Segunda parte do texto de João Boaventura. A primeira parte pode ser lida aqui.
Pela leitura da tese de Centazzi, dedicada, entre outros, e com o destaque que se afigura muito significativo, a Monsieur le Colonel Amorós, Directeur du Gymnase normal civil et militaire de Paris, autor de dois volumes do Manuel d’éducation physique, gymnastique et morale, cujas 1.ª edições datam de 1830, o l.º tomo, com 500 pp,., e o 2.º tomo, com 530 pp., acompanhados de um Atlas auxiliar com 50 pranchas de desenhos, dos quais, 16 alusivos a aparelhos de ginástica, e 34 pranchas com figuras humanas executando os exercícios, com perto de cinco reedições pela mesma editora, À la Librairie Encyclopédie de RORET, Paris [11]. Estranhamente estas referências nunca são citadas por Centazzi, quando estão totalmente ligadas ao autor – são inseparáveis.
Acima reprodução da capa do Tomo 1, edição de 1847 e abaixo reprodução da capa do Tomo 2, edição de 1848, únicas acessíveis. As medidas dos dois exemplares são idênticas: 11 mm x 15 mm.
Abaixo facsimile da capa do Atlas, edição de 1847. As medidas desta referência. 24 mm x 16 mm.
Seria provável, pelas referências a Amorós e pelos elogios circunstanciais que Centazzi lhe teceu, que alguma empatia se teria operado pelo facto de o espanhol, de seu nome completo Don Francisco Amorós y Ondeano, marquês de Sotelo, natural de Valência, ter passado pela mesma experiência política e social de Centazzi. Pelo contrário, é omisso nos contactos, tanto na tese como na autobiografia [12], notando-se algum distanciamento, em contraste com a gratidão, ainda que modesta, além de uma síntese da obra amorosiana desenvolvida, ínsitas na tese, e referência elogiosa a dois casos clínicos resolvidos com a ginástica dita agora como a francesa, mas insertos em revistas médicas que acaba por citar, suscitando dúvidas sobre a obtenção dos dados, se, pela fonte pessoal Amorós, se pela fonte revistas médicas. Pelos dados omitidos, a fonte documental terá sido a opção, o que se deduz por nunca referir qualquer contacto pessoal.
Será tanto mais estranho e incompreensível se se considerar que, ao publicar em Lisboa, em 1836, com o título Considerações gerais sobre os exercícios ginásticos, e as vantagens que deles resultam, ensaio lido e dedicado à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa pelo seu sócio G. Centazzi, Doutor em Medicina [13] (Typ. de A.S.Coelho e C.ª), poderia ter alargado os considerandos sobre a figura e os trabalhos de Amorós nos Ginásios, aos quais o livre acesso era permitido, ampliando assim os conhecimentos e saberes adquiridos junto do pai da Ginástica Francesa, já que, adoptada da tese de 18 páginas, a nova versão mereceria mais do que as 32 páginas com que saiu do prelo, e melhorada minimamente no conteúdo.
Acima, capa do manuscrito de Centazzi oferecido à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (185 mm x 230 mm).
Aliada à ausência de bibliografia – poderia ter citado as três referências muito bem organizadas e concatenadas por Amorós, cujo desconhecimento ou desinteresse se estranha – e à simples narração histórica desde gregos e romanos, mal chegando a Amorós, os limites em que a obra de Centazzi se desenvolve mantêm-se, transmitindo mais a pressa em publicá-la do que dar a conhecer em concreto todos os passos para que asopera da ginástica fossem eficazes. Em vez de realçar os trabalhos desenvolvidos pelo Coronel espanhol, em Paris, limitou-se a reproduzir o que a Europa sabia minimamente:
Foi o Coronel que tentou há alguns anos introduzir a Ginástica na Espanha, e de proclamar altamente as vantagens que dela resultam; chegou mesmo a começar um Ginásio, quando a guerra veio por desgraça destruir os seus trabalhos: este acontecimento decidiu o Coronel Amorós de se retirar para França, e ir fundar em Paris o seu estabelecimento, cujas vantagens geralmente conhecidas hoje, deram motivo à fundação de Ginásios secundários em quase todas as Cidades daquele Reino. O Governo Português pareceu estranhar que no nosso país não houvesse ainda estabelecimento algum desta ordem, e para isso pediu ao Coronel Amorós em 1834 de lhe enviar alguma pessoa capaz para formar um Ginásio em Lisboa, o que este fez enviando-lhe Mr. Marquer, Oficial do Exército Francês de conhecida capacidade e merecimento.
