segunda-feira, 30 de março de 2009

UMA NOITE NA BIBLIOTECA

Acaba de sair nos Livros Cotovia a peça de teatro "Uma noite na Biblioteca" do filósofo francês Jean-Clause Bailly, cuja versão portuguesa foi há pouco estreada na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (Sala de São Pedro). Transcrevemos a primeira fala de um dos personagens, Bertoli (a tradução é de Christine Zurbach e Luís Varela):

"BERTOLI - Encontramo-nos na sala de leitura, para onde são trazidos os livros àqueles que os pedem e que os consultam em silêncio nas mesas que estão a ver. Tudo parece morto e como que extinto e não podemos deixar de considerar poeirento este lugar que no entanto é encerado e varrido com todo o cuidado. Mas esta poeira que repugna, para nós que trabalhamos aqui, é sagrada. A poeira é tempo visível e nesta sala, como em outras, é possível abrir o tempo. Não como um corpo que se disseca, mas como um fluxo que se sonda. Sempre subindo o seu curso, porque não é possível precedê-lo ou andar mais depressa que ele. Aqui, estão a ver, banhamo-nos no rio do tempo e de cada vez recolhemos um pouco da sua água, sempre a mesma e sempre diferente. Uma sala como esta não é nem um «lugar de memória» (em boa verdade, o que é que não é um lugar de memória?), nem um mero entreposto, é, como eu gosto de dizer, o serviço de peças soltas do saber humano, é a memória desse mesmo saber: inscrita em pegadas legíveis, folhas volantes atadas em maços, livros arrumados em prateleiras, labirinto.

Sabem que outrora, quando as origens de Roma se confundiam com as práticas etruscas, o templum começou por designar a parte do céu que se delimitava para nela se ler os augúrios, quer dizer, os sinais anunciadores do destino escritos pelos pássaros, nomeadamente os abutres. Depois, o templum desceu do céu à terra e designou aquilo que nós hoje entendemos por templo, ou seja, o edifício onde os deuses são venerados e onde talvez estejam presentes. Que a biblioteca seja o templo nesse sentido, não iria tão longe, mesmo tendo dito que a nossa poeira é sagrada. Mas que cada livro seja à sua maneira um oráculo, uma possibilidade de oráculo, isso sim, acredito – e acredito sabendo mesmo que lugares semelhantes a este foram em parte concebidos contra os oráculos, na época da Razão ou pelo menos no seu rasto.

De qualquer modo, a ideia de juntar num único lugar o conjunto dos saberes, das narrativas e dos cantos é antiga e oscilou sempre, em qualquer época, entre razão e magia, entre algo de solar e geométrico e algo de nocturno e refulgente. Junto de Fausto, o leitor assíduo, está evidentemente a Melancolia. O que Fausto não sabe – e desse ponto de vista pode dizer-se que ele não consultou bem os áugures – é que a Melancolia, na verdade, vela por ele, protege-o. A Melancolia, gostaríamos que a sua figura, mais do que qualquer outra, estivesse presente aqui na forma de estátua ou de emblema, porque ela é a verdadeira divindade destes lugares, porque é ela que habita estas prateleiras, estas salas, estes corredores, este reino.

Aquilo que uma biblioteca deseja, não o pode alcançar. Seja ela imensa ou restrita, real ou provincial, antiga ou moderna, jamais atingirá a imensidão que a alimenta, jamais aquilo que contém terá a evidência dum simples cabelo, duma pedra, dum alguidar, jamais será como aquele mapa famoso e lendário que se confunde com o território em cada um dos seus pontos porque é o território. Cada biblioteca, por muito que tenha havido colecção, arrumação, intenção, estende-se em torno daquilo que lhe escapa. Não a palavra final da história ou a soma exaustiva mas o silêncio em que a palavra se aboliria, aceite pela indolência dum sentido mais antigo. É por isso que, como se nada fosse e numa brandura aparente, reina aqui a Melancolia, é por isso que aqui existe vazio, desamparo, o sentimento de resto tão fácil de que tudo é ilusão.

Mas é também por isso que cada leitor é como um alpinista amarrado a um cordão de homens escalando lentamente uma montanha cujo cume se afasta cada vez mais, e é por isso que gostamos da poeira que vemos dançar aqui nos dias de sol, porque ela é como o pó dos trilhos dessa montanha. Labirinto de gargantas e de ravinas em que cada um avança sozinho ao jeito dum mineiro que segue um veio na terra ou ainda ao jeito dum caçador que segue o rasto e as pegadas de presas que se esquivam, reconhecendo nas paredes fios de baba e no chão bolas de penas regurgitadas. Porque é de pouco, com pouco de cada vez, que a coisa se faz, digo-vos eu: pólen em vez de flores, gramas em vez de toneladas. É verdade que aqui temos muitos gritos, exclamações, declamações, mas hoje são como cascas, como detritos que juncam o chão da caverna. O drama, o nosso drama, está escrito em todas as folhas, e a velha história da presa e da sombra, já aqui a consultámos, a revolvemos. A sua moral é simples: quanto mais difíceis eram as presas, mais belas são as sombras."

Jean-Christophe Bailly

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