"Já no passado remoto, inspirado,
descarada e livremente, no Dictionnaire
des Idées Reçues, de Flaubert, publiquei, no JL, um Dicionário de Ideias Feitas, aplicado à realidade local. Serviu, entre
outras coisas, para verificar que o sentido de humor não é o forte de muitos
portugueses. Alguns não perceberam. Outros zangaram-se. Nem deram por que um
dos alvos era eu próprio. Paciência.
Esse Dicionário está hoje muito desactualizado, sobretudo porque ninguém
previa o buraco negro em que nos iríamos ver metidos. Aqui vão pois algumas adendas
às ideias feitas então. Não sigo a ordem alfabética: vão as entradas à balda,
num mundo também à balda.
Estabilidade – Muito necessária. Sem ela o país vai para o
galheiro. E bico calado. O Senhor Cardeal Patriarca é contra o desassossego.
Paulo Portas – Muito patriota. Sempre a pensar no País e no Estado.
Contradiz-se, a bem de ambos. O País, primeiro. Postura impecável, até severa,
mesmo ao lado de garotada como o Passos e o Relvas. Não esquecer o Panteão.
Sabe-se lá!
Miguel Relvas – Campeão de maratonas universitárias. Espertíssimo,
mas pouco carácter. Não se pode ter tudo. Prestável para amigos de várias
latitudes, sobretudo, de algumas. Finge acreditar que o Passos é Primeiro
Ministro. É gozadíssimo, mas não se morre disso. Como as “sempre noivas”, é o
eterno “que vai ser remodelado”. Sim, porque será que o Passos não o manda
embora? (Fazer um ar sibilinamente entendido).
Vitor Gaspar – Sempre com olheiras muito pisadas: trabalha como o
caraças. Fala mui-to de-vagar – e com as sílabas todas e até mais algumas – mas
é difícil segui-lo, porque, em vez do Português, usa o Volapuque (aprendido com
o Minotauro do Jorge de Sena). Agradece tudo, mesmo as perguntas impertinentes
e agressivas. Educadíssimo. Patriota. Falha todas as previsões, mas, também, a
situação é o caraças. Competentíssimo: o Borges garante-o.
Euro – Moeda misteriosíssima, com poderes difíceis de decifrar.
Ficar nele é terrível, mas sair dele é muito pior. O Gaspar que explique (se
possível, em Português).
Troika – Agrupamento destinado ao emagrecimento financeiro de
países muito próximos do Mediterrâneo. Em Portugal, constituído por um careca,
um etíope e um alemão. Falam pouco e não riem. Quanto mais um país se enterra,
melhores notas dão. Não perguntar porquê: estranhos são os desígnios de Deus,
perdão, da Troika.
Impostos – O que o governo sabe fazer melhor. Curam qualquer
maleita. Mais desempregados? Mais impostos. Défice pior? Mais impostos. Défice
melhor? Mais impostos. É uma chave que abre todas as fechaduras.
Poupar – O que todo o português deve fazer, mesmo que não tenha
dinheiro, sobretudo quando não tenha dinheiro. É difícil de explicar, mas, em
Volapuque, fica claríssimo.
Piegas – Aquilo que os Portugueses são, segundo o Evangelho do
Passos. Sempre na choradeira, só porque estão desempregados e tesos. Não
percebem que só assim – com muita fominha e pouca roupa – a Pátria se salva. Se
não estão contentes, emigrem. Bom proveito lhes faça!
Pátria – Palavra que os ministros, sobretudo o Primeiro, devem
usar, com muita unção, quando estão entalados. Em casa onde não há pão, a
Pátria tem sempre razão.
Samuel Johnson – Citá-lo, para chatear os “patriotas”: “Quando oiço
alguém citar a palavra ‘pátria’, fico logo a saber que está ali um safardana”
(tradução livre de Eugénio Lisboa).
Desempregado – Estado normal de quem é português. Há alguns que, só
para arreliar, estão empregados. O PM não gosta nem de uns nem de outros, por
isso, taxa os dois: uns por estarem empregados, os outros por estarem
desempregados. Vá-se lá perceber isto.
