domingo, 22 de março de 2009
O NOSSO CIENTISTA NOBEL
Uma vez que este ano se comemoram os 60 anos do único Prémio Nobel português de ciências, Egas Moniz (na foto, tirada em Madrid em 1918), recupero um meu texto publicado no livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva):
Em 1949, quando a Segunda Guerra Mundial já tinha terminado e a esperança de paz e liberdade era manifesta, o Prémio Nobel da Medicina e Fisiologia era atribuído “ex aequo” ao médico português António Egas Moniz e ao médico suíço Walter Hess.
O acontecimento, para nós decerto extraordinário – tratou-se afinal, desde o início do século quando se inauguraram os prémios Nobel até aos dias de hoje, do único Prémio Nobel Português na área das ciências–, não encontrou ressonância na imprensa nacional da época, tendo a notícia ficado resumida a umas linhas envergonhadas numa página interior. A explicação mais imediata para esse silêncio foi talvez o conhecido posicionamento político do laureado. Nas palavras cruas mas esclarecedoras de um alto funcionário do regime de Salazar o prémio fora concedido a um “filho da puta da oposição”…
Mas a explicação mais profunda para o silêncio é o afastamento que os portugueses, desde os tempos dos Descobrimentos, têm mantido em relação à ciência e aos cientistas. Os portugueses têm, pelo menos até há pouco, tratado a ciência, desde a mais exacta, a Matemática, passando pela Física, Química e Biologia, até à menos exacta, a Medicina (deixamos aqui de lado, sem qualquer desprimor, as ciências humanas), como uma coisa estranha, uma coisa que lhes é alheia, algo que, na melhor das hipóteses, se importa e tolera em doses que bastem. Antes mesmo de se considerar a questão de termos silenciado os poucos cientistas portugueses que foram distinguidos internacionalmente há que enfrentar a questão de eles terem sido proporcionalmente poucos assim como a questão mais geral de ter sido exíguo o contingente geral de cientistas de onde os melhores podem ser extraídos. Portugal é, de facto, um país geográfica e demograficamente pequeno, mas a sua quota de prémios Nobel em ciências (e, já agora, também em literatura, onde o nosso panorama não é melhor do que nas ciências: temos apenas um!) não consegue competir com a de países europeus mais pequenos, como a Holanda ou a Áustria, que acarinharam e desenvolveram as ciências e as tecnologias, sedimentando uma sólida cultura científica. Em conformidade com esse facto, a nossa comunidade científica não tem ultrapassado uma percentagem da população que fica bastante aquém dos valores observados em países como os dois exemplos referidos. A prolongada falta de liberdade e de tolerância, manifesta na divisão maniqueísta na política entre “nós” e os “outros” (os filhos das nossas mães e os filhos das mães dos outros), será decerto um factor estrutural que tem travado o nosso desenvolvimento.
Egas Moniz foi a excepção – o prémio, o reconhecimento internacional - que confirmou a regra – o atraso, o isolamento nacional. Mal avisados andarão os historiadores de ciência que porventura achem que a excepção apaga a regra, que o prémio individual compensa o atraso colectivo, e que escrevam, nessa lógica, biografias meramente hagiográficas esquecendo-se de discutir o respectivo contexto, o cenário social, económico e político que deve servir de quadro de referência. A história da ciência em Portugal – ou da falta dela – nos últimos cem anos está ainda por fazer. Quando se fizer, concluir-se-á, com fundamento maior do que aquele que já está hoje disponível, que temos mais uma sucessão de omissões e hiatos do que de realizações e progressos.
Egas Moniz foi um cientista que, de um modo inédito e numa época em que tal era difícil, conseguiu realizar quase toda a sua carreira científica em Portugal. Para tanto, teve de arrostar com correntes fortemente adversas, com a falta de tradição, com a ausência de ambiente e com a pobreza de meios. Facto sintomático foi, desde logo, a secundarização de Egas Moniz no concurso para professor catedrático em Coimbra e a sua concomitante deslocação para Lisboa, onde acabou por fazer nome e escola. Moniz foi um cientista num país cuja história revela a falta de ciência. Teve de quebrar a tradição, criar ambiente, reunir meios.
O que é um cientista? Um cientista é alguém que tem dentro de si uma “curiosidade apaixonada”, como Einstein disse um dia. Alguém que coloca questões sobre o mundo ou sobre as pessoas que o habitam e procura com método, mas também com paixão, as respostas para elas. Cultivando analogias, colocando hipóteses, verificando possibilidades. Experimentando, experimentando sempre. Egas Moniz foi um procurador de respostas ao longo da sua vida.
Mas, acima de tudo, um cientista é alguém que não tem receio de errar na procura constante que empreende: sabe que erra, uma e outra vez, mas esforça-se por o fazer cada vez menos (errar é humano, mas errar muito e repetidamente é inumano!). É alguém que sabe reconhecer o erro e corrigi-lo. E aqui radica a questão quiçá mais interessante para os historiadores de ciência, actuais ou futuros, que se interessem pela obra do cientista português que foi nobelizado. Terá Egas Moniz errado na contribuição cirúrgica – a leucotomia pré-frontal – que lhe valeu o Prémio Nobel? E terá ele errado ao não reconhecer o erro?
A memória do nosso único prémio Nobel em ciências, a quem está de resto associada uma outra invenção de utilidade indiscutível - a angiografia cerebral -, está tocada pela sombra das dúvidas que foram surgindo à volta da leucotomia pré-frontal, nomeadamente a justificação científica desse acto médico e as implicações éticas que ele envolve: será lícita a destruição irreversível de um cérebro e, por isso, de uma mente humana? Sejamos frontais: a questão não é tanto saber se o método é hoje discutível - está posto de lado em favor de tratamentos químicos mais “soft” – mas sim saber se, na data em que foi proposto, nos anos trinta, o método era suficientemente justificável e foi suficientemente justificado.
