A mais recente polémica sobre os erros de português incluídos no computador Magalhães oculta dois aspectos interessantes. Em primeiro lugar, a discriminação que as pessoas tendem a fazer entre o mundo digital e o mundo indigital, e entre o mundo educativo e o mundo real. Em segundo lugar, um erro fundamental de compreensão do que é a qualidade.
Os jornais, revistas e livros populares, assim como muitos artigos científicos, estão pejados de erros de português. Se no passado os portugueses copiavam os tiques da língua francesa, hoje copiam-nos da inglesa. Fala-se de agendas políticas, coisa que nenhuma pessoa que não domine o inglês compreende correctamente, pois quer pura e simplesmente dizer objectivos políticos, e não as agendas onde os políticos apontam os telefones das namoradas. Fala-se de novelas, mas em português chama-se romance ao que em inglês se chama novel e novela ao que em inglês se chama romance. Se vivemos rodeados de um mundo indigital linguisticamente absurdo, fruto do abandalhamento, não podemos exigir outros padrões no mundo digital.
Mas o segundo aspecto é mais importante. As pessoas têm tendência para olhar para os erros como anormais, quando na verdade estatisticamente é a qualidade que o é. A precisão, o apuro, o brio profissional são itens raros. A maior parte da humanidade contenta-se com o mais ou menos, o tanto faz, e não revela qualquer sensibilidade pela precisão. E isto é tanto assim na escola como fora dela, no mundo digital como fora dele. Há alguma edição de Os Maias, de Eça de Queirós, que seja fidedigna? Isto é, que não tenha sido copiada à balda de outras edições anteriores, mas antes comparada cuidadosamente com as primeiras edições e com as anotações do autor, como se faz quando se edita com cuidado? E alguém se preocupa com tais pormenores, além de uns palermas como eu?
A maior parte do que a maior parte das pessoas faz é à balda. Por isso, a balda, o erro e o desleixo não podem ser surpreendentes. O que é genuinamente surpreendente, e sempre bonito de se ver, é o cuidado, a precisão e o brio que algumas pessoas têm — sejam elas cozinheiros ou filósofos, poetas ou engenheiros informáticos. Há uma passagem de O Amor Nos Tempos de Cólera, na qual o Doutor Juvenal Urbino se recusa a comer uma refeição dizendo que foi cozinhada sem amor. Isto pode parecer conversa fiada, mas não é. Quando pego num livro, numa revista, num texto, vejo logo se foi feito com amor, ou se foi feito à balda. E infelizmente a maior parte das coisas são feitas à balda, com falta de amor pela precisão e pelo pormenor. Manuais escolares que citam textos à balda, sem referências bibliográficas adequadas, e que papagueiam mitos orais sem verificar fontes são infelizmente muito comuns. Quanto à baldice, não foi portanto o Magalhães que inovou.
É uma tentação defender que num contexto educativo se deve precisamente cultivar a precisão e o cuidado, e se deve ensinar os alunos a prezar essas coisas. Mas quando se cultiva tais coisas apenas no ensino estamos a contribuir para a mentira educativa, pois o aluno cedo descobre que afinal no resto do mundo, digital e indigital, reina a lei do vale tudo, do tanto faz e do desmazelo generalizado. Se queremos cultivar a precisão e o cuidado, o amor pelo que fazemos e o fazer bem, temos de o cultivar e defender em tudo e não apenas no contexto educativo. E se o fizéssemos, talvez mais professores defendessem esses valores, coisa que hoje não fazem.
terça-feira, 10 de março de 2009
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13 comentários:
Só uma aparte: uma "agenda" é também o objecto/livro onde apontamosos nossos compromissos, planos e outras informações úteis (os tais números de telefone). Sabendo isto, acessível em qualquer dicionário de Português, o conceito de "agenda política" é perfeitamente acessível. :)
Agenda: "Things to be done, "The items of business to be done at a meeting", OED.
Portanto, na acepção que o DS refere, agenda é um anglicismo, que eventualmente terá entre nós o curso facilitado pela razão que o S refere.
Quanto ao último parágrafo, a mensagem que os alunos precisam é que na vida real a balda não é generalizada. Até há pouco tempo tive como uma das tarefas seleccionar estagiários para uma equipa de desenvolvimento de software, e posso garantir que erros básicos de português ou dificuldades de expressão oral ou escrita, davam direito a ficar à porta.
Eduardo Lapa
Contra ti falas. No post que escreveste sobre asteróides, vê-se que não tiveste grande cuidado, apenas leste as notícias e mais nada. Erraste ao dizer que o asteróide caiu na Sibéria, o que não é verdade, apenas passou na atmosfera, porque não sabes muito sobre o assunto nem te preocupaste em saber. E sabes bem que os jornalistas não são de muita confiança, devias ter ido ler outras coisas. Escreveste área em unidades de comprimento, o que também revela pouco cuidado com o que escreves, embora esse tipo de erros possa acontecer, e apresentaste o asteróide como se fosse uma coisa bidimensional, 21 por 47 metros. E isto tudo apenas num pequeno post.
E não vou dizer mais nada, porque tenho aqui em memória outros erros que já escreveste aqui.
Concordo contigo que a balda é que é o normal, basta ler os jornais portugueses, é incrível a quantidade de erros que se encontram.
Mas acho que os erros no magalhães são tantos que vê-se que ninguém mesmo leu aquilo, há ali qualquer coisa que bate mal, e acho uma mesquinhice um blogue deste tipo perder tempo com coisas dessas, para isso já temos os fracos jornais a tentar criticar coisas ainda mais fracas.
luis
Luís, não fique tão nervoso.
Gosta de mandar bocas e não de argumentar. Por mim não há mal nenhum nisso. Podia era mandar bocas com piada e não destas ou da anterior do aniversário que são apenas vingativas.
