segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CONTRIBUTOS DOS TRÊS LIBERAIS, G. CENTAZZI, COR. AMORÓS, E D. PEDRO IV PARA A GINÁSTICA NA CASA PIA - 3

Terceira parte do texto do Professor João Boaventura. As anteriores podem ser acedidas aqui.

Com efeito Francisco Amorós, durante o reinado Carlos IV, e como deputado nas Cortes de Bayona, tomou o partido francês, ao votar a favor de Joseph, irmão de Napoleão, contra as pretensões de Fernando VII.

Logo que entronizado, em 1808, Joseph, que reinaria até 1813, nomeou Amorós Intendente Geral da Polícia [16], Ministro do Interior e Comissário Real do Exército em Portugal. Assim que as rédeas do poder voltaram para as mãos do Fernando VII, filho de Carlos IV, o Coronel Amorós, conotado como colaborador dos franceses, donde a designação de “afrancesado” [17] teve de emigrar para França, nos finais de 1813, onde acabou por se naturalizar em 1816, e implantar o Sistema Francês de Ginástica. 

Como pedagogo de invulgares qualidades, criou em Madrid o 1.º ginásio no Instituto Pedagógico segundo as orientações do seu autor, o suíço Pestalozzi, de que resultou ter sido nomeado, director do Real Instituto Pestalozziano de Madrid, criado por Carlos IV, em 07.08.1807, com a participação de alguns pestalozzianos vindos expressamente da Suíça. Amorós mudou o nome para Real Instituto Militar Pestalozziano, porque se destinava aos filhos dos oficiais do exército e às pessoas de distinção.

A sede da Suíça discordou totalmente do cunho castrense e elitista. Esta alteração aos preceitos pedagógicos de Pestalozzi que ptopugnava por uma educação popular destinada aos mais desfavorecidos, provocou uma longa troca de correspondência entre a sede helvética e Amorós, sem qualquer acordo possível. Porém, o descontentamento do sector da Igreja que via as suas funções educativas em outras mãos, da nobreza, e dos políticos, pelo total desacordo da mudança do Instituto, fez com que o governo ordenasse o imediato encerramento do Instituto.

Amorós, ciente de que ganharia a causa, apresentara entretanto o Escudo de Armas do Instituto Pestalozziano, pintado por Goya, introduzindo: na parte inferior direita os filhos de Amorós, Manuel a segurar a tábua das unidades, e António a apontar uma parte dela como se estivesse a utilizá-la, os primeiros inscritos do Instituto; e à esquerda, em primeiro plano, uma criança de 10 anos militarmente fardada, com um sabre na mão esquerda, e uma tábua pestalozziana na mão direita. Um raio de luz ilumina as três figuras.


(Fonte: Doctrina de la visión de las relaciones de los números, Madrid de la Imprenta Real, 1807)

Na parte inferior pode ler-se:

REAL INSTITUTO MILITAR PESTALOZZIANO
ESTABLECIDO POR S. M. 
BAXO LA PROTECCION DEL S.MO S.OR 
PRINCIPE GENERALISIMO
ALMIRANTE

Quando Napoleão desistiu de Madrid, depois da derrota das suas tropas na Batalha de Vitória, em Junho de 1913, abandonando a Espanha, Amorós juntou-se às tropas francesas de Massena que perdiam e estavam a ser empurradas para a França, acabando por seguir o mesmo caminho, e chegar a Paris em Dezembro.

Amorós, cujo carácter transparece no lema que abraçou vitam impendere vero (Juvenal, 4.91), ou seja, arriscar a vida pela verdade, foi o de conseguir a todo o custo construir um gigantesco ginásio e adoptar um método de Ginástica para a França, e nisso se empenhou até à exaustão. Não que ainda pensasse na sua génese, mas porque já tinha tudo preparado, explicado, e escrito meticulosamente, quando, ainda antes de saber o local onde haveria de implantá-lo, conseguiu de um particular a manufactura dos aparelhos que iriam povoar o Ginásio, para o que lhe forneceu o plano, com desenhos e medidas.

Neste entretanto, sem perca de tempo, vasculhou Paris, recanto a recanto, rua a rua, à procura do espaço necessário, enquanto simultaneamente sondava as autoridades locais e governamentais, mostrando os planos e as ideias concretizadas no papel, para um apoio, mas a inviabilidade de obter qualquer resposta das entidades públicas à sua exposição não o desanimou.

