Texto do nosso leitor João Boaventura, que muito agradecemos. Publica-se, de seguida, a primeira de quatro partes.
Todos, na entrada da vida, se ignorantes não são, e o conhecimento enxergam, começam pelo registo de nascimento, o que representa o primeiro passo da parte dos progenitores, perante a incapacidade do nascituro. Ficou assim registado que Guilherme Centazzi, já lá vão dois centenários, nasceu a 20.11.1808, em Faro.
Dos registo escolares de Coimbra de 1800-1866, foi possível verificar, nos três anos lectivos de 1825-1826, 1926-1927, e 1827-1828, quais foram os resultados obtidos pelo estudante Guilherme Centazzi, filho de António Centazzi, natural de Faro, Rua Larga n.º 101 [1], e se indicam no seguinte quadro:
Os preparatórios aos estudos de medicina exigiam Matemática e Filosofia, daqui a razão da frequência do primeiro ano da primeira disciplina, ignorando-se os motivos de não se ter inscrito em Filosofia.
Com efeito, Centazzi revela na sua confissão que aos dezassete partiu para Coimbra [2], o que condiz com a idade atingida em 1825. Como na Relação dos estudantes do ano lectivo 1826-1827, inscrito está nas duas disciplinas, aluno Obrigado no 1.º ano - n.º 61 em Matemática, e n.º 68 em Filosofia – significa ter perdido um ano lectivo, por falta de proveito numa e por não se ter inscrito na outra, factos que omite nas suas confissões, possivelmente contrariado por considerar que os pais o tinham condenado aos estudos de medicina (…), sem saber o que faziam [3], ou por alguém o ter “honrado” com o título dedoidivanas, esquecido da idade que por norma rima com estouvamento e imprudência.
Na relação dos estudantes de 1827-1828, consta a inscrição no 2.º ano como Voluntário,em Matemática, com o n.º 24, e em Filosofia com o n.º 17, dando como morada a rua Arco das Cruzes (hoje Beco das Cruzes), de Coimbra, deduz-se que frequentou o primeiro ano com aproveitamento, porque assevera que no meu segundo ano (1828) fechou-se a Universidade em Maio por causa da guerra entre Dom Pedro e seu irmão Dom Miguel [4].
De facto, as graves perturbações políticas e sociais provocadas com o regresso do Infante D. Miguel, recém chegado de Viena, em 22.02.1828, levou ao encerramento, pelo período de quase um ano, da Universidade de Coimbra, por Carta Régia de 23 de Maio de 1828, tendo sido reaberta por Carta Régia de 27.03.1829.
Entretanto, a morte do pai, sem deixar bens, fê-lo depender do irmão, liberal, tenente do real corpo de engenheiros, nosso único amparo, o que o terá levado a inscrever-se no batalhão académico de Coimbra, de 1828, de que resultou, segundo escreve, dois ferimentos de bala; treze meses de clausura, escondido em casa [5].
Entre ficar e continuar nas guerras liberais ou exilar-se, tomou a decisão – possivelmente em Junho de 1829, fim da clausura – expressa no manuscrito
(…) "Parti para Paris, onde comecei os meus trabalhos, vivendo parcamente da resumida mesada que meu extremoso irmão me mandava, coadjuvada, durante alguns meses, pelos 45 francos que o governo francês deu aos emigrados portugueses a título de subsídio (…) e a gratificação que me deu a escola de medicina de Paris pelos meus serviços prestados durante a cólera na vila de Surene" (…) [6].
Se no combate à cólera, em 1832, frequentava Centazzi o 3.º ano de Medicina, o facto de se ter abalançado a editar um manual, edição do autor, Traité sur la manière de placer les os avec promptitude dans leur position respective (ed. Trinquart Libraire, Rue de l´École de Médecine, 91 / Chez l’Auteur, rue de Bussy, n.º 38 / Paris, 1833), quando ainda frequentava o 4.º ano do curso, significava que as ajudas seriam ainda insuficientes, mesmo incluindo as do amigo Bernardo José Fernandes, proprietário de um bergantim e de uma escuna, meios utilizados para importar cereais dos Açores e do Brasil, nos anos do vintismo [7]; e que nos anos 30 exerceu ainda o cargo de tesoureiro da Câmara Municipal de Lisboa, para acudir aos pobres refugiados com os socorros possíveis ou sopa económica [8].
