segunda-feira, 16 de março de 2009

O GPS DO INFORTÚNIO

Com a devida vénia, transcrevemos parte da coluna do sociólogo Alberto Gonçalves que foi publicada no "Diário de Notícias" de ontem:

"Parece que, após ouvir na rádio a história de uma mulher assassinada pelo namorado, o dr. Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra, decidiu baptizar uma rua da cidade com o nome da falecida. Para não perder a deixa, o dr. Moita-Flores, famoso comentador televisivo e menos famoso edil, anunciou iniciativa semelhante em Santarém. Ambos os gestos provavelmente indiciam uma moda que, até às "autárquicas", varrerá a nação de norte a sul: imortalizar os alvos de companheiros psicóticos, enquanto, diga-se de passagem, os companheiros psicóticos são jovialmente mandados em paz pela polícia (sucedeu agora em Portimão).

No mínimo, a tendência é curiosa. Com acerto discutível, a toponímia tradicional ficava-se por exemplos de bravura, inovação, eficácia, criatividade, generosidade, etc. As senhoras em questão são exemplos do quê? Do azar? De péssimas escolhas sentimentais? Do lado negro do casamento (um alerta aos gays)? E o que rezarão as placas, "Avenida Manuela Pires, Receptora de Tareias Conjugais (1977 - 2009)"? Sinceramente, não sei.

Sei que, se a ideia é transformar os desafortunados em modelos, não há razão para que as vítimas de violência doméstica mereçam mais atenção que as vítimas de violência pública e de incidentes em geral. Urge que outros autarcas com apetites publicitários e fome eleitoral garantam ruas aos mortos em consequência de assaltos à mão armada, acidentes rodoviários, doenças infecto-contagiosas, suicídios, negligência médica e tombos mal dados. Aliás, as vítimas nem precisam de ser mortais: só um coração empedernido negaria praceta ou simples viela a cidadãos diabéticos, órfãos e adeptos do Sporting.

Para terminar com uma nota de erudição, recordo o episódio antigo dos Simpsons no qual um rapazinho acidentado é erguido a herói. Herói porquê? Porque, explica Homer à filha, o rapazinho caiu a um poço e não consegue sair. Não conheço melhor metáfora do nosso tempo e das referências que o guiam."

Alberto Gonçalves

1 comentário:

carolus augustus lusitanus disse...

Excelente artigo, sim senhor, a chamar a atenção (no momento certo) para as «referências [erradas] que [.] guiam o nosso tempo» (e também, se calhar, as nossas opções, sejam elas políticas ou outras)...

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