Na obra mais famosa de Camilo Castelo
Branco, Amor de Perdição (com
o subtítulo história de uma família), escrita em
cerca de quinze dias na cadeia da relação, não há referência
directas à química, embora o romance seja considerando por vezes
(especialmente por quem não o leu) como um paradigma da metáfora
estafada da química do amor. Não é bem assim, quanto mais
não fosse porque, paralelamente ao desenrolar do drama amoroso, o
livro tem uma componente de romance de aventuras negro e ao mesmo
tempo cómico e de crónica de costumes, mostrando com crueza as
arbitrariedades das classes dominantes e as condições de vida do
povo.
Também o drama amoroso do livro
continua hoje em dia a ter, na minha opinião, bastante interesse. Em
termos da tomada de consciência dos mecanismos químicos do amor e
da atracção, as narrativas românticas vêm trazer algo de novo: a
atracção amorosa é desenvolvida egocentricamente por aqueles que
estão envolvidos nela, sem que esta seja provocada (aparentemente)
por acções exteriores, poções, filtros ou manipulações de
divindades.
Na Odisseia, Helena e Páris foram
manipulados pelos deuses, sem que pudessem resistir. No Tristão e
Isolda, o amor incondicional resulta de uma poção. Mesmo no Romeu e
Julieta, que é por vezes comparado ao Amor de Perdição, a
situação é ainda relativamente ambígua. Embora o amor de Romeu e
Julieta não resulte das poções e filtros amorosos que encontramos
em outras peças de Shakespeare, nem pareçam existir manipulações
realizadas por divindades, Cupido é referido várias vezes. E o amor
é comparado a um veneno irresisível para o qual não há
tratamento. Depois dos clássicos e dos românticos, nos romances
realistas e contemporâneos o amor aparece muitas vezes como
resultado de circunstâncias e processos psicológicos, criando uma
ilusão de verosimilhança.
Dos gregos antigos aos romances
modernos, o amor não muda, mas vai mudanda a interpretação do que
é a atracção amorosa. Actualmente, acreditamos que a química do
cérebro e das hormonas substituiu os factores exteriores, o controlo
por divindades e as poções. Continuamos, claro, a não ser
totalmente livres, mas somos nós e as nossas circunstâncias que
fazem a prisão em que ficamos.
A fixação amorosa de Teresa
Albuquerque por Simão Botelho e deste por Teresa começaram,
obviamente, como processos químicos cerebrais e hormonais. A
manutenção de uma atracção amorosa duradoura entre as pessoas tem
algumas semelhanças com a fixação instintiva das crias à mãe nos
animais e do amor entre pais e filhos nos humanos. Para isso
concorrem as hormonas ocitocina e vasopressina. Mas antes de chegar a
essa fase, a atracção amorosa tem de passar por várias fases
tumultuosas. Na adolescência surge o desejo por um parceiro amoroso provocado, nos homens, pela hormona testosterona, e, nas mulheres, pelo estrogénio. Depois, na presença de um parceiro desejável, a atracção, ou paixão, desenvolve-se com a ajuda dos neurotransmissores norepinefrina, feniletilamina, prolactiva e serotonina. Em particular a serotonina, hormona associada à depressão e aos mecanismos do vício, contribui para a fixação no ente amado, apresentando níveis tão baixos nos apaixonados que os aproxima dos doentes e viciados. Simão e Teresa são apresentados como muito desejáveis aos olhos um do outro, ele forte, belo e corajoso, ela bonita, elegante e delicada e simultaneamente também carentes.
Na ausência de vida social e contactos
com outros jovens, um problema que a família de Teresa tenta
resolver demasiado tarde, Teresa facilmente se apaixona por um rapaz
galante, bonito e saudável, praticamente o único que vê como
possível objecto amoroso. É também plausível que numa situação
particular como a do romance, em que existe um grande desamparo e
solidão de Teresa e Simão, por razões diversas (Teresa tem pais
distantes e Simão acha que os pais não gostam dele), essa paixão
evolua para um amor duradouro que resista a ser contrariado e leve os
envolvidos a renunciar a tudo o resto. Também a fixação de Mariana
se foi desenvolvendo, primeiro com a gratidão devida ao salvamento
do pai, depois com a galhardia de Simão Botelho na fonte a bater nos
criados e finalmente com a proximidade do jovem herói. Em termos da
química amorosa não deixa de ser relevante a hesitação de Simão
em relação à atitude a tomar em realção ao amor de Mariana.