O neurologista João Lobo Antunes (autor de “Numa Cidade Feliz” e de outros notáveis livros de ensaios) no prefácio à fotobiografia de Egas Moniz publicada pelo Círculo de Leitores (de Rui Pita, Leonor Pereira e Rosa Maria Rodrigues, “Retrato de Egas Moniz”, 1995) reconhece que é discutível a justificação científica da leucotomia (fala de “inconsistência na fundamentação científica da intervenção de Moniz”), mas defende Moniz dos seus mais escarniçados críticos (alguns são bastante violentos, como o neurologista norte-americano Oliver Sacks que se atirou não só a Moniz mas também ao seu compatriota Walter Freeman, o campeão das leucotomias). Lobo Antunes, em criança, conheceu pessoalmente Egas Moniz, com quem o seu pai, também médico, trabalhou. Ser-lhe-á talvez dificil descartar a carga afectiva ligada à memória do seu pai e do mestre do seu pai.
Ainda não passou o tempo suficiente para haver o necessário distanciamento, para que os cientistas e os historiadores de ciência ensaiem um pensamento crítico acerca da obra de Moniz. O tema da história da leucotomia é interessantíssimo e está a ser estudado em diversos países (por exemplo, a Suécia e o Brasil), com conclusões parciais variadas. Há que esperar por mais conclusões e por conclusões mais completas...
Mas a Medicina, que atrás colocámos nos antípodas da Matemática no globo das ciências, será mesmo uma ciência? Era a Medicina nos anos trinta, quando surgiu a leucotomia, uma ciência? É a Medicina hoje uma ciência? Na Medicina há, com certeza, curiosidade, procura sistemática e metódica, experimentação. E admite-se o erro. Egas Moniz não terá criticado a sua leucotomia, mas muitos médicos afirmam que se trata de um erro. Os exemplos de crítica médica abundam de tal maneira que se pode afirmar que a Medicina é hoje uma ciência como já o era nos anos trinta. Mas não o era no tempo de Hipócrates, do qual a Medicina moderna herdou o juramento mas não a teoria dos humores (lembremos que a Matemática de hoje contém intocada toda a geometria de Euclides e que a Física actual é devedora profunda de Arquimedes). A Medicina é uma ciência em progresso tão vertiginoso que, daqui a setenta anos, achará tão antiquadas os nossos saberes e as nossas técnicas de hoje como nós hoje achamos as leucotomias dos anos trinta... Serão erros crassos algumas das coisas que hoje fazemos?
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6 comentários:
O Sal azar tinha a alma pequena, e teve o dom de tornar as almas dos portugueses ainda mais pequenas. Mas vejo que há agora uma comunidade científica de protugueses em ascensão, em Portugal e no estrangeiro, alguns pouco conhecidos ( quem conhece o Prof. Lima de Faria,p.ex.?)de que nos devemos orgulhar.E nas letras não é só o Saramago.O Lobo Antunes e a Agustina, e sobretudo, o Herberto Helder, não são inferiores aos estrangeiros nobelizados.
Henrique Dória tem razão, mas o paralelo que é aparente no seu comentário entre a época de Salazar e a actual quer para as ciências quer para a literatura parece-me pouco correcto. Se é certo que a comunidade científica actual é muito mais numerosa do que no tempo do Estado Novo, já nas letras não me parece que Salazar, apesar da censura, tenha conseguido "tornar as almas dos portugueses ainda mais pequenas". Aliás, os escritores de que fala já tinham abundante produção antes do 25 de Abril.
Num dos canais temáticos da tvcabo vi um documentário sobre Walter Freeman.
O que aquele homem fez...
Infelizmente, lá foi referido que o trabalho de Egas Moniz serviu para Walter Freeman justificar as suas acções...
Num filme de terror tinha visto uma referência a lobotomias efectuadas com picadores de gelo mas pensava que era só para assustar.
Mas a realidade consegue sempre ser mais assustadora que a ficção.
Mulheres lobotomizadas apenas porque estavam infelizes...
Só a ideia de ver um picador de gelo enfiado pela órbita ocular com o recurso a um martelo e posteriormente ver mexer o picador em todas direcções...
Não consegui ver as fotos...
O novo filme do Zack Snyder vai utilizar essa referência (lobotomias de Walter Freeman).
Foi este o documentário que vi.
O vídeo é muito violento, mesmo muito violento.
http://www.youtube.com/watch?v=_0aNILW6ILk
Portugal é um País que está destinado a lutar. Sobretudo, os Portugueses estão destinados a lutar. Só Deus (tão defendido pela história do Deus, Pátria e Família) é que sabe o atraso em que vivemos forçosamente. Ainda hoje realizei que até na regulação da hora Portuguesa, nós vivemos num País em que trabalhar não é prioridade. É antes viver na angústia do "gostaria de ser mais prestável ao Mundo, mas não consigo e não sei porquê". Há pessoas em Portugal que gostariam muito de poder estar lado a lado com Egas Moniz, mas é preciso dar o passo seguinte ao que foi dado no 25 de Abril.
Fantástico Blog, Parabéns a Coimbra
«Serão erros crassos algumas das coisas que hoje fazemos(?)» [e sabemos]?
Claro, a começar pela visão cartesiana da existência e pelo mecanicismo newtoniano das ciências (ditas naturais e/ou sociais).
Resumindo: a visão moderna do mundo precisa de uma revisão de paradigma, de uma nova abordagem, parecendo ser esta a hora certa para, todos, num esforço de transcendência pessoal, penetrarmos nos arcanos da vida.
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