Que se poderá fazer para elevar a qualidade do ensino? Evidentemente, não basta dizer que é preciso reintroduzir os conteúdos cognitivos centrais, reintroduzir exames nacionais externos e promover o valor intrínseco do conhecimento. Estes são os princípios gerais para uma escola de excelência. As medidas concretas têm de ser bastante mais pormenorizadas.
Não há soluções mágicas, de curto prazo e por via legislativa apenas. As leis (incluindo os programas curriculares) podem ser melhoradas, mas se um professor de história, por exemplo, tem graves deficiências no domínio dos conteúdos que tem por obrigação leccionar, o problema não se resolve unicamente com leis melhores. Logo, qualquer intervenção terá de apostar fortemente na formação contínua de professores, no estímulo para que melhorem as suas prestações e na produção intensa de livros de qualidade para professores e estudantes.
Se os professores não forem apoiados cientificamente, não poderão fazer um trabalho melhor. Esse apoio implica o seguinte:
1. Publicar bons livros que expliquem, numa linguagem clara e acessível, os conteúdos científicos centrais que os professores têm de leccionar.
2. Estimular a tradução dos melhores livros introdutórios estrangeiros, que orientarão os professores nas suas aulas, assim como os autores de manuais escolares. Este trabalho de tradução é essencial — mais importante do que quaisquer reformas do sistema de ensino, pois estes livros apresentam não apenas os conteúdos centrais das disciplinas numa linguagem clara e despretensiosa, mas também o modo didacticamente correcto de os leccionar.
3. Aprovar programas curriculares didacticamente sensatos e cientificamente sólidos que orientem efectivamente os professores e promovam a excelência educativa, centrando-se nos conteúdos cognitivos fundamentais da disciplina em causa.
4. Promover acções de formação de professores, que sejam verdadeiramente úteis, informativas, cientificamente sólidas e didacticamente sensatas, exclusivamente na área que o professor lecciona.
5. Estimular a criação de espaços na Internet que promovam a cooperação escolar e intelectual entre os professores, de modo a que os que têm melhor formação e informação possam ajudar os outros.
Em todas estas actividades, a cooperação e boa-vontade são fundamentais. Nenhuma instituição ou pessoa privada pode arvorar-se em autoridade inquestionável e pretender, autoritariamente, impor aos professores a sua própria concepção das coisas — ainda que esteja correcta. Tem de ser através do diálogo e da formação científica paciente que, ao longo dos anos, se poderá ir constituindo um corpo docente responsável, competente, dinâmico e informado.
A reintrodução de conteúdos científicos centrais nos programas das disciplinas terá de ser gradual, tendo em conta as deficiências formativas dos professores. Não pode ceder a modas, nem pode transformar a escola num campo de batalha público, que só iria desprestigiá-la ainda mais. Terão de ser os profissionais de cada área científica a coordenar entre eles, em articulação com o Ministério da Educação, a reintrodução dos conteúdos científicos centrais. Para fazer este trabalho será necessário bastante bom senso e boa-vontade, e não há regras de aplicação automática que garantam o sucesso. Mas é possível delinear dez princípios gerais que devem presidir a este trabalho:
1. Nenhuns conteúdos devem ser introduzidos nos programas se os professores não os dominam, não têm bons livros que abordem esses conteúdos ou não têm com quem esclarecer dúvidas científicas legítimas. É preciso partir do que é a real formação dos professores, e não a formação que gostaríamos que eles tivessem. Contudo, em articulação com a formação contínua de professores, e com a publicação e tradução de livros introdutórios, será possível corrigir gradualmente os programas, ao longo do tempo.
2. Não deve haver mudanças radicais nos programas das disciplinas. Tais mudanças têm como resultado piores aulas — porque os professores não dominam os novos conteúdos adequadamente. As mudanças devem ser graduais.
3. Os conteúdos devem orientar-se pela sua importância para a compreensão dos aspectos fundamentais das disciplinas centrais. Devem ser estruturantes, fornecendo as bases importantes para que os estudantes possam compreender outras matérias e raciocinar correctamente sobre problemas centrais.
4. Os conteúdos devem ser didacticamente adequados aos estudantes, simplificando-se quando necessário aspectos mais complexos cuja compreensão não representa qualquer ganho cognitivo substancial para o estudante.
5. Os conteúdos devem ser apresentados ao estudante numa ordem intuitiva, do mais simples para o mais sofisticado, e do mais central e relevante para o menos. Não se deve escolher os conteúdos em função de serem mais facilmente avaliáveis, porque são mais "objectivos"; quaisquer listas de factos são mais facilmente avaliáveis do que teorias científicas importantes, por exemplo, mas nem por isso se deve privilegiar as primeiras em detrimento das segundas.
