Texto de Carlos Fiolhais publicado recentemente na revista XXI - Anuário da Fundação Francisco Manuel dos Santos:
Houve uma explosão da ciência
em Portugal de 1986 a 2011, após a entrada do país na União Europeia. Há mais
cientistas do que jamais houve e há mais artigos científicos. Tal se deve a um
substancial acréscimo de investimento em Investigação e Desenvolvimento
(I&D), que, no ano de 2008, ultrapassou 1,5% do PIB nacional (Fig. 1),
elevando-nos da situação no fundo dos rankings
internacionais em que estávamos para um lugar que, não sendo cimeiro na cena
europeia, pelo menos já não nos envergonha. O investimento público em I&D
em percentagem do PIB ultrapassou mesmo em 2005 a média europeia (Fig. 2). Embora o aumento dos meios públicos
tenha sido determinante, ele foi acompanhado pelo empenho das empresas: Em 2007, cerca de metade do investimento em
I&D passou a ser conseguido à custa de meios privados.
Fig. 1 Crescimento da
percentagem do PIB nacional investido em I&D (total e empresas).
Fig. 2 Comparação do
investimento público em I&D em percentagem do PIB na União Europeia e em
Portugal.
O investimento público foi
particularmente visível na formação de jovens em ciência e tecnologia, muitos
deles realizando doutoramentos ou pós-doutoramentos no estrangeiro, graças a um
generoso sistema de bolsas que nos guindou, nesse indicador, a um lugar de
destaque na Europa. A expansão da ciência em Portugal deu-se, como não podia
deixar de ser, num quadro de forte internacionalização da ciência nacional. O
país passou a integrar grandes laboratórios e consórcios internacionais.
Outros indicadores completam o que foi
dito sobre o investimento, podendo os mais relevantes ser consultados na PORDATA.
Por exemplo, em 1986 havia 1,2 investigadores por cada mil activos (Fig. 3),
mas, em 2010, já havia 8,2, valor que deve ser comparado com 6,5, a média da
União Europeia, isto é, ultrapassámos a média europeia do número de
investigadores. A nossa quota feminina na investigação também se destaca a
nível europeu, em reflexo do notável aumento do papel das mulheres em Portugal após 1974. Por outro lado, em 1986
foram publicados 6,6 artigos científicos por cem mil habitantes (Fig. 4), ao
passo que em 2010 esse número já era de 121,3, próximo da média europeia!
Fig. 3 Número total de pessoas em
I&D e de investigadores por mil
activos.
Fig. 4 Número de artigos científicos por
cem mil habitantes.
O crescimento da I&D só foi possível graças
a consideráveis financiamentos vindos da União Europeia. Mas é justo reconhecer
que ele também se deveu à canalização que os sucessivos governos, alguns mais
do que outros, fizeram de uma pequena fatia desses investimentos em favor do
progresso nessa área. Num país onde a ciência não tinha grande peso histórico e
onde a tecnologia era tradicionalmente importada em vez de desenvolvida
localmente, o edifício científico português só foi erguido nas últimas décadas.
Em 1995 foi criado o Ministério da Ciência e Tecnologia e, no ano seguinte, a
Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT, o “braço armado” do apoio estatal à
investigação. É incontestável o papel que o ministro José Mariano Gago teve à
frente desse ministério, que deu em lugar em 2002 ao Ministério da Ciência e do
Ensino Superior, ocupado por esse ministro entre 2005 e 2011. Face ao receio,
na época talvez justificado, do imobilismo e burocracia académica, o sistema de
I&D foi, porém, montado em larga medida à margem das universidades, embora
mantendo ligações significativas, tanto formais como informais, com elas. Ao
fim e ao cabo os investigadores seniores e a capacidade de formar aprendizes estavam nas universidades. Foram,
portanto, criadas, em geral por universitários, instituições privadas sem fins
lucrativos para absorver os investimentos disponíveis e cumprir desejáveis
metas de produtividade, que acresceram às unidades universitárias, que
entretanto também se multiplicaram e desenvolveram. Complementando os Laboratórios
de Estado, com algum trabalho prestado mas pouco inovador, fundaram-se novas
unidades de grande dimensão devotadas a várias áreas da ciência, incluindo as
ciências sociais e humanas, designadas por Laboratórios Associados, que, com a
“bênção” do ministério, passaram a viver
de contratos-programa.
