domingo, 4 de novembro de 2012
Retrato do Político, segundo Ortega y Gasset
Um notável texto (publicado no Jornal de Letras) do ensaísta e académico Eugénio Lisboa sobre a importância da cultura para os políticos numa altura em que esta simbiose tão arredada parece andar de governantes e parlamentares portugueses:
Um dos mais notáveis livros que conheço, sobre o “tipo humano” do animal político, capturado, na sua complexidade multifacetada e frequentemente contraditória, foi escrito pelo grande pensador espanhol Ortega y Gasset, que era, além de pensador, um formidável escritor. Lê-lo é um dos grandes prazeres que pode proporcionar-nos essa aliança rara entre um pensamento surpreendentemente original e uma escrita de grande sedução e esplendorosa claridade.
Falecido em 1955 (ano em que perdemos outros dois gigantes: Albert Einstein e Thomas Mann), Ortega y Gasset deixou-nos, ao longo de uma vida cheia e algo turbulenta, um impressionante corpo de obra filosófica: desde o inicial e, de imediato, inspirador Meditaciones del Quijote (1914), e passando por títulos ainda hoje muito lidos, como La Rebelión de las Masas (1930), El Tema de NuestroTiempo (1923), La deshumanización del Arte (1925), El Libro de las Misiones (1940), España Invertebrada (1921), Ideas y Creencias (1979), entre outros, e sem excluir os indispensáveis volumes de El Espectador.
Poucos escritores e pensadores, em qualquer época, terão ido tão ao fundo dos problemas, por via de um modo tão especial de os iluminar, de um ângulo tão diferente e a uma luz tão peculiar. Tudo isto aliado, como disse, a uma sedutora claridade de expressão. Sobre esta, observou o próprio Ortega que se tratava de algo muito deliberado: “Sempre acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso, esta nossa disciplina [a filosofia] tem como ponto de honra, hoje mais do que nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o dragão medonho da sua terminologia hermética.” Ortega chama à claridade “gentileza”, Vauvenargues (que Voltaire tanto apreciava) apelidava-a de “cortesia”: lesbeauxesprits...
Mas o que aqui nos leva hoje a recordar o grande filósofo espanhol é o seu ensaio “Mirabeau ou o Político”, inserido no famoso Tríptico (1941). Nele, Ortega sonda, com intemerata lucidez, o funcionamento do animal político, de que o grande parlamentar francês teria sido a viva encarnação. Os políticos têm, de há muito, má fama, mas, nos tempos modernos, o tiroteio a eles dirigido tem sido continuado, abundante, feroz e variado. Shaw, por exemplo, observava, através de um personagem da sua peça Major Barbara: “Ele não sabe nada e pensa que sabe tudo. Isso aponta claramente para uma carreira política.” Orwell não era mais manso: “A linguagem política”, observava o autor de Animal Farm “– e, com variações, isto é verdade para todos os partidos, desde os conservadores até aos anarquistas – destina-se a fazer com que as mentiras pareçam verdades, um assassinato pareça respeitável, e a dar uma aparência de solidez ao que não passa de puro vento.” E De Gaulle, político experimentado e grande estadista, não hesitava em parafrasear um dito célebre sobre a guerra: “A política é demasiado séria para poder ser confiada aos políticos.” A obra de Ortega não é, porém, uma empresa de demolição: não faz caricatura, não destrói – analisa. De que é feito um grande político? Que tem ele, que não chega a possuir o político medíocre? O que separa um grande político de um grande intelectual? É a estas perguntas que o célebre ensaio de Ortega visa responder. Resumiremos muito, empobrecendo-o, o denso conteúdo deste vigoroso texto de 50 páginas.