Funcionários públicos – O ódio de estimação do PM e do António
Borges. São demais. Ganham demais (ganham mesmo mais do que o Nogueira Leite, o
Mexia ou o Jardim Gonçalves). É um escândalo. É preciso cortar, nos vencimentos
deles, à bruta, aconselha o Borges, que só arrecada perto de 30000 dele, por
mês (fora uns trocos, aqui e ali).
Pensionistas e Reformados – O pior de tudo. Nunca mais morrem. Anda
a gente a trabalhar para os sustentar. É deixar que as pensões se degradem dez
anos de enfiada e, depois, malhar nelas: aumentar muito o IRS, amandar-lhes com
uma sobretaxa de 4% e fazer ainda um corte entre 3.5 % e 10 %. Que é para
saberem! Nem assim o Dr. Borges fica satisfeito. Corja de mandriões: sentados
em bancos de jardim a olharem para o ontem... Nunca mais se mete na maldita
Constituição o direito patriótico de os eliminar!
Futuro – Se deixarmos de gastar, de comer, de beber, de ler, de ir
ao cinema, de vestir, de conversar, de tomar aspirina quando nos dói um dente,
de respirar, o futuro afigura-se brilhante. É preciso é perseverar, custe o que
custar.
Empresas – As pequenas abrem falência. As grandes servem para irem
para lá os ex-ministros, depois de terem exigido ao povo os sacrifícios tão
necessários à maior vitalidade dessas empresas e também da pátria. O sacrifício
dos pobres é a riqueza dos ex-ministros. É aquilo a que Pascal chamava “fazer
um bom uso das doenças”. A nossa doença – a pobreza – vai ser, num futuro
breve, a saúde florescente do Passos e do Relvas. Bem está o que bem acaba.
Finanças públicas – Não há.
Orçamento – Rascunho mal amanhado e efémero, com duas “colunas”: uma
de “despesa”, outra, de “receita”. A despesa, não se sabe bem porquê, é sempre
maior do que a receita e esta tem uma grande tendência a ser inferior ao
previsto. Mas há ministros (sobre o olheirento) que insistem, para lá de toda a
razão, em torná-las iguais. É esta teimosia que dá cabo da paz social.
Sobretudo porque os ministros gostam de igualizar a receita e a despesa,
aumentando a primeira, por via de irem sempre ao mesmo sítio. E o sítio não
gosta de tanta visita.
Economista – As suas previsões quase nunca dão certas, mas,
retrospectivamente, acertam sempre. Não serve para grande coisa, mas é muito
bem pago. Quanto menos acerta, mais necessário se torna e mais cresce a sua
reputação e o seu salário (em Volapuque, percebe-se melhor). Dar conselhos
ignominiosos aumenta muito a sua visibilidade e preço. Na Economia nada é
cartesiano. Dois e dois pode somar
quatro, mas depende de muita coisa. É só para iniciados (e convém que falem
Volapuque). Dizer que o país precisa deles: todos não são demais. Que é uma
ciência, cujos resultados têm, normalmente, uma margem de erro de mais ou menos
3000 por cento. É assim porque há muitos factores a ter em conta. E há sempre
um ou dois que, por qualquer razão, não foram metidos no computador. A solução é
aumentar os impostos e o salário dos economistas responsáveis pelo lapso.
Parece muito difícil de perceber, mas tente traduzir para Volapuque.
Que fazer? – Não há outra via. Perseverar ou mesmo reforçar, no
mesmo sentido. Aguentar. Apertar o cinto.
Portugal, daqui a cinco anos – Antigo país da Península Ibérica,
que morreu à míngua, de excesso...de cortes! (Ver Mário de Sá-Carneiro – “Morro
à míngua, de excesso...” -, que já previa isto e, por isso, se suicidou, o
maganão!).
Pronto! Desculpa Flaubert, lá do
assento etéreo, onde repousas, a mediocridade do meu Dicionário, se comparado com o teu. Cada um faz como sabe e pode.
Ou, como cantava o Eça:
“Pilriteiro que dás pilritos,
porque não dás tu coisa boa?Cada um dá o que pode,
conforme a sua pessoa”. "
4 comentários:
Muito bom. As entradas "Gaspar" e "Economista", entre outras, estão um mimo. Flaubert não teria dito outra coisa...
Boas
Bom dia, monsier professor Rui Baptista.
L'infant amour:le garçom, bonjour.
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