos adequados para leccionar.

Desidério Murcho disse...

Caros José Carlos e aff

Para compreender o que é a lógica informal será necessário compreender primeiro a lógica formal, para se dominar o conceito de forma lógica e de demonstração. Se não se dominam estes conceitos, não se sabe realmente o que é a lógica formal.

A lógica informal é uma disciplina perfeitamente estabelecida, mas com menos projecção do que a formal porque esta última permite tratamentos matemáticos que a primeira não permite. Mas a lógica formal não pode ser desenvolvida sem a informal. Há inúmeras publicações académicas (livros e revistas) dedicadas à lógica informal.

Muito sinteticamente, a diferença fundamental é que a lógica formal só estuda aqueles aspectos da argumentação que dependem integralmente da forma lógica -- daí chamar-se formal -- ao passo que a lógica formal ocupa-se de outros aspectos lógicos que não dependem integralmente da forma lógica.

antfilfon disse...

Agora é que eu já não estou a perceber nada. Está a falar de lógicas modais? Nunca vi uma lógica que não se preocupasse com a forma do argumento/raciocínio, ou seja dizendo isto em termos formais, que a troca de pelo menos um termo invalida uma fórmula válida.

antfilfon disse...

E o seu valor de verdade.

Anónimo disse...

Esta frase é falsa.

Desidério Murcho disse...

Olá, aff

Não me refiro a lógicas modais, essas são também formais.

Aparentemente não conhece a lógica informal. Muita gente não conhece.

Lá chegaremos. Mas se quiser ter uma ideia do que é a lógica informal há alguns artigos sobre isso na Crítica, assim como na Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos.

Se sabe lógica formal, pense no seguinte: quando formaliza um argumento real, um argumento em linguagem natural, esse é um trabalho de lógica formal? Com certeza que não, pois tem de analisar muito bem o argumento, tendo em conta o seu conteúdo e contexto, para então lhe extrair a forma lógica.

Além disso, imagine que prova que um dado argumento tem uma forma lógica inválida. Segue-se daí que o argumento é inválido? Não. Veja o último artigo publicado na Crítica, a este respeito (para subscritores).

antfilfon disse...

Mas a lógica informal não passa então de uma lógica de predicados em que estes retiram os seus valores de verdade do contexto do acto de comunicação?

Desidério Murcho disse...

Caro aff

Não, a lógica informal tanto aborda argumentos predicativos, como na lógica de predicados, como proposicionais, como na lógica proposicional. E pode também abordar argumentos temporais ou modais, assim como raciocínios práticos.

Para ter já uma ideia do tipo de trabalho que se faz em lógica informal, considere a noção de falácia. Do ponto de vista da lógica formal, não há falácias: há apenas argumentos válidos ou inválidos. A noção de falácia envolve as atitudes dos agentes cognitivos que avaliam os argumentos -- quando um agente cognitivo, perante um argumento inválido, cai no erro de pensar que é válido, e quando há razões estruturais para fazer este erro (um pouco como nas ilusões ópticas), então dizemos que é uma falácia. Mas esta noção é de lógica informal, dado que não se refere exclusivamente à forma lógica dos argumentos.

Anónimo disse...

Pois será ou não será, mas a lógica é tão somente uma actividade racional, certo?! Ou seja, não nos permite atingir aquilo que transcende a razão e que só pode ser objecto de conhecimento directo, intuitivo e imediato... não-local, nem formal nem informal, etc. e tal! ;)

É por isso que em muitos textos da sabedoria oriental se podem encontrar proposições ilógicas segundo critérios puramente formais, como é o caso do famoso tetralemma do insigne filósofo budista do séc. II aC Nagarjuna, em que a Realidade última é simultaneamente considerada como para além do Ser ou Não-Ser, ou da existência e não-existência, superando assim o dilema shakespeareano, por exemplo.

Everything is actual, or not actual, or actual and not actual.
Or neither actual nor not actual; this is the Buddha's teaching.


Logo, a lógica será necessária sim, mas não é a prova cabal do conhecimento, pois que apenas pára na razão e desconhece a intuição! :)

If nirvana were a thing, nirvana would be a conditioned phenomenon. There does not exist any thing anywhere that is not a conditioned phenomenon.

If nirvana were not a thing, how could it possibly be nothing? The one for whom nirvana is not a thing, for him it is not nothing.

If nirvana were nothing, how could nirvana possibly be not dependent? There does not exist any nothing which is not dependent.

How could nirvana be both a thing and nothing? Nirvana is unconditioned; things and nothings are conditioned.

In the emptiness of all things what ends are there? What non-ends are there? What ends and non-ends are there? What of neither are there?

Is there this? Is there the other? Is there permanence? Is there impermanence? Is there both permanence and impermanence? Is there neither?


Nagarjuna, "The Fundamental Wisdom of the Middle Way" (Cap. 25: Investigation of Nirvana - excertos dispersos)

Desidério Murcho disse...

Caro leprechaun

A lógica nada tem a ver com saber se algo é racional ou irracional. A lógica só estuda o que se segue logicamente do quê. E a lógica não é uma disciplina fechada, que dogmaticamente aceite como verdades absolutas os ensinamentos de Nagarjuna, do Chico ou do Marx.

Alguns lógicos e filósofos contemporâneos desenvolveram vários tipos de lógicas paraconsistentes, nas quais se pode aceitar contradições. O mais radical desses filósofos, Graham Priest, é hoje um dos principais representantes do dialeteísmo, a ideia semelhante à de Nagajurna de que há contradições verdadeiras.

Manuel Silva disse...

Quando no teu artigo escreves "nem todo o raciocínio é matemático" que tipo de argumentos tinhas em mente?

Desidério Murcho disse...

Lenam: Qualquer argumento que não seja sobre números ou outras entidades matemáticas não é matemático. Por exemplo:

Se Deus existe, a vida faz sentido.
Deus existe.
Logo, a vida faz sentido.

Ou ainda:

Todos os patos observados até hoje têm asas.
Logo, todos os patos têm asas.

Unknown disse...

O talvez mais proeminente criador da Lógica Paraconsistente é o brasileiro Newton da Costa, reconhecido mundialment e professor convivdado em quase todas as universidades do mundo.

Luiz Claudio da Cruz disse...

como faço para adquirir o seu livro.

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