quinta-feira, 12 de março de 2009

Leis que chumbam no exame da antiga 4.ª classe

Novo post do nosso colaborador habitual Rui Baptista:

“A lei por mais draconiana que seja, comporta compromissos e iniquidades” (George Steiner).

O oportuno post de Helena Damião, em que dá conta dos erros de Português denunciados pelo Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro, na proposta de diploma legal sobre a violência doméstica, trouxe-me à lembrança uma crítica desapiedada do político, jurista e cultor das belas-letras António Almeida Santos quando escreveu (e cito de memória) que algumas leis portuguesas chumbavam no exame da antiga 4.ª classe.

Um outro e bem elucidativo exemplo encontra-se na importante legislação que estabelece os contornos difusos entre os ensino universitário e politécnico. Refiro-me à Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro: Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).

Vejamos, por exemplo, a análise crítica que o seu articulado me merece no que concerne aos objectivos estabelecidos para estes dois subsistemas do ensino superior:

- “O ensino universitário visa assegurar uma sólida formação científica e cultural e proporcionar uma formação técnica que habilite para o exercício de actividades profissionais e culturais e fomente o desenvolvimento das capacidades de concepção, de inovação e de análise crítica” (ponto 3, do artigo 11.º da LBSE).

- “O ensino politécnico visa proporcionar uma sólida formação cultural e técnica de nível superior, desenvolver a capacidade de inovação e de análise crítica e ministrar conhecimentos científicos de índole teórica e prática e as suas aplicações com vista ao exercício de actividades profissionais” (ponto 4, ibid.).

Nestes dois formulários, as finalidades do ensino universitário e do ensino politécnico não diferem muito, exceptuando a escolha e a ordem das palavras (v.g., "assegurar" e "proporcionar"). Geram-se, assim, desnecessárias confusões nas interpretações por ausência da desejável linearidade da boa linguagem escrita.

Há, porém, uma diferença digna de registo: o ensino politécnico “ministra conhecimentos científicos de índole teórica e prática”, sendo o texto omisso no respeitante aos conhecimentos “práticos” dos universitários. Serão estes, apenas, futuros ratos de biblioteca ou profissionais de fato e gravata? Ou uma espécie de treinadores, de banco ou de bancada, incapazes de darem um simples pontapé numa bola?

Quanto à investigação científica, que deve ser a essência dos claustros universitários e pão para a boca da sua subsistência, nem uma simples referência. Dando o benefício da dúvida: A interpretação que faço desta legislação, que é a moldura da LBSE, não fará jus ao espírito do seu feitor? Ou seja, será que o que o legislador quis dizer não o disse e aquilo que disse não o quis dizer?

O conteúdo da LBSE não pode ou deve esconder as diferenças das competências do ensino universitário e do ensino politécnico, diferenças que têm dado azo a intromissões abusivas deste no âmbito daquele. Devia ter-se ido mais longe (nunca é tarde para as necessárias correcções!) balizando convenientemente aquilo que se pretende que seja a formação, científica, técnica e cultural, ministrada no ensino universitário e no ensino politécnico sem deixar qualquer sombra de dúvida interpretativa. As alterações introduzidas na LBSE (Lei n.º 49/2005), nos pontos 3 e 4 do 11.º artigo, já referem a investigação no domínio do ensino universitário e a investigação aplicada no domínio do ensino politécnico. Porém, o que sobeja dos respectivos articulados mantém-se inalterado.

Mas atentemos no seguinte: profissões há em que as respectivas fronteiras estão convenientemente definidas nas respectivas formação académica e exercício profissional, como sejam a de médico e a de enfermeiro. Noutras, contudo, as diferenças tendem a ser esbatidas. Quando se forma um engenheiro pela universidade e um engenheiro pelo politécnico o que se pretende do respectivo exercício profissional? E um professor saído da universidade e um outro do ensino politécnico os dois para o exercício do 3.º ciclo do ensino básico?

Ou seja, sem alteração desta situação, a crise educativa, na qual “os problemas essenciais são o das perspectivas profissionais e o do valor dos diplomas” (António Barreto, Público, 1/12/1996), só pode ter a mesma resolução que a quadratura do círculo – nenhuma. Aliás, Rafael Bluteau, o clérigo nascido em Londres de pais franceses que veio para Portugal nos finais do século XVII, já tinha avisado que “qual o Rey, tal a Ley, qual a ley, tal a grey”.

2 comentários:

Anónimo disse...

Na 1.ª linha do 9.º §, deve ser feita a seguinte correcção:onde está " esconder ser as diferenças", passa a ter a seguinte redacção: "esconder as diferenças".

De Rerum Natura disse...

Já foi emendado no texto.
Carlos Fiolhais

AINDA AS TERRAS RARAS

  Por. A. Galopim de Carvalho Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais ...