sábado, 28 de abril de 2007

FIEL E INFIEL


A minha crónica do "Público" de ontem aborda o modo como algumas empresas de novas tecnologias tratam os consumidores portugueses. As tecnologias podem ser novas, mas o Portugal onde chegaram é velho e relho. A racionalidade, por vezes, não chegou! Não é só a TMKafka, poderia referir a NetKafka, que persiste em telefonar de sítios anónimos às horas mais inconvenientes aos seus clientes propondo-lhes serviços que eles não querem...


Não lembraria a ninguém que se tenha de pagar menos se se for fiel e que se tenha de pagar mais se se for infiel. Mas lembrou às empresas de comunicações nacionais.

Descobri isso à minha custa. Ninguém na empresa de comunicações móveis de que sou cliente (ou melhor, era) me havia informado que eu tinha de lhe ser fiel durante um tempo (vá lá que não era para sempre, na saúde e na doença, até que a morte nos separasse), quando me deram um contrato para assinar. Devia estar em letras miudinhas, muito miudinhas. Mas eu, mesmo sem saber da obrigação jurídica, vivi na maior fidelidade até ter avariado uma peça de hardware. Aí disseram-me que tinha de fazer um novo contrato, mas - azar meu - tinha de me manter fiel ao primeiro pelo prazo estabelecido, isto é, tinha, apesar de não usufruir do serviço, de respeitar o compromisso de fidelidade.

Não gostei de saber. Eu queria mesmo ser fiel àquela empresa, que me tinha assegurado fartas e boas comunicações durante largos anos. Mas só pagando um contrato e não dois. E não percebia bem porque é que tinha de fazer segunda fidelização se já tinha a primeira, ou, em alternativa, porque é que tinha de fazer um contrato, mais caro, de infiel, quando tinha um outro, mais barato, de fiel. Seria, de resto, uma situação bastante caricata ser fiel e infiel ao mesmo tempo e logo à mesma pessoa, quero dizer empresa. Seria como o gato de Schroedinger, meio morto e meio vivo...

Expliquei o evidente paradoxo à senhora que me atendeu no centro das telecomunicações nacionais que fica nas Picoas, em Lisboa. Mas ela não estava interessada na lógica, ou melhor, a lógica da empresa devia ser quântica, enquanto eu queria uma lógica clássica. E, megarrápida, começou a tratar-me por "senhor Carlos". Também não gostei de ser assim tratado. Porque ou ela tinha suficiente intimidade comigo e me tratava pelo primeiro nome ou então não tinha e teria de acrescentar ao "senhor" o meu nome de família. A última pessoa que me tinha tratado por "senhor Carlos" tinha sido uma enfermeira com uma seringa na mão e, dessa vez, dadas as circunstâncias, não reagi. Mas nas Picoas fiquei picado, até porque não me lembrava de o doutor Lindley Cintra ter incluída essa entre as formas de maior cortesia que constam do seu livro "Sobre 'Formas de Tratamento' na Língua Portuguesa". Devia ser uma forma de tratamento moderna, ministrada nos cursos rápidos de formação dos operadores (no caso, dizer que houve um curso rápido é muito favorável, pois suspeito de que não deve ter havido curso nenhum).

Não, não havia ninguém acima na hierarquia para falar com o fiel cliente. O cliente naquele sítio não só não tinha razão como nunca teria razão ("the client is always right" é uma expressão inglesa, a qual, eu já devia saber, não tem tradução em português). Eu tinha mesmo de continuar a ser fiel e era assunto arrumado. A empresa não gostava obviamente de mim, mas queria-me preso a ela. Senti-me, salvo seja, trancado numa prisão. E, como todo o prisioneiro aspira à liberdade, tomei a súbita resolução de fugir. Ir-me embora para outra. Quando um cliente não tem razão num lado, espera tê-la noutro. Na pressa de me evadir, nem sequer contemplei a hipótese de todas as empresas de telecomunicações terem contratos de fidelidade escritos em letras minúsculas e de todas elas me tratarem por "senhor Carlos". Mas, antes de escapar, ainda dei uma chance à minha fiel companheira de tantas chamadas durante anos a fio (ou, se me é permitido o trocadilho, durante anos sem fio). Se fizesse o favor, importava-se de comunicar comigo se acaso houvesse alguma reconsideração?

Assim que saí, com a sofreguidão da infidelidade, à procura de outra, soou o "bip" das mensagens. Era a minha ex-empresa, à qual eu tinha de ser fiel, e a esperança renasceu. Mas ela, em vez de me dar razão e me querer de volta, queria apenas vender-me bilhetes para um concerto rock, com um desconto por ter acumulado não sei quantos pontos. Que pena estar já tudo acabado entre nós!

4 comentários:

José Luís Malaquias disse...

Caro Doutor Fiolhais,

Para além de lhe exprimir a solidariedade de quem também fugiu da mesma empresa por um motivo semelhante, venho-lhe expôr uma teoria que eu tenho acerca da dialética entre serviços públicos e privados.

É doutrina assente na sociedade actual que os serviços públicos são uma miséria e um covil de parasitas que não fazem nada, enquanto os privados são um modelo de eficiência, sempre atentos às necessidades do cliente. É evidente que, essa doutrina se baseia no estereótipo do funcionário público que carimba papeis atrás de uma secretária (médicos, professores, engenheiros nunca são funcionários públicos) e no estereótipo do operário privado que, qual abelha obreira, trabalha de sol a sol, para produzir a riqueza do país (não há cá técnicos de marketing, especialistas de imagem, nem outras profissões que não se percebe muito bem para que é que servem.

Pois, eu acredito que a realidade é outra. Até à liberalização dos grandes serviços do estado (telefones, electricidade, água), o estado tinha de lidar com milhões de cidadãos, enquanto uma empresa privada tipicamente tinha uma carteira de alguns milhares de clientes. Daí, a imagem muito mais aligeirada da empresa privada relativamente ao bolorento estado.

Simplesmente, com a liberalização, passou a haver empresas privadas que também têm de lidar com milhões de clientes e o que constatámos é que sabem ser bem mais burocratas do que o pior estado alguma vez sonhou. Qualquer neoliberal digno do seu nome já estaria a bufar se uma qualquer repartição pública o tivesse sujeito a metade das provações que passou às mãos dessa empresa. Mas, como se trata de uma empresa privada, diz-se eufemisticamente que tem uma "presença agressiva no mercado."

Por fim, para o animar com o pensamento de que não é só a si que acontecem estas situações caricatas, deixo-lhe o link href="http://arrastao.weblog.com.pt/arquivo/2007/04/a_novela_do_homem_que_nao_quer" para uma história rocambolesca que se está a passar com uma pessoa que talvez conheça...

Um abraço,

Zé Luís

José Luís Malaquias disse...

Acho que ainda não sei usar bem estas tags, o link é O homem que não quer ser engenheiro civil
Espero que agora funcione.

P Amorim disse...

Pois a mim já me aconteceu telefonarem da EDP a pretenderem vender-me seguros de saúde. Perguntei várias vezes se era mesmo da EDP, até ficar convencido. E, à semelhança dos contratos com letras miudinhas, a adesão teria de ser feita imediatamente e pelo telefone.
Sem mais comentários.

devoured elysium disse...

Não era da EDP...

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