Sindicalmente a nossa situação agora é esta: faz greve quem pode e não necessariamente quem deve ou quem tem razões para isso. O que subverte por completo a ideia e a função dos sindicatos. Porque os sindicatos são para defender os trabalhadores contra a exploração ou a prepotência dos patrões, e o que vemos hoje são greves de profissões poderosas, em defesa de direitos corporativos, e a aumentar a lástima das classes mais indefesas e débeis.
É ver a revolta e a indignação dos pobres utentes suburbanos da CP, com vidas massacradas, desesperados com as greves sucessivas e incompreensíveis dos maquinistas. É ver os estivadores dos portos fazerem greve para manterem privilégios aristocráticos sem se importarem com as machadadas na economia moribunda. É ouvir os pilotos da TAP com argumentos grevistas ofensivos para a inteligência das pessoas. É ver os juízes lutarem para manter privilégios de classe como se fossem operários do ordenado mínimo a lutar por mais meio por cento.
Ora, assim não há hipóteses de uma verdadeira renovação deste tecido puído que é a sociedade portuguesa.
A verdade é que a Revolução de 74 não mudou esta mentalidade corporativa, que ganhou até requintes de eficácia. O 25 de Abril não soube, ou não quis, acabar com o nosso endémico corporativismo. Não deu por ele. Está tão entranhado nos nossos hábitos e nas nossas estúpidas tolerâncias que nem o vemos. É como certas doenças silenciosas que, quando as descobrimos, está o organismo todo contaminado e já não há salvação.
Veja-se como o poder judicial – um órgão de soberania – se conseguiu sindicalizar. Ou seja, juntou-se aquilo que um marxista julgaria impossível: as vantagens do patronato às reivindicações operárias, num casamento perfeito. Como pensava Salazar, de resto. Mas enquanto no corporativismo do Estado Novo era para controlar interesses de classes antagónicos, puxando geralmente o Estado para o mais forte, agora unem-se forças opostas para potenciar vantagens juntando, numa classe, o melhor de dois mundos. E colocando, é claro, o Estado ao seu serviço, com prejuízo de todos os que não podem fazer o mesmo.
Até os militares, que sempre foram uma casta, mas tinham a sua ética, ameaçam com revoltas porque, dizem, lhes faltam as verbas. Quando deviam ser os próprios a reconhecer que há grandes desperdícios na Defesa.
Duplicação e triplicação de serviços, de estruturas, de instalações, de centros de formação, de campos de treino, que podem e devem ser concentradas. Multiplicação de meios, de unidades, de homens, de chefias, de regalias, que deviam ser reduzidas ou simplesmente desaparecer. Todos neste momento agradecíamos que os militares, em vez de manifestações de feição sindical, se chegassem à frente propondo concentrações e fusões inteligentes para que as despesas com a Defesa ficassem em 1% do PIB, como acontece em Espanha, por exemplo, e não manter tudo como está para continuar a gastar 2% do PIB. Alguém compreende as razões para isto?
Em Portugal, ao contrário do que devia ser, quanto mais a crise aperta e o dinheiro diminui, mas cresce o poder das corporações a reivindicar meios. Quanto mais insuportável é certa psicologia de casta mais a casta se enquista e se arroga direitos que não devia ter. Em certos grupos juntou-se o poder de sempre, e que lhes vinha de cima, do tempo das teocracias, à força que aprenderam nas manifestações e nas greves operárias, ou seja, conseguiram, para si, o poder dos aristocratas e a agressividade dos plebeus. Mais uma originalidade nossa. As reformas estruturais podem, pois, dormir descansadas.
João Boavida
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