sábado, 3 de novembro de 2012

2.ª Parte da Conferência de Bento de Jesus Caraça na Universidade Popular (22/03/1931)

“Pode argumentar-se que isso não é verdade, pois muitas pessoas se elevam do fundo da massa a altas situações sociais; mas, em primeiro lugar, se se comparar o número delas com a totalidade, ele fica reduzido a bem pequenas proporções e quantos homens de grandes aptidões se tem perdido por as suas circunstancias de modo nenhum lhe terem tornado possível essa ascensão.

Em segundo lugar, que se contem, desses tais «muitos», quantos se conservaram sempre fiéis à sua própria classe e aos seus ideais de emancipação humana e não desertaram ingressando no campo contrário!

Este problema é tão grave e constitui um drama tão pungente que escritores da vanguarda chegam a advogar o afastamento dos proletários da ideia de cultura. Se a cultura é utilizada pela classe burguesa como elemento de opressão e se o proletário culto se transforma num burguês, renegando a sua classe, acabe-se com a cultura!, dizem eles.

Será de defender e seguir esta atitude? Sê-lo-ia se o desenvolvimento da cultura levasse fatalmente à opressão, mas a cultura não significa de modo nenhum opressão pois que, como se viu, «compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem».

O que deve fazer-se é, não destruir a cultura, mas pelo contrario intensificá-la e desenvolvê-la cada vez mais, acabando com o seu monopólio numa classe e restituindo-lhe toda a pureza dos seus fins.

Deve portanto promover-se a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante.

Compreendendo a cultura assim e não como um conjunto de coisas que estão escritas nos livros e que os estudantes têm que decorar não se sabe bem para quê, quais devem ser os seus objectivos e que formação mental deve procurar conseguir no homem?

Deve em primeiro lugar dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade.

Em todos os homens existe a mesma parcela de dignidade, simplesmente nalguns está de tal modo adormecida que chegam a dar a impressão de seres inferiores, gerando os sentimentos de humilhação. A humilhação do homem perante o homem é imoral.

Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dento do mais belo e nobre conceito de liberdade - o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais.

Assim, a cultura e liberdade identificam-se - sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura. Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas solidariedade de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria - solidariedade do homem com todos os outros homens de todo o mundo.

Este internacionalismo não significa de modo nenhum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o seu alargamento a todas as nacionalidades - a formação da pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe bem o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda a humanidade.

As ideias de internacionalismo têm caminhado muito e têm conquistado muito terreno. Os próprios governos dos Estados promovem a criação de organismos superiores a cada um dos Estados independentes - Sociedade das Nações, Federação Europeia. São portanto internacionalistas, dum internacionalismo diferente é claro do aqui exposto, pois enquanto este se baseia na fraternidade real dos povos, aquele tem por objectivo a defesa de certos interesses que se não encontram já bem assegurados, considerando-se cada um Estado isolado, dentro das suas fronteiras.

Postos assim os objectivos morais essenciais da cultura, vejamos qual deve ser o agente da criação e desenvolvimento dessa cultura - Estado ou as instituições particulares?

Evidentemente que no estado actual de organização social só o Estado tem condições para ser esse agente. Como? Proporcionando a todos a aquisição da cultura nas suas escolas. A escola deve ser portanto aberta a todos e por consequência gratuita em todos os seus graus - primário, secundário e superior. Enquanto certos graus de ensino, pelo seu custo, só puderem ser frequentados pelos ricos, a cultura continuará a ser monopólio duma classe.

Mas não basta que a Escola seja gratuita; para que ela seja na realidade acessível a todos é preciso ainda que o Estado vá mais longe, procedendo à sustentação material daqueles que a frequentam, para que se não vejam obrigados, por falta de meios, a afastar-se dela empregando o seu tempo em ganhar o pão para si e quantas vezes também para os seus.

Mas ainda mesmo que assim fosse, era preciso proceder a uma renovação constante, pois o professor, desde que seja funcionário público, sente uma tendência - lei do menor esforço - para a cristalização nos métodos de ensino. É necessária essa renovação nas pessoas e nos métodos; a classe dos professores não deve nunca descansar sobre os resultados conseguidos na véspera.

Por enquanto, como a Escola não é entre nós nada do que deveria ser, é preciso fazer um grande esforço e uma grande campanha no sentido da radical modificação do actual estado de coisas.

Enquanto a Escola não seguir no seu ensino a orientação exposta, não será um instrumento de liberdade e progresso mas sim um elemento impeditivo da felicidade, liberdade e justiça sociais.

Por várias razoes, a iniciativa desse movimento de transformação e renovação não sai do Estado; às Universidades Populares incumbe portanto o dever de serem as suas impulsionadoras activas.

A sua acção é mais livre do que a da Escola Oficial visto não terem as peias que esta tem e não terem a obrigação do cumprimento de certos programas previamente fixados. A sua liberdade na escolha das matérias do seu ensino é completa e podem ainda proporcionar a adultos que tem a sua vida de trabalho, e sem que a interrompam, a aquisição de conhecimentos que não poderiam ir buscar, dadas as condições da sua vida, à Escola Oficial.

As Universidades Populares devem auxiliar todas as iniciativas particulares com os mesmos objectivos e ir ao encontro de todas as aspirações culturais das massas trabalhadoras, tentando sempre satisfazê-las.

O seu ensino não deve cristalizar em certas fórmulas; se isso acontecer, tornar-se-ão obstáculos ao progresso. Devem constituir, por assim dizer, a vanguarda do ensino e a sua acção, sem contrariar a da Escola, deve ser um complemento dela.

A sua utilidade e justificação da sua existência está nas possibilidades de libertação espiritual que der às massas trabalhadoras.

Às organizações sindicais cabe um papel enorme nesse trabalho de libertação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros.

A emancipação futura da humanidade será o resultado da união de todos os esforços individuais e colectivos orientados pelos mesmos ideais.”

2 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Muitas vezes as pessoas de esquerda iludem-se ao ponto de julgar que os bons estão todos no seu lado. Não é assim, o Senhor Professor Rui Baptista sendo uma pessoa de direita é uma pessoa boa.
A sua coragem, a entrega revelada a uma causa em que acredita, e a sua coerência ajuízam bem da sua formação moral e grande valor.
O Senhor Professor Rui Baptista é um homem de pensamento livre porque tem como objectivo a felicidade do ser humano e a sua intervenção é para que o futuro dos jovens seja melhor.
Vivemos um período em que é difícil acreditar nas pessoas que nos governam ou que pela televisão entram em nossas casas. Para mim é motivo de grande satisfação pessoal poder conversar com este Homem.
Obrigado Professor. Bem Haja.

Rui Baptista disse...

Que fazer perante este seu comentário, Eng.º Ildefonso Dias? Agradecer e tudo fazer paracontinuar a merecer palavras tão generosas e amigas. Um abraço comovido,

Rui Baptista

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