Em O meu condescípulo, último capítulo do livro Cavar em Ruínas, Camilo Castelo Branco refere algumas peripécias dos seus estudos de Química na Academia Politécnica do Porto.
A frequência desta disciplina, assim como as de Anatomia e Botânica, fazia parte dos preparatórios para o curso de Medicina, nos quais Camilo se matriculou em 1844, é referida por vários autores. Em particular, Isabel Cruz, no TriploV, traça a história dessa época na Academia Politécnica e analisa o que é facto e ficção nesta narrativa de Camilo.
Para além de Camilo,
que se apresenta como aluno boémio e pouco dado ao estudo, o texto
refere-se a Francisco Pereira de Amorim e Vasconcelos (1812-1859),
farmacêutico do Porto que foi durante algum tempo preparador na
Escola Politécnica, de forma muito elogiosa: Amorim era
doutíssimo na sua especialidade, e, sem favor, o primeiro químico
experimental do Porto. Era disertíssimo e correcto; benfazejo,
liberal com os pobres e consigo, austeramente económico e
abstinente. Devo à sua memória esta notícia em paga de ele me
ajudar a fingir uma vez que eu sabia química.
Tendo desistido de
estudar para o ponto, o qual incidiria sobre a “kermes mineral
entre outras coisas”, não sabendo sequer em que página a matéria
começava, Camilo acaba por encontrar à porta do quartel general,
onde tinha ido ouvir música, Amorim e Vasconcelos que se propõe
ajudá-lo. Nas suas próprias palavras: Escutei-o até às duas da
madrugada. Quando saí, sabia o ponto, sabia os rudimentos da
química, sabia a história e a filosofia da ciência, conhecia
Berzelius, Gay-Lussac, Orfila e não sei quem mais. Competentemente
instruído por Amorim e Vasconcelos, Camilo acabou por fazer um ponto
nemine discrepante e, não
fora o número escandaloso de faltas e fugidas, teria, nas palavras
de Amorim, sido premiado.
Camilo Castelo Branco
sabia muito bem dosear os factos e a ficção. Isabel Cruz confirma
que Camilo identifica correctamente o livro adoptado e o professor,
mas alerta-nos para o facto de Amorim e Vasconcelos só ter estado
matriculado no curso de Química uma década mais tarde.
A referência à kermes
mineral é, na minha opinião, um aspecto pitoresco a que Camilo não
resistiu. No livro adoptado (Abrégé élémentaire de chimie
de Jean-Louis Lassaigne), que Camilo denomina Lasagne,
referindo não lembrar a ortografia, as propriedades e preparação
do kermes mineral são, de facto, descritas de forma
detalhada. Trata-se de um medicamento de antimónio com uma
composição variável de trissulfureto e trióxido de antimónio,
obtido de forma artificial e que, desde o século XVIII, e ainda na
altura de Camilo, teria aplicações médicas como emético, purgante
e sudorípero. Camilo, que conhecia desde jovem as farmacopeias da
casa do seu cunhado médico, provavelmente conheceria este
medicamento.
Mais tarde, Amorim e
Vasconcelos acabaria por se tornar um adepto da homeopatia e do
espiritismo, como foi aliás comum entre vários cientistas da época
(basta lembrar Crookes). Camilo foi-o encontrando cada vez mais magro
e alienado, afirmando que o lugar dos espíritos não era neste
mundo. Mais tarde Amorim e Vasconcelos acaba por se suicidar,
deixando-se cair de uma varanda.1
A análise que Camilo
faz da homeopatia é de uma grande sagacidade e clareza: Não
duvidava assegurar-me que dez gotas de nux lançadas das Berlengas ao
mar podiam converter o oceano num remédio bom para dores de
estômago, de cabeça e outras. As demonstrações saiam-lhe claras e
irrecusáveis como uma operação algébrica.
Embora Camilo não
tenha tido como Goethe uma iniciação profunda nas ciências
experimentais, as suas observações pertinentes revelam que Camilo
sabe do que fala quando se refere a aspectos científicos. Não me
parece que Camilo procurasse criticar a Ciência ao mostrar as
tolices pseudocientíficas em que as pessoas inteligentes se podiam
envolver, ou reduzindo o ensino da química a eloquência
recamada de protos, de deutos, de bis, de sesqui, de pilhas, de
retortas, e várias coisas com que os homens entretêm a vida para
não morrerem de tédio. Camilo apreciava com certeza a Ciência
mas não tolerava o ridículo e procurava os efeitos cómicos da
caricatura.
Também em Cavar em
ruínas, Camilo faz a análise de um texto anónimo de 1732 denominado
A Fenix das tempestades, escrito
a propósito de uma grande tempestade que se abateu sobre Lisboa. Vai comentando o texto anacrónico e pseudocientífico nas suas mais variadas vertentes e
quando chega ao domínio da ciência das tempestades não deixa de
referir a falta de Gay-Lussac no panfleto. Mais à frente desculpa o autor anónimo por
apenas depois de 1750 é que Demaison estudou o fenómeno da
congelação, e Saussure escreveu as suas observações sobre as
nuvens, chuvas e formação de vapores. As auroras boreais, o raio e
a electricidade foram também depois examinadas por Franklin e
Mairan. Dufay e Volta estudaram o orvalho e a saraiva. E
termina com bom efeito cómico: Apesar disso sejamos lisos
e modestos: o autor da Fénix das Tempestades foi o asno mais
desmedido do seu tempo.
1 Este
tipo de suicídio foge à tipicidade de forma que mais tarde se
tornou quase uma verdadeira mania nacional entre os intelectuais. No
final do século XIX e princípio do século XX, intentado
principalmente à pistola (Camilo foi um deles), por vezes com
recurso a mais do que um tiro, mas também com veneno, corte dos
pulsos, enforcamento, afogamento e até com explosivos, foram
identificados por José Brandão quase duas dezenas de suicidas
notáveis!
1 comentário:
Fonte itálica é itálico?!
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