segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O autarca com o sexto ano e o jovem com o secundário

Esta é terceira e última nota que aqui deixo à esclarecedora entrevista de Bárbara Wong ao director da Agência Nacional para a Qualificação.

Há um princípio pelo qual essa Agência se pauta e que, em sequência, orienta todas as acções que desenvolve. Esse princípio é que as aquisições académicas, profissionais e pessoais podem reverter-se umas nas outras, no final, equivalendo-se. Responde o referido director à pergunta feita:
"Um adulto pode chegar com o 6.º ano e sair, em poucos meses, com o 12.º?
Pode acontecer. Há uma ruptura com a lógica de disciplinas, das metodologias de ensino e aprendizagem para uma lógica mais abrangente de evidenciar o que o adulto sabe e integrar a sua experiência. Um autarca com o 6.º ano não tem experiência e competências que lhe permita terminar o secundário? Não tem mais do que um jovem de 18 anos que conclui o secundário? Não vou preocupar-me com o tempo que as pessoas levam a adquirir um certificado."
Estamos perante um princípio que, mais do que duvidoso, é errado, absolutamente errado. Os três tipos de aquisições em causa são de natureza diferente, apelam a capacidades diferentes e têm modos diferentes de expressão.

Detendo-me apenas nas aquisições académicas, não posso deixar de reconhecer que algumas delas poderão ser transpostas para o domínio profissional e até para o domínio pessoal, acrescentando que, quando essas aquisições decorrem de escolhas acertadas, é mesmo desejável que isso aconteça.

Mas devo salientar que elas têm uma identidade própria e um modo de apropriação também próprio. É essa identidade e esse modo de apropriação que constituem a razão de existir da escola e, decorrentemente, do ensino e da aprendizagem formal.

Quando sugerimos que o meio profissional e a nossa vida quotidiana nos permitem aceder ao mesmo a que a escola nos permite aceder, ou até a mais do que a escola nos permite aceder, é a própria escola que, afinal, consentimos em dispensar.

10 comentários:

joão viegas disse...

Prezada Helena Damião,

Não vou dizer que não compreendo o que você esta a dizer, nem pretendo iniciar aqui mais uma dessas conversas a preto e branco que não levam a lado nenhum, pois aprecio os seus posts e tenho-a em conta de uma pessoa pousada e ajuizada.

Mas neste caso, parece-me que você esta a ler no texto um pouco mais do que la esta, e esse pouco é importante.

O texto não diz que um adulto vai necessariamente chegar là, ou que vai chegar la automaticamente e sem esforço, mas apenas que pode chegar la mais depressa. Ou seja, diz que um adulto, mais ainda um adulto com uma experiência de vida que envolve o exercicio de importantes responsabilidades civicas, PODE adquirir os conhecimentos necessarios para obter o diploma mais depressa do que um jovem aluno sem expêriência nenhuma.

Esta afirmação, que não me parece surpreendente (antes me surpreenderia a inversa), não implica nenhuma confusão entre as aquisições que vêm da experiência e aquelas que os estabelecimentos de ensino proporcionam...

Em contrapartida, insurgir-se com a ideia de que os conhecimentos da experiência favorecem necessariamente a aquisição dos conhecimentos necessarios para obter o diploma, é excluir à partida que ambos possam ter um valor e uma utilidade comparaveis. E isso é muito perigoso. Afinal, se um individuo adulto com experiencia de vida, que exerce ou exerceu importantes responsabilidades, não é capaz de integrar rapidamente o que se ensina na escola, é caso para nos interrogarmos sobre a pertinência do que se ensina na escola...

Com efeito, a educação não tem nenhum valor se não fôr para preparar para a vida (não digo necessariamente para a vida "profissional", mas para a vida)...

Deinde vivere...

Ou não é ?

António Conceição disse...

O problema é que o conhecimento adquirido fora da escola é o conhecimento do autodidacta. E o grande problema é que, como se sabe, o autodidacta tem por mestre um verdadeiro ignorante.