Cumprimentos
Estu, não são nada de vingativas, eu sou um gajo fixe, não me atrofies.
Claro que argumentei, que o Desidério não pode mandar bocas aos outros e depois baldar-se.
Se eu não gostasse do blogue não estava aqui, isso podes ter a certeza absoluta. Qual é o problema de achar que isto podia ser melhor? Acho que mesmo os autores têm consciência disso. Ou achas que este é o melhor blogue do mundo de divulgação? Não brinques.
Quando eu achar que isto é muito mau, deixo de ler e de comentar, podes ter a certeza absoluta. Eu nunca leio o abrupto, por exemplo, e muitos outros, não leio porque é mister X ou mister Y que escreve, leio porque me interessa, e como disse, já aprendi umas coisas a ler este blogue. Se isso é ser vingativo, não sei o que é ser vingativo.
luis
De um lado, os baldas e bandalhos ("a maior parte da humanidade"), de outro, os apurados & precisos & puros. A despeito da propalada precisão, o maniqueísta DM esqueceu-se convenientemente de nos dar uma estimativa mais precisa das partes em contenda, ficando-se por um altivo impressionismo à la Bergson.
A final, a sensação de muitas palavras pra coisa nenhuma. Deve ter acordado maldisposto o filósofo DM.
Delirante o raciocínio expendido a propósito do conceito "agenda política". Por esse caminho, para entender a teoria da relatividade haveria que dominar primeiro o alemão. Se é erro de português, sê-lo-á também de castelhano, de francês, de italiano, de alemão, e por aí vai. O filósofo preciso e brioso de outros posts, parece que desta vez resolveu solidarizar-se com a maior parte da humanidade.
Alberto Sousa
Gostei deste texto e encontro-lhe bastante comicidade, o que considero bom. Ocorreu-me imediatamente que em prol da verdade educativa devíamos ensinar as pessoas a conduzirem como loucas nas aulas de condução. É verdade que há uma grande diferença entre a condução nas aulas e a condução real. Aliás, até creio que seria periogoso conduzir desse modo sem a identificação da escola de condução.... pelo menos precisaria de uns tampões para ou ouvidos, o que também não é muito ortodoxo. Também é verdade que as escolas de condução promovem uma condução irrealista, que tem mais como objectivo proteger o instrutor e preparar um aluno para o exame do que preparar para conduzir numa situação real. E se calhar não são só as de condução...
@A Presença das Formigas:
Julguei que não seria necessário escrever a definição do dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, de modo a fazer valer o meu argumento, mas aqui vai:
"agenda (nome feminino)
1. livro destinado à anotação dos compromissos diários e de outras informações (despesas, aniversários, etc.)
2. plano de trabalho; lista de assuntos a tratar;
INFORMÁTICA agenda electrónica dispositivo portátil ou programa de computador que permite registar em suporte informático os compromissos diários e outras informações úteis
(Do lat. agenda, «coisas que devem ser feitas», ger. neut. pl. de agère, «agir; fazer»)"
Desta forma julgo que tanto pela definição 1. como pela 2. facilmente se percebe o que quer dizer "agenda política". Andando mais para trás, para um dicionário com mais de 30 anos, aparece apenas a definição 1., que também fará todo o sentido para o conceito de "agenda política".
O mais irritante é ouvir com frequência uns parolos que utilizam palavras portuguesas com o significado que as inglesas com elas parecidas têm. Só que às vezes palavras parecidas nas duas línguas têm significados diferentes ou mesmo opostos. Então entre os jornalistas é uma desgraça e acho que é porque são estúpidos e não pensam. Chutam para onde estão virados. Lembram-se da confusão entre carbúnculo e antraz? Das mais cómicas e acho que acima da capacidade média de muito jornalista que nunca utilizou um dicionário. Acabaram por inventar anthrax ou coisa parecida se bem me lembro.
De novo muito bem... 2 palermas já convém! :)
Pois eu dedico-me a catar erros e errinhos... tudo filtro no crivinho!
Revejo textos a eito... tosco vem mas sai perfeito!
Cozinhado com amor...
Rui leprechaun
(...tem mesmo outro sabor! :))
PS: Pois de pequenino vem... o gosto de fazer bem!!!
Pachelbel's Canon por 2 músicas juvenis
Caro Anónimo/Luís:
"Mas acho que os erros no magalhães são tantos que vê-se que ninguém mesmo leu aquilo, há ali qualquer coisa que bate mal, e acho uma mesquinhice um blogue deste tipo perder tempo com coisas dessas, para isso já temos os fracos jornais a tentar criticar coisas ainda mais fracas."
De facto, dada a seriedade e a natureza dos erros do Magalhães, é claro que ninguém leu/reviu 'aquilo'. Mas é por isso mesmo que não é NADA mesquinho que este, ou qualquer outro blogue, se preocupe com a questão. Ou acha que um projecto 'didáctico' que custou milhões de euros pode estar sujeito a um processo de controlo de qualidade ainda menos exigente que o de um blogue?
Cordialmente,
T.
P.S.: E tem toda a razão. Há ali muita coisa que não bate bem, a começar por quem e em que condições tratou de carregar as máquinas com as aplicações 'didácticas'.
ronto. A gente lá ficou a perceber que o Magalhães foi, então, uma queca sem amor ...
Desidério
É um exagero seu a afirmação de que os professores não transmitem valores. Desculpe mas eu faço-o...bem como muitos colegas desta tão mal entendida profissão. Custa-me, sabe, ouvir essas arengas habituais nos que pretendem denegrir esta profissão. Exerço-a, cansada, desiludida, mas com o empenho e a força de quem a"sente" como algo mais que uma profissão...com amor, sabe, consegue ainda entender?
Helena
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