Para além do financiamento de base das
unidades de I&D que dependia da qualidade (averiguada num esquema de
avaliação internacional), foram montados concursos públicos, sujeito a
avaliação por pares, de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento e de projectos,
completados por programas para equipamentos de maior porte. Esta “rega” permitiu
que a recém-plantada árvore da ciência desse rapidamente frutos. No sector privado,
a Fundação Gulbenkian e a Fundação Champalimaud, a primeira já com tradição de
meio século e a segunda fundada em 2004, desenvolveram programas muito
competitivos em biologia e biomedicina, albergando equipas que concorriam
vitoriosamente a fundos nacionais e europeus.
Do ponto de vista de
visibilidade social, a ciência também cresceu e apareceu. A ciência não está só
nos laboratórios mas também nos média e na rua. A cultura científica progrediu entre nós com a
criação da Ciência Viva – Agência Nacional
para a Cultura Científica e Tecnológica, que apoia uma rede de centros de
ciência interactivos espalhados pelo país.
Em 2011, após o pedido de ajuda do governo
português e eleições antecipadas, o ministério responsável pela ciência passou
a chamar-se da Educação e Ciência. O novo ministério tentou, num clima de
dificuldades, manter a herança do anterior. Que balanço é possível fazer hoje e
que desafios se apresentam? Se o desenvolvimento recente da I&D em Portugal
é, em linhas gerais, uma história de sucesso,
o êxito não é completo. A falha principal é a debilidade da ligação da
ciência com o sistema económico. Embora, em resultado do esforço em I&D, tivessem
aparecido várias empresas startup,
que nalguns casos vingaram (não existem muitos números para se poder ter uma
perspectiva integrada), e embora tivessem também sido bem sucedidos alguns
processos inovadores em indústrias tradicionais, a verdade é que esse esforço
não teve suficiente impacto no sector produtivo. Houve, com certeza, reflexos do esforço em I&D na economia,
como foi o aparecimento em 2007 da balança de pagamentos tecnológica positiva (essa
balança refere-se ao uso de serviços, patentes e marcas de base tecnológica,
Fig. 5): Portugal passou a exportar mais serviços de ciência e tecnologia do
que importa e estar-se-á, se essa tendência continuar, perante uma alteração
significativa das estruturas produtivas e das áreas de desenvolvimento do país.
Mas estamos longe de ter atingido dois terços do investimento em I&D a
cargo de empresas, como acontece nos países mais ricos, quase não há doutores
nas empresas e o repetido discurso oficial sobre inovação não encontra
suficiente eco em resultados. Num mundo global e competitivo, onde não é fácil
transferir valor da ciência para o mercado, o sistema de I&D nacional terá
de se orientar mais nesse sentido. Só para dar um exemplo de dificuldades por
resolver, Portugal continua, no que respeita ao registo de patentes paupérrimo numa
comparação europeia (Fig. 6).
Fig. 5 Balança de pagamentos tecnológica
portuguesa.
Fig. 6 Patentes concedidas na União
Europeia e em Portugal.
Há um outro problema, relacionado com o
anterior. Não conseguindo a economia absorver jovens qualificados em número
suficiente, persiste um sério défice de emprego científico, para o qual têm
chamado a atenção as associações de bolseiros e de investigadores, cujos
membros têm apenas trabalho temporário. Os anúncios recentes de emprego público
de investigadores são pálidos quando comparados com o boom que ocorreu com o programa Ciência
em 2008, que permitiu a contratação de cerca de mil cientistas durante cinco
anos. Muitos cérebros formados em ciência e
tecnologia, que são afinal a nossa maior riqueza, estão, por isso, a procurar
trabalho noutras paragens.
