domingo, 18 de novembro de 2012

Camilo e a Química: Os narcóticos e o envenenamento de D. João II




(...) Narcóticos” não quer dizer que ele seja um extracto de papoila ou essência de morfina (…) é o mesmo que chamar “linimento de sabão com ópio” à tintura de iodo e “clister de linhaça” a uma injecção de petróleo e aos beliscões “beijos”! A modéstia acrisolada tem aberrações metafóricas. Chamar-se um sujeito a si “suporífero”, quando toda gente, depois de o ler, bebe láudano de Sydenham para dormir (…) [Camilo Castelo Branco, Os narcóticos, vol I, 5ª edição, 2007, Bonecos Rebeldes, 1ª edição, 1882]

Camilo Castelo Branco no primeiro volume de Os narcóticos defende a tese de que D. João II foi envenenado. Para tal, socorre-se das descrições da época, em especial das de Garcia de Resende e de D. Agostinho Manuel de Vasconcelos. Também a comprovada incorruptibilidade de cadáver do monarca, a qual se manteve, com mais ou menos nariz, segundo a prosa irónica de Camilo, até à passagem dos franceses por Alcobaça, concorreria como prova desse envenenamento. 

A incorruptibilidade do cadáver não poderia ter origem na sua santidade, ou não tivesse o monarca sido, segundo Camilo, homicida traiçoeiro, implacável destruidor dos seus parentes, o primeiro que em Portugal perseguiu judeus vindos de Castela (…) devasso que em matéria de sexto mandamento era só acenar-lhe (...) 

Desta forma, a incorruptibilidade do cadáver só poderia ser de natureza química. E, dado que não há notícia de embalsamamento nem condições favoráveis no enterramento do rei, a incorruptibilidade do cadáver deveria ter origem no veneno. 

Camilo sintetiza tudo isto com o humor negro: As podridões modernas pegam-se aos santos incorruptos. Tudo podre. Sem o auxílio da química, já não se arranja hoje uma múmia.

Camilo refere explicitamente o arsénico (na realidade o óxido de arsénico) um veneno de eleição por não ter cheiro ou sabor e ser, por isso, na altura muito difícil de detectar. Consultou José Carlos Lopes, lente da Escola Médico-Cirúrgica, o qual não é conclusivo sobre a relação entre incorruptibilidade e envenenamento: não escasseiam condições para explicar o fenómeno que tem santificado um avultado número de patifes (…) não carece de recorrer-se de uma causa que se presta a contestação.”

Na altura eram conhecidos muitos outros venenos além do arsénico, nomeadamente o acónito, o meimendro, a cicuta, os cogumelos venenosos do género Amanita, o ópio e a beladona. A noz vómica, que contém estricnina, começava também a ser conhecida. E sabia-se que podia ser obtido um veneno poderoso (contendo cianeto) por destilação de folhas de louro cerejo. No entanto, a maior parte destes venenos origina sintomas característicos ou é de fácil detecção e nenhum, além do arsénico, origina sintomas semelhantes aos descritos para as crises de D. João II.

Oliveira Martins, Braacamp Freire, Pinheiro Chagas e outros historiadores foram da mesma opinião que Camilo. No entanto, com base nos sintomas descritos pelos cronistas, o professor Ricardo Jorge e o médico António de Lencastre não concordaram com a tese de Camilo, atribuindo as crises e a morte do monarca a uremia como consequência de uma nefrite crónica. 

Assim, actualmente a maioria dos historiadores é da opinião de que D. João II não foi envenenado e só haveria uma forma de confirmar ou invalidar as suspeitas: encontrar os ossos do monarca e fazer a análise química destes para detectar arsénico ou de outros venenos inorgânicos.

Estranhamente, ou não, dado o título, quase não há outras referências a narcóticos ou drogas no resto do livro. E, no entanto, para pagar as dívidas, incluindo as do fisco, Camilo teve de vender a sua valiosa e extensa biblioteca ao Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, facto que refere com amargura anestesiada: Na minha idade, depois de trinta anos de trabalho, o escritor que vende os livros para não ser devedor insolúvel despede-se deles com um grande desvanecimento de ter nascido em Portugal (…)

4 comentários:

joão boaventura disse...

Possivelmente morreu, não pelo veneno em si mas por overdose do mesmo.

Relembra a morte de Sócrates que pereceu não por ter bebido cicuta, mas cicuta em excesso.

Cláudia da Silva Tomazi disse...
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Cláudia da Silva Tomazi disse...
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Cláudia da Silva Tomazi disse...
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