É certo que também imbuído das mesmas ideias de Pestalozzi, Clias introduziria, em 1815, o ensino da ginástica nas escolas de Paris, até 1833, sem o aparato do sistema amorosiano. Mas é historicamente referido ter havido sempre, entre os dois criadores de ginástica, uma grande rivalidade, desde a chegada de Amorós nos finais de 1813, até à saída de Clias em 1833, para Inglaterra, de onde regressou em 1843, convidado pelo governo francês para organizar e dirigir o ensino da ginástica nas escolas do ensino primário. A revolução de Fevereiro de 1848 obrigou Clias a voltar à Suíça, terra da sua naturalidade.

Nas andanças por Paris descobriu, nos confins do Quartier Latin [18], princípios da rue d’Orleans (hoje, rue Daubenton), o orfanato Institut Durdan, perto do Jardin des Plantes, e encontrou no responsável da instituição a melhor adesão e colaboração, e cujo total apoio e entusiasmo permitiu obter um bom subsídio da municipalidade, pelo que a construção do Ginásio se iniciou em 01.01.1818, tendo sido considerado o primeiro de Paris, e utilizado de imediato pelos “órfãos” de todos os escalões etários. Os resultados do trabalho desenvolvido por Amorós não se fizeram esperar: tanto pela manifesta alegria transbordante dos jovens ginastas como pela habilidade e destreza de todos os alunos na execução, e à vontade demonstradas na utilização dos aparelhos e instrumentos.

Os ecos deste acontecimento chegaram aos gabinetes dos ministros da guerra e do interior, que logo se apressaram a tomar medidas de apoio. Amorós argumentava, quando insistia na ideia de que, se a Prússia, a Suécia e a Suíça tinham grandes ginásios ao ar livre, também a França os poderia ter, e isto, independentemente dos ginásios fechados que se espalhavam na Europa, sinal inequívoco da tendência ginasista, como constituíam os exemplos existentes no seu tempo:

1. O do alemão Friedrich-Ludwig Jahn (1778-1852), considerado o pai da ginástica alemã, com a sua ginástica militar para vingar a afronta de Napoleão, de ter derrotado o seu regimento em Iena, em 1806. Para o efeito começa por suprimir o signo gymnastik, substituindo-o pelo germânico Turnkuns [19], acentuando o carácter nacional, e dando-lhe um cunho militar. No final do Império napoleónico, organizou uma associação de ginástica, e criou um ginásio em 1810, apetrechado de cavalo de madeira para volteio e saltos, barra fixa, paralelas, argolas. Devido ao pendor político orientado para a unificação da Alemanha, criou conflitos de tal ordem que levou o governo a prendê-lo, e a proibir a ginástica entre 1820 e 1840, e até proibir o signo Turnkunst, reintroduzindo a gymnastik. Conseguiu no entanto que, em 1816, se construísse, em toda a Prússia, 116 ginásios.

2. O do sueco Henrik Ling (1776-1839), considerado o pai da ginástica educativa pedagógica, médica e militar, com o seu sistema de ginástica sueca que, apesar de nunca ter publicado nada sobre a matéria, apenas algumas ideias e alguns preceitos verbais transmitidos aos seus discípulos, gerou diversas querelas entre os intérpretes franceses e entre os portugueses, e até entre franceses e portugueses. Criou igualmente o sistema de massagem sueca, apreendido de um chinês que conheceu nas suas viagens ao estrangeiro, aperfeiçoando-o e divulgando-o. Em 1813 criou o Instituto Central de Ginástica de Estocolmo, com alguns aparelhos (quadros, espaldares, trave, banco sueco) que a maioria dos países europeus adoptaria. Em 1816 editou-se A Arte de Fazer Ginástica, elaborado a partir das notas dos alunos e apoiantes do sistema sueco.

Daqui resultou o ministro da guerra ter ordenado a construção do Ginásio Normal Militar, em Paris, e, nomeado Amorós, em 04.11.1819, como director do mesmo, e escolhido o local da sua instalação: a zona do antigo Château de Grenelle, na actual Place Dupleix, entre as barreiras de Grenelle e o Champs de Mars (ver planta do local, abaixo), numa área de 50.000 m², cujo custo ascendeu a mais de um milhão de francos, embora tenham sido os serviços militares a construírem todos os aparelhos concebidos por Amorós, incluindo os utilizados por Clias (o triângulo), Ling (traves, quadros e banco sueco) ou Jahn (paralelas, cavalo de arção, argolas), não porque os dele não fossem suficientes – já excediam o que era possível – mas porque permitia aos alunos disporem de uma grande variedade para evitar a monotonia, e que os motivasse a conhecer e utilizar cada aparelho.