O filósofo vê, em suma, duas classes antagónicas de homens: “os ocupados e os preocupados; os políticos e os intelectuais.” Quanto aos ocupados, espécie a que, eminentemente, pertencia Mirabeau, Ortega cita uma passagem de uma carta escrita por este a um seu tio, quando se encontrava encarcerado no Forte de Goux: “Salvai-me, peço-vos, desta fermentação terrível em que me encontro, que poderia destruir o efeito produzido em mim pelas reflexões e pelas desditas. Há homens que é preciso ocupar. A actividade, que tudo pode e sem a qual, nada se pode, torna-se turbulência, quando carece de emprego e de objecto.” Mirabeau, em suma, sufoca por não actuar (está preso), por não produzir acção. Ter ideias não lhe chega – é preciso torná-las actuantes. Não é do seu feitio pensar muito antes de actuar. Ortega observa, com penetração: ”Pensar é ocupar-se antes de ocupar-se; é preocupar-se com as coisas, é interpor ideias ante o desejar e o executar. Esta preocupação extrema leva à apraxia, que é uma enfermidade. O intelectual é sempre, com efeito, um pouco enfermo. Pelo contrário, o político é – como Mirabeau, como César -, de imediato, um magnífico animal, uma esplêndida fisiologia.”
Outra característica assinalada pelo filósofo, no político, é, não um certo teor, inevitável, de falta de moralidade, mas, antes, de falta de escrúpulos. “Um homem escrupuloso”, nota Ortega, “não pode ser um homem de acção.” Um intelectual contempla os seus actos, avalia-os e julga-os – flectindo caminho, quando necessário. O intelectual é sensível ao escrúpulo, o político, muito menos. O político faz concessões, entra em compromissos, esquece-se de algumas promessas feitas, quando é expediente: no pequeno político, sem dimensão, estes atropelos dão demasiado nas vistas, por não serem compensados por outras acções de grande gabarito, que, até certo ponto, as redimam e façam “passar”.
Uma outra diferença – cada vez mais notoriamente actual – que Ortega vê, entre o grande e o pequeno político, residiria na maneira muito diversa como ambos encaram Estado e nação: “A questão começa”, nota o estudioso de Kant e de Goethe, “quando nos perguntamos: essa máquina do Estado, com as suas economias e a sua autoridade, como vai funcionar, actuar sobre a nação? Isto é o que é decisivo: porque a realidade histórica efectiva é a nação e não o Estado. O grande político vê sempre os problemas de Estado através e em função dos nacionais. Sabe que aquele é tão só um instrumento para a vida nacional. Inversamente, o pequeno político, como se vê com o Estado entre as mãos, tende a tomá-lo demasiado a sério, a dar-lhe um valor absoluto, a desconhecer o seu sentido puramente instrumental.” Querem exemplos? Não estão aí, todos os dias, à mão de semear? Não vemos por aí os pequenos políticos a porem os cidadãos a trabalhar para pagarem e encobrirem as trapalhadas de um Estado omnipotente mas não omnisciente?
O ensaio de Ortega é riquíssimo em sondagens e sugestões e não pode esgotar-se numa breve e precipitada crónica. Para finalizar, queria apenas salientar que, ao opor o tipo do político ao do intelectual, Ortega não visa de modo nenhum “desintelectualizar” o grande político, afirmando, mesmo, que “se nos seus cimentos orgânicos e no seu mecanismo psicológico é o político a fórmula inversa do homem destinado à intelecção, não será grande político se não possuir uma política de alto mar e de larga travessia”, acrescentando ser “ilusório crer que o político pode sê-lo, sem ser, ao mesmo tempo, e em não escassa medida, intelectual.” Ao grande político é necessária, pois, a grande cultura, que, nos pequenos, invariavelmente, escasseia. Dizia Enoch Powell – formidável parlamentar e temível classicista – que a regra prática, para qualquer político sério é: "ler, ler e ler.” Aqui fica o aviso.
Eugénio Lisboa
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2 comentários:
Tendo em conta a última linha:
Coitado do não doutor Relvas. E de Passos Coelho.
Ou antes: de nós!
Em apreciado "intemerata lucidez" termo auxiliar no texto.
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