6. A memorização não pode ser desprezada, pois constitui um factor importante para o desempenho cognitivo dos estudantes. Mas não se pode reduzir o ensino à memorização. É imperativo ensinar a raciocinar e treinar o raciocínio.
7. Os programas devem ser genuinamente informativos para os professores e autores de manuais, explicando conteúdos, indicando bibliografia introdutória adequada, esclarecendo dúvidas e orientando o trabalho didáctico.
8. Os programas devem ser independentes de quaisquer directrizes ideológicas, religiosas, políticas ou outras, que os tornem tendenciosos. Não devem igualmente reflectir as preferências arbitrárias dos seus autores, do Ministério da Educação ou de qualquer outra entidade ou indivíduo. Devem ser imparciais e guiar-se por critérios exclusivamente científicos e didácticos, sem perder de vista o estudante e a excelência do ensino a que ele tem direito.
9. Os programas devem ser curtos, para não obrigar o professor a fazer uma leccionação apressada, e para lhe permitir abordar outras matérias que julgue importantes. Mas tais matérias serão da inteira responsabilidade da escola ou do professor, não devendo ser consagradas nos próprios programas como “opções”.
10. Os autores dos programas têm de ter um conhecimento aprofundado e amplo da mais importante bibliografia introdutória internacional da sua área, e têm de ouvir os professores com espírito de abertura, aceitando sugestões e críticas, e estando inteiramente dispostos a melhorar as suas propostas em função das sugestões recebidas.
Contudo, por melhores programas que se proponham, o ensino não poderá melhorar se nem os professores nem os estudantes tiverem uma motivação para se esforçarem em direcção a um objectivo bem definido: os exames no final de cada ciclo de ensino. Estes terão de ser cientificamente rigorosos e didacticamente adequados, exigindo memorização, raciocínio e capacidade de debate racional. Tais exames terão ainda a vantagem de detectar de forma directa as deficiências do sistema. Se, comparativamente às notas internas, os estudantes de um determinado professor obtêm consistentemente notas muito inferiores em exames nacionais externos de qualidade, isso significa que algo estará errado com a formação científica e didáctica desse professor, que precisará urgentemente de formação na sua área.
Sem exames, nenhuma intervenção no ensino, no sentido de estimular a sua qualidade, poderá dar mais do que alguns frutos isolados — naquelas escolas em que os professores decidirem seguir com mais cuidado os programas e bibliografias propostos. Sem exames, é previsível que as escolas e os professores não mudem as suas práticas erradas nem cumpram adequadamente os programas, leccionando apenas de passagem conteúdos cognitivamente estruturantes. (É igualmente previsível que o nível de absentismo dos professores seja substancialmente inferior nos níveis de ensino em que houver exames nacionais obrigatórios do que nos outros.) Fazer isso é hipotecar o sucesso escolar e profissional futuro dos estudantes — que, sem alternativa, serão vítimas indefesas dessa formação deficiente.
sexta-feira, 6 de abril de 2007
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9 comentários:
O que significa "didacticamente correcto" e "didacticamente sensato"?
Caro Desidério…
Estou de acordo com a quase totalidade das ideias que apresentou, tendo com clareza sublinhado alguns elementos fundamentais. Permita-me, apenas, que acrescente mais uma:
- não sobrecarregar os professores com tarefas que impedem a preparação científica e didáctica adequada das suas aulas, a preparação de materiais e o acompanhamento, tão individualizado quanto possível, dos alunos.
Muitos são os professores que se queixam da quantidade de papéis que lhes são hoje atribuídos, entre os quais de pai / mãe / irmão / irmã mais velho, tutor, psicólogo, assistente social e por aí adiante. Por exemplo, em livros de autores como Daniel Sampaio ou Teresa Gonzalez (embora em registos e com graus de intensidade diferentes), os professores são amplamente criticados pela falta de proximidade afectiva em relação aos alunos e falta de compreensão, apoio psicológico, etc. Não vou aqui discutir o facto de, para se ser professor, ter de se possuir competências pessoais de empatia e outras que poderão ir ao encontro de tais exigências. Creio apenas que os professores, como outros seres humanos, têm as suas idiossincrasias, sendo que o ideal seria que cada professor fosse suficientemente inteligente para saber quando um aluno ou uma turma precisam de uma palavra de apoio, sem que assuma quaisquer uma das figuras acima referidas.
