a 25 de outubro, morreu Jacques Barzun; faria 105 anos a 30 de
novembro.
Tive
sorte com a família. Houve sempre um bisbilhoteiro pró-ativo por perto, a dar-me
a conhecer uma novidade, a espicaçar-me a curiosidade, ou a desfrutar a minha
ignorância, o desconhecimento de qualquer coisa.
Durante
anos desloquei-me, com alguma regularidade, a um refeitório do Ministério da
Educação na avenida Duque de Ávila, com o único intuito de almoçar com a minha
tia Maria Luísa, cliente habitual. Irmã do meu pai, professora primária,
deliciou-me sempre com um espírito doce e aguçado, e qualidades raras de
conversadora.
Frequentemente
vinha munida de uma história, uma imagem ou um recorte de jornal, para meu
único benefício. A tirinha do Manuel António Pina no Jornal de Notícias era
artigo comum: recebia-a do meu pai, que lha enviava do Porto, deliciava-se e
passava-ma.
Quando
nos últimos anos de vida ela e o meu pai se juntaram em Sintra, passei a ler
diretamente o Manuel António Pina: o meu pai nunca deixou de comprar o JN—penso
que, sobretudo, por causa da tirinha da crónica, já que também comprava o
Diário de Notícias e o Público.
Fiquei
freguês.
Recentemente,
após a atribuição a Manuel António Pina do prémio Camões pelo conjunto da obra,
adquiri um livro inestimável duma editora nortenha: Manuel António Pina por outras palavras & mais crónicas de jornal —
Porto: Modo de Ler, 2010.
É
daí que, com a devida vénia, passo a citar (p.247):
«O monstro está entre nós
Tinha decidido passar ao largo
da TLEBS, o Monstro criado no Ministério da Educação para obrigar os nossos
filhos a odiar a língua e a literatura. Que podia uma pequena crónica contra
tão medonho Golias? Mas vi num site
do Ministério o que o Bicho fez a uma indefesa estrofe de Os Lusíadas, a quem chama (pobre estrofe!) "corpo linguístico
ambíguo", e achei de mais. Já se sabia, desde A Lição, de Ionesco, que "a linguística conduz ao crime",
mas deitar à força uma oitava na mesa de anatomia e dissecar, diante de miúdos
do 9.º ano, ritmos, sentidos, imagens, ideias, sonoridades, emoções, tudo o que
faz a misteriosa beleza do verso camoniano, em coisas como "núcleo(s) de
complemento(s) preposiciona(is) em posição pós-verbal, constituindo uma unidade
sintáctica que serve de locativo à forma verbal (…)" e "núcleo(s) de
grupo nominal com função de complemento directo e modificador(es) adjectiva(is)
em posição de atributo", nem o Estripador.
Nos meus tempos de estagiário li
uma vez numa participação policial que alguém fora mordido por um "animal
canídeo do sexo masculino, vulgo cão". Diz a TLEBS que cão é um "nome
comum, contável, animado e não humano" (soa como o "robot" da Guerra das Estrelas a falar). Acho
preferível a versão do polícia.
JN,
23.11.2008»
Como
o escritor está longe de ser um desconhecido no De Rerum Natura, aproveito para remeter o Leitor para dois dos
artigos mais recentes aqui saídos: Feira do livro do Porto (1 de junho de
2010) e Toma
lá eduquês (10 de junho de 2010).
★
Um
outro familiar mais recente, um genro canadiano com um curso de História que
também não está quieto com a conversa, remeteu-me para o Jacques Barzun: Da Alvorada à
Decadência—De 1500 à Actualidade; 500 Anos de Vida Cultural do Ocidente — Lisboa: Gradiva, 2003.
Começo
pelas indicações de artigos no blogue: Rousseau
segundo Barzun: o Bom Selvagem como abstracção (17 de janeiro de 2012) e,
não muito antes, Jacques
Barzun fez 104 anos! (14 de janeiro de 2012).
Deste
recordista do Tempo passo igualmente a citar (Teacher in America—Indianapolis: Liberty Fund, 1981. p. xxi):
«[…]
E no entanto não podemos
prescindir de ensinar—ou governar. Vemos neste preciso momento a toda a nossa
volta a ameaça dos não instruídos—ameaçando-se a si mesmos e a nós, o que é o
mesmo que dizer que não se autogovernam e são, portanto, ingovernáveis.
Infelizmente, não há método ou artifício que substitua o ensino. Vimos baquear um
método a seguir a outro—o "método global" na leitura foi um desastre
nacional; e a tecnologia sob a forma da máquina de ensinar não foi menos
falaciosa e absurda: requer ensino e capacidade de aprendizagem de qualidade superior
para resultar. O mesmo com a fita magnética e a televisão. Ensinar não vai
mudar; é um encontro mano a mano,
cara a cara. Não há volta a dar—devemos ensinar e aprender, cada um por si,
usando palavras e trabalhando contra as eternas Dificuldades. Esta é a condição
para viver e sobreviver pelo menos toleravelmente bem: digamos, tão bem como os
animais nos campos, cuja instrução vem do interior—e não precisam deste livro.»
António Mouzinho
NOTA: como desconfio de mim como tradutor, aqui segue o original
do texto de Barzun:
«And yet we cannot do without
teaching—or governing. We see right now all around us the menace of the
untaught—the menace to themselves and to us, which amounts to saying that they
are unselfgoverned and therefore ungovernable. There is unfortunately no method
or gimmick that will replace teaching. We have seen the failure of one method
after another—”look and say” in reading has been a national disaster; and
technology in the form of the teaching machine has been no less fallacious and
absurd: it takes superior teaching and learning ability to profit from the
device. And so it is with film and tape and television. Teaching will not
change; it is a hand-to-hand, face-to-face encounter. There is no help for
it—we must teach and we must learn, each for himself and herself, using words
and working at the perennial Difficulties. That is the condition of living and
surviving at least tolerably well: let us say, as well as the beasts of the
field, which have instruction from within—and no need of this book.»
1 comentário:
Vêm aí os turbomédicos
Publicado em 2012-08-03
O alerta do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos de que irá aparecer por aí, num futuro próximo, aquilo que o presidente desse organismo chama de "médicos de segunda", com diplomas obtidos em escolas privadas ou por "equivalência" (à maneira da controversa licenciatura de Relvas), devia ser levado a sério pelo Ministério da Educação, que tanto fala em "rigor" e em "qualidade".
A posição da Ordem dos Médicos surge na sequência da notícia de que uma escola privada terá arranjado maneira de transformar os seus licenciados em Ciências Biomédicas em turbolicenciados em Medicina (com dois meros anos de formação especializada), entrando por "equivalência" no 4.o ano da universidade espanhola Alfonso X, El Sabio. Tudo, como habitualmente, "dentro da lei".
O "caso Relvas" é apenas expressão daquilo que poderíamos classificar de "caso português", o chico-espertismo. Este atingiu proporções inimagináveis com o negócio de diplomas em que se tornou algum ensino superior privado (uma escola já oferece mesmo "licenciaturas duplas" em quatro anos, ao bom estilo promocional do "pague uma e leve duas").
A não ser que o Ministério da Saúde faça como o da Justiça, que não aceita licenciados à bolonhesa em Direito nas magistraturas, o mais certo é que os turbomédicos acabem no SNS-D (D de "desconstruído") do dr. Paulo Macedo: ficarão em conta e, para quem é, bacalhau basta.
http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?opiniao=Manuel%20Ant%F3nio%20Pina
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