sábado, 3 de novembro de 2012

1.ª Parte da Confertência de Bento de Jesus Caraça na Universidade Popular (22/03/1931)


Citada anteriormente em excerto, num comentário ao meu “post”  “Já agora, a Ordem dos Professores e a Fenprof” (31/10/2012), e enviada, depois,  pelo assíduo leitor e comentador do DRN  Ildefonso Dias, publico o texto integral, dividido em duas partes, da conferência do ilustre matemático Bento de Jesus Caraça (1901-1948), um académico que muito se dedicou e honrou variados aspectos da vida cultural portuguesa:

O HOMEM encontra-se sobre a Terra, não por qualquer acto especial da Natureza, mas como resultado duma lenta e progressiva evolução a que estão sujeitos todos os seres vivos. Assim, ele foi colocado na sua origem, não numa situação de privilégio, como pretendem certas doutrinas à margem da ciência, mas nas mesmas condições que os outros animais e sujeito às mesmas necessidades primárias - alimentar-se e abrigar-se, resumindo-se estas necessidades numa única essencial - conservar a vida.


O êxito na conservação da vida depende do maior ou menor conhecimento que se tem do meio ambiente e dos perigos que nele se encontram; no que o homem se distinguiu dos outros animais foi na sua maior aptidão ao meio e maior facilidade em encontrar maneiras de se defender dos seus perigos. Assim, passou do abrigo natural e imperfeito que lhe ofereciam as cavernas, à construção das cabanas primitivas e, depois, das casas que lhe oferecem um um modo muito mais seguro de se defender, não só dos outros animais, como ainda dos perigos naturais, como intempéries, etc.

Na alimentação passou também a seleccionar os seus alimentos, procurar conhecer as qualidades de uns e outros para pôr de parte os menos próprios à conservação da vida.

O homem foi assim tornando a sua vida cada vez mais segura e isso só foi possível por virtude do seu conhecimento cada vez maior do mundo em que vive. A experiência mostrou-lhe então que só um caminho havia para assegurar com êxito a sua conservação - o conhecer quanto mais perfeitamente melhor. Isso fez nascer no seu espírito a ideia e a aspiração de investigar e procurar explicar cada vez melhor, isto é, a aspiração de um conhecimento cada vez mais completo.

Mas nem só estas necessidades de ordem material impulsionaram sempre o homem; desde que a sua existência se encontrou suficientemente assegurada para não lhe ser necessário dedicar-lhe todos os seus momentos de atenção, o homem virou-se para a contemplação da natureza e dessa contemplação nasceu no seu espírito o sentido do belo, origem de todas as suas manifestações artísticas.

Por outro lado, ele depressa começou a viver em sociedade com os outros homens e a reconhecer a necessidade da cooperação com os seus semelhantes.

Essa associação teve a princípio como origem certamente um sentimento egoísta - tirar da colaboração com os outros homens o maior proveito possível para si próprio. Mas foi-se introduzindo lentamente nas relações sociais uma outra ideia - a de que cada um não deve utilizar as relações de sociedade unicamente com o objectivo de tirar daí interesse ou proveito próprio, deve também dar aos outros o seu esforço para os auxiliar. É o sentimento do belo introduzido nas relações sociais, dando ao homem objectivos de ordem moral”.

O aperfeiçoamento constante dos meios de satisfação e desenvolvimento das necessidades, ideias e sentimentos, constitui a cultura, que no dizer de Karl Marx «compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem».

A cultura é assim simultaneamente um meio e um fim.

Encarando agora as sociedades organizadas, tal como actualmente se encontram, pergunta-se - quem deve ser detentor da cultura?, a massa geral da humanidade, ou uma parte dela? Por outras palavras: deve a obra de aperfeiçoamento ser realizada por todos ou apenas por um grupo ou elite que terá por função tornar acessíveis à massa os resultados das conquistas culturais?

Esta questão põe-nos em frente do problema das elites e das castas e a experiência histórica ensina que sempre que um grupo se diferencia da massa geral da humanidade, por qualquer título, estabelecendo um monopólio de qualquer coisa - ideias, força ou dinheiro - fá-lo, não no interesse geral da massa, mas no seu próprio.

Encontram-se provas desta afirmação na formação e existência das castas - religiosas, capitalistas e militaristas.

Quanto às castas religiosas, basta pensar, para encontrar a verdade da afirmação, nos morticínios praticados em todos os tempos e impulsionados e dirigidos por elas. E ainda presentemente, na Índia, os ingleses se servem, para manter o seu jugo sobre o povo indiano, das lutas religiosas habilmente preparadas e desencadeadas que fazem assim desviar as atenções do povo do objectivo que nunca deveria perder de vista - a sua libertação.

Quanto às castas capitalistas, é demasiado flagrante o exemplo para necessitar de ser apontado; que falem a esse respeito os milhões de desempregados dos países capitalistas.

O alemão Otto Lehmann no seu livro recente - «A internacional sangrenta dos armamentos» - fez a esse respeito sensacionais revelações pondo à luz do dia o papel desempenhado pelos fabricantes de armamentos na preparação e seguimento da guerra, bem como fez saber que, enquanto milhões de homens se esfacelavam mutuamente, havia quem continuasse a fazer tranquilamente os seus negócios, vendendo ao inimigo os engenhos de morte que haviam de matar os seus compatriotas.

A união das três castas é de resto coisa frequente.

À pergunta feita deve responder-se portanto condenando a detenção da cultura como monopólio de uma elite.

Mas, na realidade, não é assim, a cultura tem sido e é o monopólio de um grupo - a classe burguesa - que, por virtude da organização social, torna inacessível a sua aquisição à massa geral da humanidade”.

 (CONTINUA)

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