Carlos Albuquerque disse...

"Afinal, se um individuo adulto com experiencia de vida, que exerce ou exerceu importantes responsabilidades, não é capaz de integrar rapidamente o que se ensina na escola, é caso para nos interrogarmos sobre a pertinência do que se ensina na escola..."

Acho bem que nos interroguemos. E iremos descobrir que um adulto com experiência de vida tem provavelmente mais dificuldade em integrar o que se ensina na escola do que um jovem, excepto se o que se ensina na escola estiver muito próximo da vida desse adulto.

Uma das características do conhecimento académico é a sua construção vertical. O que significa que os andares mais fundamentais desse conhecimento estão por vezes muito distantes das aplicações à vida prática. E o estudo dos fundamentos de uma disciplina pode não só ser árido como exigir uma disponibilidade mental que os jovens têm mais frequentemente do que os adultos. Já para não falar nas questões fisiológicas, como a perda de capacidades com a idade.

Ilustração: o sr. José tem 45 anos, o 6.º ano e é trolha; deseja ser eng.º civil. Terá o sr. José mais facilidade do que um jovem em estudar as derivadas em Matemática? Em que é que as derivadas são relevantes para a vida, se o sr. José tem sido trolha estes anos todos sem saber que existiam derivadas? Saltamos a lógica das disciplinas, damos o 12.º ano ao sr. José com base nas capacidades que demonstrou ao construir ele próprio a sua casa e matriculamo-lo num curso de engª civil com este magnífico 12.º ano?

Talvez o sr. José chegue a ser eng. civil mais depressa do que eu imagino, desde que escolha bem a universidade.

José Batista da Ascenção disse...

Pode acontecer que um adulto com o 6º ano consiga, em poucos meses, fazer o 12º? Muito excepcionalmente, pode. Muito excepcionalmente.

Também pode acontecer frequentemente?
Pode, se for com... capuchadas. E só assim. Como ninguém ignora.

Peço desculpa por exprimir-me deste modo. Mas há coisas que não merecem (outra) discussão.

JCC disse...

Ainda não há muito tempo, esse autarca frequentava a escola à noite, seguia o seu próprio percurso e, mais ano, menos ano, terminava com orgulho o Secundário. Em muitos casos, encurtava caminho, fazendo exames às disciplinas em que se considerava bem preparado. Tinha humildade para aprender, despendia tempo e esforço, pelo que era legítimo o orgulho pela conclusão dos estudos. Duvido que hoje tal suceda. É que o que é dado não é tão valorizado como o que é conquistado.
Por outro lado, no ensino normal aprende-se um conjunto de matérias que não fazem falta nenhuma na vida -- é essa a sua maior riqueza.

Anónimo disse...

Ó Senhor João Viegas!

O Senhor por acaso já viu algum país civilizado com algo semelhante à INO, já viu? Não, sabe porque razão? Porque França, Holanda Dinamarca, EUA, Canadá, Alemanha estimam os seus diplomas reais.
Até a Ucrânia e a Russia mandam para as obras quem sabe mais do que aquilo que devia!
Ora, bem vistas as coisas, nós vamos nesse caminho... o da Ucrânia, mas para muito pior!

Já paguei a colaboração de uma licenciada ucraniana para me ajudar nas limpeza. Em breve pagarei a um diplomado pela via da INO para não me tirar o emprego de físico nuclear.
Este país cheira mal da boca!
Este país não é asseado.

joão viegas disse...

Caros,

Antes de mais, meu comentario anterior foi editado sem ter sido corrigido. Peço desculpa pelas gralhas, a começar pelo "deinde vivere" em vez de "primum vivere".

Quanto ao comentario do Carlos de Albuquerque, não é so que discordo, é que o acho assustador.

E' claro que eu me estava a referir, como o texto comentado, a uma experiência enriquecedora, como é por exemplo o exercicio de importantes responsabilidades politicas. O exemplo do trolha não é pertinente. E' claro que também ha trabalhos alienantes e sem perspectivas, que não abrem horizontes nenhuns. Sabemos bem disso e não é o que esta em causa.