Não foi alterada a separação
vinda de trás entre ciência e ensino superior. Apesar do nome do ministério, as
Secretarias de Estado do Ensino Superior e da Ciência parecem algo desligadas.
Por exemplo, a rede de cursos de 3.º ciclo (doutoramentos) não se encontra bem
articulada com o sistema de bolsas da FCT. Existe, por isso, uma oportunidade
para garantir a sustentabilidade do sistema científico, “casando” melhor, nas
universidades, a ciência com o ensino superior.
O investimento em ciência está hoje a diminuir,
somando-se o ligeiro decréscimo da percentagem do PIB em I&D com a queda do
PIB. Esta “recessão” na ciência resulta não só do decréscimo do esforço do
Estado, mas também da diminuição do esforço dos privados, em consequência da
crise. Está na ordem do dia o futuro do sistema de I&D nacional –
designadamente a angariação e a distribuição dos meios para continuar de forma
sustentada o crescimento recente, de modo a prosseguir a convergência com os
países mais desenvolvidos. Embora haja um programa europeu nesta área – o Horizon 2020 -, no qual devemos
competir, será preciso contar cada vez mais com as nossas próprias forças em
vez de depender quase exclusivamente das ajudas externas que até agora têm
impulsionado a ciência.
Significará a crise o fim da expansão da
ciência? Existirá vontade política clara para continuar a considerar a I&D
uma prioridade nacional? Será que o potencial de criatividade dos nossos jovens
vai ser aproveitado da melhor maneira? É certo que estamos a viver uma séria
crise, mas não é menos certo que dispomos de algumas instituições credíveis em
áreas vitais para o desenvolvimento e de recursos humanos altamente
qualificados que há 25 anos não existiam. O país está
mais preparado para o que der e vier.
Nuno Crato, o ministro da Educação e
Ciência, conhece bem o valor da ciência na sociedade moderna e tenta inspirar
confiança. O garrote orçamental está, contudo, a actuar indiscriminadamente
sobre todos os ministérios, não tratando de modo diferente aquilo que, por ter
dado sobejas provas de capacidade e competitividade, merece tratamento
diferente. É nossa obrigação manter na ciência o esforço das últimas duas
décadas e meia. Não se pode saber com precisão o
futuro, mas sabe-se que, sem suficiente ciência e sem a inovação assente nela,
não teremos um futuro promissor.
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Programa de Ciência e Inovação da FFMS
Apesar de o esforço em I&D ter sido
bastante referido nas esferas políticas e mediáticas, ele está ainda
insuficientemente estudado e avaliado entre nós. Não se conhecem bem as suas
prioridades (explícitas ou implícitas), as suas virtudes e os defeitos, os seus
êxitos e fracassos. O debate público sobre estas políticas é relativamente
débil, restringindo-se por vezes às pessoas e às instituições interessadas. Com
excepção de alguma auto-avaliação levada a cabo pela FCT e de algumas revisões
da OCDE, pouco mais é publicamente conhecido e discutido. Importa, por isso,
fazer essa avaliação e a Fundação Francisco Manuel dos Santos - FFMS, através
do seu Programa de Ciência e Inovação, pretende contribuir para esse processo.
Esse Programa articula-se nas seguintes
linhas:
1- Métricas e impacto da I&D, que
permitam exercícios de avaliação.
2- Relação da ciência com as universidades.
Foi realizado um primeiro encontro com as principais universidades portuguesas no
Palácio de S. Marcos, em Coimbra, a 15 de Junho de 2012.
3- Ciência e Inovação. Para além de um
estudo em curso por Manuel Mira Godinho, professor do ISEG, pretende-se estudar
melhor o empreendedorismo de base científico-tecnológica.
4- Cultura científica. Importa conhecer
melhor o estado dessa área entre nós.
Nota: Todos os grádicos são da PORDATA.
Carlos Fiolhais
1 comentário:
Uma excelente exposiçao e sem duvida:
- Não se pode saber com precisão o futuro, mas sabe-se que, sem suficiente ciência e sem a inovação assente nela, não teremos um futuro promissor.
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