A este propósito, Diem, no capítulo relativo à história do desporto em Portugal, sem referir a fonte, dá outra versão: “Recordemos que Amorós estuvo algún tiempo de servicio en Portugal y probablemente ejerció alguna influencia” [14]. Este facto nunca foi comprovado, muito embora Amorós, após a abdicação de Carlos V, em 1802, a favor de Joseph, irmão de Napoleão, “tenha sido nomeado chefe da polícia em Portugal”, como esclarece Diem [15], o que também não parece plausível, porque tal presença, pela figura de que se tratava, não passaria desapercebida em Portugal. De resto importa acrescentar que a primeira invasão francesa em Portugal acabou com a rendição de Junot – assinatura da Convenção de Sintra – em 20.08.1808, quando a nomeação de Amorós foi em Fevereiro de 1809, logo Junot ainda não tinha conhecimento dela por antecipação, pelo que nunca poderia ter entrado em Portugal. Considerando ainda que, nas 2.ª (1809) e 3.ª (1810-1811) invasões, as tropas francesas saíram sempre derrotadas, nunca ocupando a Capital, qualquer hipótese cai pela base.
O Major Viriato Rodrigues, numa conferência proferida em 09.10.1931, aborda o convite enviado por Soult a Amorós, no começo da Restauration, sem especificar, se a 1.ª (1814-1815), ou a 2.ª (1815-1830), visto que ocorreram em datas diferentes. Carece de credibilidade, se considerarmos que o Gen. Soult foi ministro da guerra de 03.12.1814 a 11.03.1815, e 1.º ministro de França, desde 11.10.1832 a 18.07.1833; desde 12.05.1839 a 01.03.1840; desde 29.10.1840 a 19.09.1847. Dentro destas faixas de tempo cabe o tempo em que Amorós implantou o Ginásio em Paris, onde chegou em Dezembro de 1813, se naturalizou em 1816, e passou por inúmeras dificuldades, perante as quais Soult nunca interveio a seu favor, sinal de que nunca convidou Amorós. Se tivesse de facto convidado Amorós não tomaria a atitude de ignorá-lo. A melhor confirmação reside em todos os manuscritos do criador da ginástica que não faz uma única referência ao nome de Soult, nem a qualquer pedido que dele tivesse partido.
No 123.º aniversário do Ginásio Club Português, uma revista da capital, sumariando a história do GCP, volta a referir que D. Pedro tinha trazido para Lisboa o coronel francês Amoros “com o objectivo de dar aulas de ginástica”, o que não se concretizou, como mais adiante se esclarecerá.
NOTAS:
[11] Em 1998, a Editions Revue «EP.S», Paris, decidiu reimprimir os três volumes editados em 1834
[12] Centazzi, G., op.cit.
[13] O DG n.º 138, de 13.6.1836, anunciava a publicação nos seguintes termos: “Lisboa, 12.6.1836 – Publicação Litteraria. Sahiu á luz = Considerações geraes sobre os Exercícios Gymnasticos, e as vantagens que delles resultam. = Ensaio lido e dedicado a Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa, pelo seu sócio G. Centazzi, Doutor em Medicina. Vende-se na loja de livros de Martin & Irmãos, defronte do chafariz do Loreto, n.º 6.” O Boletim do Instituto Nacional de Educação Física, n.º 3, de 1962, reproduz este texto, a páginas 151~182.
[14] In “História de los Deportes”, vol. II, ed. Luís de Caralt, Barcelona, 230.
[15] Id.Ibid., p. 207.
João Boaventura
(Continua)
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1 comentário:
Contributo é uma palavra, no mínimo interessante e no máximo necessária nos dias de hoje.
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