No entanto, a minha intervenção não visa discutir estas questões. Em outras intervenções foi discutido o problema da formação técnica e profissional dos alunos e a “profissionalização” que está a ocorrer nas escolas secundárias, sendo que é objectivo deste governo transformar 50% da oferta formativa das escolas secundárias portuguesas em oferta de carácter profissionalizante (vide, Plano Tecnológico). Ao contrário do que o Desidério defendeu noutros textos, não vejo por que essa formação deva ser dada por escolas profissionais, que em Portugal são privadas ou propriedade das câmaras municipais. A verdade é que isso seria um desperdício enorme de recursos humanos e materiais, pois as escolas secundárias, no que à oferta formativa tradicional diz respeito, estão a ficar vazias. Concordo, no entanto, consigo quando afirma que deve estar garantida a estes alunos uma formação geral e pessoal sólida, para além da formação profissionalizante. O problema que quero focar tem a ver com o facto de que com este tipo de cursos está associado um conjunto de funções, cargos, reuniões, etc. que literalmente consomem todo o tempo dos professores, tendo que repartir-se em tarefas para as quais não têm formação e, em alguns casos, nenhuma apetências e particular. Assim, os professores assumem funções como a de director de curso e de estágio, têm de contactar empresas e instituições da área, fazer sessões de marketing, acompanhar os estágios dos alunos e ainda preparar aulas, por vezes de dois, três ou mais níveis e disciplinas, fazer aulas de substituição, preparar materiais para aulas de substituição, ser director de turma, ir às reuniões de departamento, do conselho pedagógico, dos directores de turma, etc., etc. Há semanas em que, literalmente, não sobra tempo absolutamente nenhum para o trabalho de preparação das aulas.
Só mais um exemplo. O governo pretende fazer o reconhecimento e validação académica das competências profissionais de muitos portugueses que abandonaram a escola. Os centros RVCC implementados no terreno estavam essencialmente vocacionados para a validação de competências até ao 9º ano e, agora, pretende-se que as escolas secundárias se transformem em centros RVCC para o 12º ano. O processo é extremamente complexo e exige o acompanhamento individualizado e com disponibilidade total de tempo por parte dos profissionais e formadores de RVCC, que devem adequar os seus horários aos horários dos formandos. No entanto, pretende-se: que os professores que assumam estas funções continuem a dar aulas normalmente; que as escolas que assumam estas tarefas o façam com um crédito horário de 24 horas para 300 formandos, ou seja, imagine-se 24 horas divididas por 4 professores que devem fazer a certificação de competências de 300 pessoas com formações e horários completamente díspares e que têm, ao mesmo tempo, que continuar a leccionar as suas turmas de biologia, história, filosofia, matemática, etc. e ainda fazer formação em RVCC, participar nas reuniões mensais de RVCC (que vão acumular com todas as outras que já têm), etc.
Neste caso, as escolas são livres de aderir, ou não, ao processo de RVCC. Porém, com o fantasma dos horários zero e dos quadros de mobilidade, muitas escolas vão fazê-lo. Outras fá-lo-ão por considerarem que devem prestar um serviço à comunidade. Mas, vai ser mais tempo retirado aos professores para fazerem bem o seu trabalho principal, que é o de ensinarem.
Maria Rodrigues
Olá, Maria
Obrigado pela sugestão, com a qual concordo, e pelas informações, que são preciosas. Vá dando aqui o seu testemunho, pois é precioso.
Devo esclarecer que não vejo problema no ensino profissional, desde que isso não prejudique os estudantes. O que me parece é que o ensino profissional não vai ser a solução mágica que muita gente pensa que será. Penso que a ideia de que o problema do ensino é não haver ensino profissional é mais uma das muitas maneiras de fugir aos verdadeiros problemas do ensino no nosso país.
Caro Desidério,
Noto que na parte inicial do seu texto reforça muito a necessidade de os professores terem acesso a material que os conduza no seu acto de ensinar.
No entanto, isso deveria passar principalmente pela sua formação, a qual no novo modelo proposto pela tutela, passa a ser o de professores generalistas sem um núcleo científico de conhecimentos claramente definido.
O professor pode ser disto ou daquilo.
E aqui está um enorme problema para o futuro.
Se os professores de hoje podem estar desapoiados, muitos ainda tiveram uma formaçãoa cadémica de origem no mínimo razoável.
Os professores de amanhã não serão mais do que alunos mais crescidos, mesmo se certificados com um diploma de "mestrado".
Há quem ache que neste mundo somos todos "alunos", mas neste caso esse tipo de abordagem torna-se uma triste anedota.
Por isso, é essencial que a formação de professores não se bolonhize e infantilize como se está já a preparar.