Mesmo assim ainda teve os recursos proporcionados pela rabeca e pelo canto, com que a natureza o dotara, dando espectáculo num teatro de Paris, sem citar qual, o que reforça os altos custos do curso exigidos na inscrição trimestral das respectivas disciplinas: 4 trimestres por ano, ou seja, 16 trimestres até final do curso.
Não foi possível obter todos os dados deste estudante da Faculté de Médecine [9] (mesmo local da actual Université Paris Descartes), sita na Rue de L'École de Médecine n.º 12, durante os 4 anos de estudo, desde Junho ou Julho de 1829, data provável da sua chegada e inscrição no curso, em 1 de Outubro [10] de 1829, ou de 1830 no caso de ter perdido o 1.º ano, como em Coimbra – Centazzi é omisso nesta matéria – até à conclusão do mesmo, em 9 de Agosto de 1834, data em que se licenciou como médico, e, segundo registo seu, “aprovado nemine discrepante”, ou seja, por unanimidade, depois de defender a sua tese n.º 250, porque os dados dos estudantes, conservados nos Archives Nationales-Fontainebleau-Paris-Pierrefitte-sur-Seine, só podem ser utilizados em 2013, data em que a totalidade da transferência dos arquivos para a nova sede ficará concluída e acessível ao público.
Sabe-se que pelo dispositivo normativo de 02.02.1823, a Faculté de Médecine, que tinha sido fechada, reabriu totalmente reorganizada com 36 professores agregados para substituir os professores titulares das respectivas disciplinas teóricas e práticas (orientadas para a clínica), sempre que necessário e justificado, para que não houvesse qualquer interrupção nos estudos, donde Centazzi terá colhido os benefícios da actualização dos estudos e os melhores ensinamentos, nos dois âmbitos.
Na imagem abaixo pode ver-se o anfiteatro onde o Médico terá assistido às aulas da Faculté de Médecine (Fonte: BIU Santé, Paris)
Abaixo, imagem da fachada da Faculté de Médicine, em 1829, ano em que Centazzi terá provavelmente entrado (Fonte: BIU, Santé, Paris).
Abaixo a mesma fachada melhorada, em 1834, ano em que Centazzi defendeu a tese e terminou o curso (Fonte: BIU, Santé, Paris).
NOTAS:
[1] Esta Rua Larga, segundo apurei, se porventura mal, parece já não existir em Faro. O urbanismo altera tudo. Mas este blog chama a atenção para o facto de existir a revista Rua Larga da Reitoria da Universidade de Coimbra, desconhece-se se, por mera casualidade, existirá alguma ligação simbólica com a primeira morada indicada por Guilherme Centazzi quando se inscreveu na referida Universidade. Fique, ao menos, o coincidente e simpático registo.
[2] In Prefácio do I vol. do romance A alma do justo, ed Typographia de F. X. de Souza & Filho, Lisboa, 1861
[3] G. Centazzo, Op. cit.
[4] Id.ib.
[5] Id.ib.
[6] Id.ib. Há aqui, ou um lapso de memória, ou uma gralha tipográfica. Centazzi está a referir-se à Cidade de Suresnes, na margem esquerda, Altos do rio Sena, atingida pela 2.ª pandemia de cólera (1826-1841), mais precisamente em Março de 1832, quando frequentava o 3.º ano de Medicina. De 19 de fevereiro a 1 de Outubro de 1832, esta epidemia matou mais de 18.500 parisienses. Lisboa também foi atingida pela segunda pandemia de cólera em 1833.
[7] Vide “Ordens das Cortes”, de 12.02.1822”, in Diário das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, 2.º ano da Legislatura, Imprensa Nacional, Lisboa, 1822, p. 166.
[8] In Crónica Constitucional de Lisboa, n.º 44, de 14.09.1833, p. 834.
[9] Até 1808 tinha «le nom bizarre d’École de Santé», segundo o Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales Dechambre, Ed. G. Masson, Paris, 1876, Tomo 5, p.645. Mas hoje em dia as Faculdades de Desporto adoptaram a disciplina bizarra da Saúde.
[10] Imposto pelo décret du 17 mars 1808.
João Boaventura
(Continua aqui)
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