Mas, para não ir mais longe, um investigador cientifico competente, e com valor, ja não é capaz de aprender uma disciplina nova se tiver 45 anos ? Felizmente, o contrario é demonstrado todos os dias (e se assim não fosse, a investigação cientifica estaria em maus lençois)... Da mesma forma, um profissional qualificado, mesmo que tenha 45 anos, pode ser capaz de mudar de rumo e de profissão, ainda que isso implique adquirir uma formação diferente da sua. Isso acontece todos os dias.

Vamos la ver uma coisa : vocês acham mesmo que uma pessoa com uma boa formação geral, mas com 45 anos, ja não é capaz de aprender a derivar se não aprendeu quando tinha 15 ou 16 anos ?

Devem estar a brincar com certeza !

Fartinho da Silva disse...

Chegou-se ao um nível tão baixo e decadente que quem defende o status quo, já não tem vergonha na cara de se apresentar em público a defender o indefensável.

E assim se vai estoirando o dinheiro do contribuinte como se nada fosse...

Carlos Albuquerque disse...

Caro João Viegas

Sugiro que releia o que escrevi. Onde é que eu falei de impossibilidade de aprender? Não falei, claro. Apenas fiz a comparação entre as capacidades de aprendizagem de um adulto com pouca formação e de um jovem. E concluí que o adulto provavelmente aprende mais devagar do que o jovem. O que, claro, inviabiliza toda a teoria da "aprendizagem relâmpago" das NO.

A diferença entre o nosso trolha ou o nosso político que querem ser engenheiros e o nosso investigador, é que o investigador tem um treino permanente de trabalho intelectual e de aprendizagem. E mesmo assim precisa de tempo e estudo para mudar de área! Sobretudo se estiverem em causa competências que precisam de muito tempo de aprendizagem. Se é fácil a transição entre áreas próximas, não é um doutoramento em letras que acelera muito a aprendizagem em matemática superior nem um doutoramento em matemática que permite recuperar em meia dúzia de meses a formação musical que leva anos a adquirir.

Mas o que se passa nas NO não é uma certificação de mudança de área dentro do mesmo nível académico. É uma certificação de uma mudança de nível académico. E isso leva ainda mais tempo. Um adulto com boas condições pessoais e de enquadramento pode eventualmente progredir um pouco mais depressa do que um jovem, mas nunca com um ganho na ordem de grandeza das NO.

Não sou eu que estou a brincar, não.

joão viegas disse...

Caro Carlos Albuquerque,

OK. Repare que o meu comentario também não oculta que seja necessario tempo e esforço...

A minha intenção não era defender a todo o custo o programa NO. Apenas dizer que me parece errado excluir à partida (como me parece fazer-se no post) que a experiência possa proporcionar o tal "treino permanente de trabalho intelectual e de aprendizagem" a que você se refere e que permite, de facto, aprender mais depressa do que um jovem sem experiência. Errado e perigoso, porque da a ideia que a formação facultada pela escola é unica, insubstituivel e sem equivalência na vida real, o que me parece ser completamente contraditorio com os objectivos basicos da escola que consistem em dar uma formação, solida, mas geral.

Quanto ao resto, vou poupa-lo à (longa) lista de ilsutres personalidades com formação cientifica que se notabilizaram no campo das letras sem ter tido uma formação académica nessa area, assim como à das personalidades com formação literaria que se assinalaram nas ciências, ou que utilizaram conhecimentos cientificos e matematicos, e ainda à lista das personalidades sem formação académica que se notabilizaram num ou noutro campo (admitindo embora que, como é obvio, em todos esses casos, ou na esmagadora maioria deles, o sucesso se deve ao esforço rigoroso, que implica tempo e trabalho).

Porque, tanto quanto percebo, julgo que concordamos no essencial.

Boas continuação.

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