Os mecanismos hormonais e a química do
cérebro, que condicionam em boa parte as nossas sensações,
sentimentos e atitude perante as circunstâncias, têm muitas falhas
que reinterpretamos para dar sentido às nossas vidas. As tragédias
são simultaneamente tão comuns quanto raras. Os bons livros
apresentam-nos situações que não têm de ser vulgares, mas que nos
interrogam e ajudam a encontrar sentido para a existência.
12 comentários:
Sustentável, quando considera, Sérgio "objecto amoroso", o químico Rodrigues em supor menciona apenas amor.
As razões porque se gosta intensamente de alguém podem ser muito variadas, certo?
Parece-me a mim que as nossas fragilidades, que frequentemente são também um barómetro dos nossos valores, tendem a unir as pessoas em afinidades profundas.
2 pessoas passarem por experiências semelhantes e daí resultando em valores semelhantes... onde é que isso não é o que é o sentimento de gostar "de forma amorosa"?... porque é que essa empatia, se for através das fragilidades comuns, é menos válida do que uma empatia mais saudável?
Ou seja, desejo que todos sejamos capazes de gerar empatias pela positiva mas "cientificamente" falando, não vejo qualquer prova de que seja menos verdadeira assim. E quem sabe se o "Amor" não é uma conjugação infindável de factores, incluindo a circunstância?
Daí que uma atitude muito comum em ateus urbano-depressivos de ar altivo, de suposta indiferença e descridibilização perante emoções fortes, me parecem sempre opiniões muito tendenciosas de quem tem uma lacuna no tema (não estou a falar de si, que o artigo é insuficiente para tal conclusão).
(agora é que é para si)
Opinar sobre a veracidade do que os outros sentem ou não é que me parece das coisas menos científicas que se pode fazer, não?... até nos neurologistas que estudam o tema li apenas explicações eurofisiológicas do fenómeno da paixão... nunca vi pôrem em causa a veracidade ou validade dos sentimentos...
p.s.1: Evito um pouco a palavra "Amor" porque não sei se realmente existe, apenas desconfio que sim; mas não acho que faça sentido negá-lo: na fé e no Amor, tanto ficam à prova ateus como crentes (embora os crentes costumem ter um resultado muito + positivo, o que acho que é prova de que ainda é melhor opção); mas é uma opção, ninguém tem certezas nestes assuntos; na verdade, não somos todos agnósticos até nos cansarmos da chatice da incerteza e da precaução extrema? (fala uma agnóstica!)
p.s.2: Possivelmente um "amor" adolescente cairá em todas essas armadilhas fáceis que refere, mas talvez esse tal de Amor seja uma coisa bastante adulta e universal em vez de verde e egocêntrica, não?
pelo autor... do post!! :)
"eurofisiológicas" era giro, mas é + "neurofisiológicas"...
O comentário foi removido pelo autor do comentário pressuponho...
Não pretendi opinar sobre a veracidade dos sentimentos mas sobre a sua verosimilhança à luz de uns rudimentos de química das emoções. Devo referir que mesmo sobre esse assunto pouco sei e o que julgo saber foi obtido a partir da leitura de trabalhos de outros. Sou apenas um químico à procura de relações entre a literatura e a química. Não sou psicólogo nem neurologista nem sequer investigador em neuroquímica...
Concordo que dificilmente alguém poderá saber o que passa na cabeça das outros. Se temos problemas já para entender a consciência quanto mais os sentimentos e o amor. Steven Pinker diz algures que um psicólogo e um neurologista a cavarem um túnel na mente partido de pontos diferentes ainda não sabem o suficiente para se encontram. Julgo que sabemos cada vez mais sobre a química do cérebro para entendermos coisas como as emoções e a sua manipulação (Cf. o último parágrafo) mas sobre os sentimentos e o amor (Cf. parágrafos três e quatro) não sei quando lá chegaremos...
O amor, caminha com alma!
Enviar um comentário