Novo post do nosso colaborador habitual Rui Baptista:
“A lei por mais draconiana que seja, comporta compromissos e iniquidades” (George Steiner).
O oportuno post de Helena Damião, em que dá conta dos erros de Português denunciados pelo Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro, na proposta de diploma legal sobre a violência doméstica, trouxe-me à lembrança uma crítica desapiedada do político, jurista e cultor das belas-letras António Almeida Santos quando escreveu (e cito de memória) que algumas leis portuguesas chumbavam no exame da antiga 4.ª classe.
Um outro e bem elucidativo exemplo encontra-se na importante legislação que estabelece os contornos difusos entre os ensino universitário e politécnico. Refiro-me à Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro: Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).
Vejamos, por exemplo, a análise crítica que o seu articulado me merece no que concerne aos objectivos estabelecidos para estes dois subsistemas do ensino superior:
- “O ensino universitário visa assegurar uma sólida formação científica e cultural e proporcionar uma formação técnica que habilite para o exercício de actividades profissionais e culturais e fomente o desenvolvimento das capacidades de concepção, de inovação e de análise crítica” (ponto 3, do artigo 11.º da LBSE).
- “O ensino politécnico visa proporcionar uma sólida formação cultural e técnica de nível superior, desenvolver a capacidade de inovação e de análise crítica e ministrar conhecimentos científicos de índole teórica e prática e as suas aplicações com vista ao exercício de actividades profissionais” (ponto 4, ibid.).
Nestes dois formulários, as finalidades do ensino universitário e do ensino politécnico não diferem muito, exceptuando a escolha e a ordem das palavras (v.g., "assegurar" e "proporcionar"). Geram-se, assim, desnecessárias confusões nas interpretações por ausência da desejável linearidade da boa linguagem escrita.
Há, porém, uma diferença digna de registo: o ensino politécnico “ministra conhecimentos científicos de índole teórica e prática”, sendo o texto omisso no respeitante aos conhecimentos “práticos” dos universitários. Serão estes, apenas, futuros ratos de biblioteca ou profissionais de fato e gravata? Ou uma espécie de treinadores, de banco ou de bancada, incapazes de darem um simples pontapé numa bola?
Quanto à investigação científica, que deve ser a essência dos claustros universitários e pão para a boca da sua subsistência, nem uma simples referência. Dando o benefício da dúvida: A interpretação que faço desta legislação, que é a moldura da LBSE, não fará jus ao espírito do seu feitor? Ou seja, será que o que o legislador quis dizer não o disse e aquilo que disse não o quis dizer?
O conteúdo da LBSE não pode ou deve esconder as diferenças das competências do ensino universitário e do ensino politécnico, diferenças que têm dado azo a intromissões abusivas deste no âmbito daquele. Devia ter-se ido mais longe (nunca é tarde para as necessárias correcções!) balizando convenientemente aquilo que se pretende que seja a formação, científica, técnica e cultural, ministrada no ensino universitário e no ensino politécnico sem deixar qualquer sombra de dúvida interpretativa. As alterações introduzidas na LBSE (Lei n.º 49/2005), nos pontos 3 e 4 do 11.º artigo, já referem a investigação no domínio do ensino universitário e a investigação aplicada no domínio do ensino politécnico. Porém, o que sobeja dos respectivos articulados mantém-se inalterado.
Mas atentemos no seguinte: profissões há em que as respectivas fronteiras estão convenientemente definidas nas respectivas formação académica e exercício profissional, como sejam a de médico e a de enfermeiro. Noutras, contudo, as diferenças tendem a ser esbatidas. Quando se forma um engenheiro pela universidade e um engenheiro pelo politécnico o que se pretende do respectivo exercício profissional? E um professor saído da universidade e um outro do ensino politécnico os dois para o exercício do 3.º ciclo do ensino básico?
Ou seja, sem alteração desta situação, a crise educativa, na qual “os problemas essenciais são o das perspectivas profissionais e o do valor dos diplomas” (António Barreto, Público, 1/12/1996), só pode ter a mesma resolução que a quadratura do círculo – nenhuma. Aliás, Rafael Bluteau, o clérigo nascido em Londres de pais franceses que veio para Portugal nos finais do século XVII, já tinha avisado que “qual o Rey, tal a Ley, qual a ley, tal a grey”.
quinta-feira, 12 de março de 2009
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2 comentários:
Na 1.ª linha do 9.º §, deve ser feita a seguinte correcção:onde está " esconder ser as diferenças", passa a ter a seguinte redacção: "esconder as diferenças".
Já foi emendado no texto.
Carlos Fiolhais
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