O triângulo de Clias


Trave de Ling e paralelas de Jahn



Cavalo de Jahn

E para que as escolas não fossem esquecidas, o ministro do interior comunica, em carta dirigida à Sociedade para a Instrução Elementar, datada de 15.03.1821, que o governo tinha ordenado também a criação de um Ginásio Civil Normal, no mesmo local do Ginásio Militar. Pelo trabalho desenvolvido por Amorós o ministro da guerra nomeou-o, em 1831, Inspector dos Ginásios Regimentais para orientar as respectivas instalações, pelo país. Além do seu ginásio particular, Amorós já tinha montado 7 ginásios em Paris.



Planta do local onde foi construído o Gymnase Normal Militaire et Civil, 
entre as barreiras de Grenelle e o Champs de Mars 
 Legendas: ▼ local onde foi construída, 70 anos depois, a Torre Eiffel, 
 entre o Champs de Mars e o rio Sena, e inaugurada em 1889; 
Traços a encarnado localizam as barreiras de Grenelle 

Ali se formariam, “no primeiro verdadeiro ginásio de França”, composto de três partes, Gymnase Normal Militaire, Gymnase Civil Normal, e Gymnase Spécial des Sapeurs-Pompiers, acrescentado este posteriormente, com o fim de formar educadores civis e instrutores e monitores militares, destinados a ministrarem os respectivos conhecimentos, respectivamente, nas escolas, nos quartéis militares e dos bombeiros. Para efeitos administrativos, o primeiro ficaria na dependência do ministro da guerra, e os dois restantes na dependência do ministro do interior.

NOTAS:
[16] In Gaceta de Madrid n.º 51, 20.02.1809. O Decreto é de 18.02.1809.
[17] A este propósito Miguel Artola, na sua obra, com prefácio de Gregório Marañon, aborda o problema de Los Afrancesados, Ediciones Turner, Madrid, 1987, de onde saíram os liberais “afrancesados” das Cortes de Cádiz que consideraram a intervenção francesa como o fim das revoluções internas e certa regulação na sociedade, para acabar com a anomia, e haveria apenas uma integração cultural dos espanhóis na soberania galesa, e nunca uma integração política. No consenso dos liberais, mesmo “afrancesados”, consideraram que lutar contra as armas napoleónicas só traria a ruína para o país. Para comemorar o Bicentenário da Guerra da Independência de Espanha (1808-1914), a Editorial Alianza reeditou, em 2008, a 2.ª edição da obra de Miguel Artola. Entretanto, a revista El Argonauta Español, no n.º 2, publicou um artigo de Gérard Dufour, Une ephemere revue afrancesada: El Imparcial de Pedro Escala (Mars-août 1809), explicando o fracasso dos afrancesados que utilizaram a imprensa para convencer os compatriotas a aderirem à nova dinastia. Em Portugal, o procedimento nesta matéria foi diferente. Na “Setembrizada” (por se ter realizado em Setembro de 1809) foram presos ou exilados cerca de 50 cidadãos, magistrados, comércio, militares, clero, profissões liberais, acusadas pelas forças britânicas de colaborarem com os franceses. Reacções de acordo com o ambiente político desenhado em Madrid e em Lisboa.
[18] Considerado o “Sinai do ensino universitário” por cauda da implantação das universidades dos jesuítas na margem esquerda do Sena, mesmo em frente das Île de la Cite e Île de Saint-Louis, na zona compreendida entre a Tour d’Argent, Bd. Saint-Germain e Bd du Palais.
[19] Turnkunst, deriva do francês “tournoi”, o que lhe enfraqueceu o nacionalismo. Há um caso semelhante com o Comissário da Saúde Pública, Semaschko, da então União Soviética que, em 1918, tomou decisão idêntica ao suprimir os signos capitalistas (ginástica, educação física, desporto), substituindo-os por Fiskultura (cultura física) para também lhe dar um cunho nacionalista russo.


João Boaventura

(Continua)

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