quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A fatalidade da escolha

Um dos grandes debates em Educação, centra-se na antinomia neutralidade ou intencionalidade. Opinam uns que o educador (entendido em sentido amplo) não pode escolher os caminhos que o educando (entendido também em sentido amplo) deve trilhar, porque é a este e não àquele que a educação diz respeito e beneficia. Dizem outros que o educador deve determinar que o educando terá de saber, ser, fazer, porque este, porque educando, não tem (ainda) capacidade de autodeterminação. Nessa troca de argumentos, Agostinho da Silva apresenta uma tese tão simples quanto profunda: mesmo quem apregoe a neutralidade como princípio orientador da sua acção, o educador não pode fugir à fatalidade de escolher mesmo que seja a possibilidade de o educando a escolher o seu próprio caminho.
"Meu caro Amigo:

Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, seles forem meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas.

Os meus conselhos devem servir para eu você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhe: a de se não conformarem.

A réplica, como você já está vendo, também é fácil; se o meu desejo é sempre de que se não conformem, se quero neles a mesma força que existe ou desejaria que existisse, sou tão inquisitorial como qualquer outro. Todo o mestre (deixe-me pôr o caso como que impessoalmente e sem de modo algum pretender ser mestre), todo o mestre quer os seus discípulos iguais a ele, mesmo quando parece dar-lhes a maior liberdade.

Dirá o Luís que seria talvez o modelo de mestre o que, por exemplo, não ser do tipo conformado os reconhecesse e quisesse a todos, de qualquer tipo que eles fossem; agora ponho eu objecções: querer tudo, tudo aceitar mas de dentro, sinceramente não apenas em palavras ou em atitudes de superfície não é ser conformado nem o contrário. Não é não ser nada: é ser tudo, como Deus. Claro está que Deus é o grande mestre: chove sobre o justo e o injusto. Mas nos mestres da terra, se não os alargarmos às proporções divinas, isto é, se os não fazemos desaparecer, há sempre uma semente de tirania.

Se sou mestre, não posso fugir à fatalidade. Supostamente, a tirania do contra agrada-me mais do que a tirania de seguir. Oponha-se sempre que possa. Dar-lhe-ei o conselho de se opor, mesmo quando lhe parece que tenho razão? Não me parece mau como exercício. Mas as melhores ginásticas deformam, se são um vício ao contrário. Não andar pouco, não andar muito. Toda a vida bem vivida, harmoniosamente vivida, vivida sem faltas, sem medidas, com felicidade, com serenidade, é uma vida medíocre. Tudo o que passe do medíocre tem em si o excesso e o erro.

Feche, pois, os ouvidos ao que lhe ensino, se alguma coisa lhe ensino; faça a viagem por sua conta e risco, você mesmo ao leme; se tivermos naufrágio, far-lhe-emos uma Elegia Maritima: duas páginas de versos todos cheios ao ritmo das vagas e desse estranho soluçar do vento nos altos mastros do navio."
In. Agostinho da Silva. Sete cartas a um jovem filósofo. Ulmeiro, pp. 39-41.

4 comentários:

Unknown disse...

Uma das formas mais antigas de tentar controlar o pensamento do outro é pela negativa: “não penses em...”; “não oiças o que eu digo...”.
Isto pode ser comprovado através de um exemplo muito conhecido. Experimentemos dizer a alguém que se quiser enriquecer é muito fácil: basta agarrar em duas moedas (de um Euro, por exemplo) e esfregar uma na outra; se entretanto não pensar em elefantes brancos elas reproduzir-se-ão...
Não creio por isso que Agostinho da Silva estivesse realmente a ser sincero (ou devesse ser levado à letra), quando escreveu “Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse”. Se realmente pensava assim talvez o melhor seria não o ter dito ou escrito...

Sobre a educação poder ser neutral ou intencional julgo que qualquer acto educativo voluntário, isto é, assumido como tal, tem de ser, ou deve ser, intencional, principalmente se tiver como finalidade última a autodeterminação do educando.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Bom dia professora Helena Damião, discordo da fatalidade de escolha. Aliás, nem combina com as idéias de Agostinho da Silva, que apenas terrível na simplicidade de homem, na limitação ou propiamente condição do significado maior da natureza humana. E, errar?! Convenhamos, é sempre perdoável.

Helena Damião disse...

Estimado Leitor Fernando Caldeira
Completamente de acordo: a educação escola não é nem pode ser neutral no que concerne à essência da sua função. Como Agostinho da Silva refere, "se sou mestre, não posso fugir à fatalidade". E daí a responsabilidade das escolhas educativas.
Cordialmente
M. Helena Damião

De Rerum Natura disse...

Que bela argumentação esta de Agostinho da Siva. Entendo-a bem, aceito-a e desejaria que muitos assim pensassem, aceitando tais consequências.
Cisfranco

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