Caro Paulo
Afirma, e bem, que "no novo modelo proposto pela tutela, passa a ser o de professores generalistas sem um núcleo científico de conhecimentos claramente definido." Isto faz parte da estratégia geral de desvalorização do conhecimento. Aos pedagogos do ministério não interessa a física, ou a matemática ou a história; tudo o que interessa é manter os estudantes ocupados com brincadeiras, muito falsamente pedagógicas.
Caro Desidério,
O problema é que um sistema educativo e cultural de uma sociedade se pode destruir numa só geração. Tenho para mim que a primeira facada fatal no nosso sistema começou com a chamada Reforma de Roberto Carneiro, há 20 anos, portanto. Os governos sucessivos prosseguiram a mesma linha e, no espaço de uma geração, gerámos uma fornada inteira de professores, engenheiros, actuais alunos, com gravíssimas deficiências científicas. Ou seja, demorámos uma geração a gerar o caos.
Mas, continuando o raciocínio, o mesmo sistema que se destrói numa geração, leva várias gerações a construir de novo. Ainda que hoje mesmo alguém pegasse nas rédeas do ME, implementasse as reformas que o Desidério propõe e voltasse a pôr o vagão nos carris, se calhar só daqui a uns 50-60 anos veríamos os resultados palpáveis numa sociedade educada, culturalmente avançada, com boas bases científicas e tecnológicas. Os chineses, por exemplo, começaram a construir essa sociedade na década de 60, enviando os seus melhores cérebros para universidades de elite, para voltarem e formarem novas elites domésticas. Pois, só hoje, quase 50 anos depois, começamos a ver os efeitos dessa aposta, num crescimento prolongado daquele país. Antes, já tínhamos visto os países escandinavos, a Suíça, a Alemanha, a Itália, a demorar o mesmo tempo a construir uma sociedade culta e cientificamente avançada.
Mas, com ciclos políticos de 4 anos e a necessidade de apresentar resultados que só se verão daqui a 40 anos, quem terá a coragem de avançar? É mais fácil arranjar soluções rápidas e cosméticas do que apostar no longo prazo. Receio bem que a coisa ainda vá piorar muito antes de começar a melhorar.
Como metáfora, faz-me lembrar o debate entre florestadores e ecologistas.
Os ecologistas dizem que se deveria plantar carvalhos e sobreiros, porque são espécies autóctnes, adaptadas ao ecossistema da Península. Mas os donos das terras insistem no pinheiro e no eucalipto, pois demoram 10-15 anos a produzir lucro, enquanto que a madeira do carvalho será cortada daqui a 50-60 anos, quando eles já cá não estiverem. É um dilema. Uma das soluções está errada, mas resolve-nos o problema enquanto estamos vivos. A outra está correcta, mas só vai produzir resultados para os nossos netos...
Pois, nem num debate nem no outro, já não sei o que dizer...
Caro José Malaquias:
O problema é que os ciclos eleitorais são mais curtos do que os ciclos geracionais ...
Caro José Luís
Tem toda a razão. O mal que foi feito tem efeitos particularmente danosos porque se trata de um sector que reproduz deficiências: estudantes mal preparados dão professores mal preparados que dão mais estudantes mal preparados.
Contudo, é com base na minha experiência como formador de professores de filosofia que me permito ter esperança. Isto porque vejo da parte de muitos professores um elevado nível de profissionalismo, mesmo que a sua formação de base seja muito má, que desconheçam as bibliografias fundamentais e sobretudo que tenham de enfrentar programas inanes. Mas o entusiasmo e o profissionalismo está lá -- basta dar-lhes os instrumentos adequados, e eles deitam-se ao trabalho com gosto e profissionalismo.
Isto faz-me pensar que bastaria o ministério inverter a sua política de transformar a escola em centros recreativos, bastaria apostar de forma consistente e comprometida nos valores fundamentais da escola, e as coisas poderiam melhorar muito mais do que se imagina.
Contudo, você tem razão noutra coisa: esses efeitos não se fariam sentir fortemente em 4 anos, o que significa que os políticos tipicamente se estão nas tintas para tais medidas.
Fazia-nos falta um Mariano Gago para a educação, com uma sólida visão de futuro, que convencesse os políticos profissionais de que nesta área a aposta é no futuro e que conseguisse fazer valer a sua vontade contra a vontade dos pedagogos ministeriais que têm ao longo dos anos avacalhado cada vez mais o sistema educativo com ideias que qualquer especialista sério em ciências da educação sabe serem teorias cientificamente refutadas nos anos 70.
Caro Doutor Desidério:
Coloquei o início deste post, com referência ao autor e link para o mesmo, no Blog Geopedrados...
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