(...) “Narcóticos”
não quer dizer que ele seja um extracto de papoila ou essência de
morfina (…) é o mesmo que chamar “linimento de sabão com ópio”
à tintura de iodo e “clister de linhaça” a uma injecção de
petróleo e aos beliscões “beijos”! A modéstia acrisolada tem
aberrações metafóricas. Chamar-se um sujeito a si “suporífero”,
quando toda gente, depois de o ler, bebe láudano de Sydenham para
dormir (…) [Camilo Castelo
Branco, Os narcóticos, vol I, 5ª edição, 2007,
Bonecos Rebeldes, 1ª edição, 1882]
Camilo Castelo Branco
no primeiro volume de Os narcóticos defende a tese de que D. João II
foi envenenado. Para tal, socorre-se das descrições da época, em
especial das de Garcia de Resende e de D. Agostinho Manuel de
Vasconcelos. Também a comprovada incorruptibilidade de cadáver do
monarca, a qual se manteve, com mais ou menos nariz, segundo a prosa
irónica de Camilo, até à passagem dos franceses por Alcobaça,
concorreria como prova desse envenenamento.
A incorruptibilidade do
cadáver não poderia ter origem na sua santidade, ou não tivesse o
monarca sido, segundo Camilo, homicida traiçoeiro, implacável
destruidor dos seus parentes, o primeiro que em Portugal perseguiu
judeus vindos de Castela (…) devasso que em matéria de sexto
mandamento era só acenar-lhe (...)
Desta forma, a incorruptibilidade do cadáver só poderia ser de natureza química.
E, dado que não há notícia de embalsamamento nem condições
favoráveis no enterramento do rei, a incorruptibilidade do cadáver
deveria ter origem no veneno.
Camilo sintetiza tudo isto com o humor negro:
As podridões modernas pegam-se aos santos incorruptos. Tudo
podre. Sem o auxílio da química, já não se arranja hoje uma
múmia.
Camilo refere
explicitamente o arsénico (na realidade o óxido de arsénico) um
veneno de eleição por não ter cheiro ou sabor e ser, por isso,
na altura muito difícil de detectar. Consultou José Carlos Lopes, lente da Escola
Médico-Cirúrgica, o qual não é conclusivo sobre
a relação entre incorruptibilidade e envenenamento: não
escasseiam condições para explicar o fenómeno que tem santificado
um avultado número de patifes (…) não carece de recorrer-se de uma
causa que se presta a contestação.”
Na
altura eram conhecidos muitos outros venenos além do arsénico,
nomeadamente o acónito, o meimendro, a cicuta, os cogumelos
venenosos do género Amanita,
o ópio e a beladona. A noz vómica, que contém estricnina, começava
também a ser conhecida. E sabia-se que podia ser obtido um veneno
poderoso (contendo cianeto) por destilação de folhas de louro
cerejo. No entanto, a maior parte destes venenos origina sintomas
característicos ou é de fácil detecção e nenhum, além do
arsénico, origina sintomas semelhantes aos descritos para as crises
de D. João II.
Oliveira Martins,
Braacamp Freire, Pinheiro Chagas e outros historiadores foram da
mesma opinião que Camilo. No entanto, com base nos sintomas
descritos pelos cronistas, o professor Ricardo Jorge e o médico
António de Lencastre não concordaram com a tese de Camilo,
atribuindo as crises e a morte do monarca a uremia como consequência
de uma nefrite crónica.
Assim, actualmente a maioria dos
historiadores é da opinião de que D. João II não foi envenenado e só haveria uma forma de confirmar ou invalidar as suspeitas:
encontrar os ossos do monarca e fazer a análise química destes para
detectar arsénico ou de outros venenos inorgânicos.
Estranhamente, ou não,
dado o título, quase não há outras referências a narcóticos ou drogas
no resto do livro. E, no entanto, para pagar as dívidas, incluindo as do fisco, Camilo
teve de vender a sua valiosa e extensa biblioteca ao Gabinete Português de Leitura do
Rio de Janeiro, facto que refere com amargura anestesiada: Na minha idade,
depois de trinta anos de trabalho, o escritor que vende os livros
para não ser devedor insolúvel despede-se deles com um grande
desvanecimento de ter nascido em Portugal (…)
4 comentários:
Possivelmente morreu, não pelo veneno em si mas por overdose do mesmo.
Relembra a morte de Sócrates que pereceu não por ter bebido cicuta, mas cicuta em excesso.
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