Será que o pensamento científico é apenas o resultado de aceitar pressupostos científicos? Nesse caso, seria tão arbitrário aceitar os resultados do pensamento científico como aceitar os resultados do pensamento religioso. Por outro lado, o pensamento religioso emana de Deus, e não apenas do esforço humano concertado de compreender melhor o mundo, pelo que até seria digno de maior confiança.
O erro deste tipo de argumento é não compreender que o pensamento científico e filosófico inaugurado pelos gregos antigos é uma procura constante: uma interrogação aberta. Não é um conjunto dogmático de respostas fechadas e acabadas, que resta apenas interpretar e reinterpretar infinitamente. A ironia histórica é que a atitude de procura constante e de interrogação permanente produziu em escassos mil anos uma compreensão da natureza das coisas incomparável com o que as religiões todas da humanidade produziram ao longo de vários milénios.
O pensamento científico não parte deste ou daquele pressuposto para depois aceitar as suas consequências. Isso é o que faz o pensamento religioso: aceita, por exemplo, que um determinado livro tradicional, registo escrito de tradições orais anteriores, emana directamente de Deus — e raciocina a partir daí. Na ciência interroga-se tudo. Na religião aceita-se por fé mitos fundadores — que um homem nasceu de uma virgem, que esse homem depois de morto ressuscitou, no caso do cristianismo — cuja veracidade não pode ser colocada em causa sem se ser considerado blasfemo e contra a ortodoxia. Filosofar e fazer ciência é ser heterodoxo, interrogar e pôr tudo em causa. Dar respostas fechadas, que confortam os crentes, é o que faz a religião. São atitudes muito diferentes.
Mas a interrogação de tudo não é o mesmo que arbitrariedade. Sim, é possível, logicamente possível, que de cada vez que deixo cair uma pedra aconteça que um anjo a empurra para baixo; pode ser que a gravidade seja um disparate, porque há muitas explicações alternativas. Pois há. Mas não é estranho que esta criatividade na procura de explicações alternativas só se aplique aos resultados mais sólidos da ciência, como a teoria da evolução pela selecção natural, mas não se aplique, por exemplo, aos livros sagrados ou às experiências religiosas? Afinal, explicações alternativas por explicações alternativas, por que não explicar os textos religiosos como mera produção humana, fruto de alucinações motivadas por fenómenos neurológicos e não pela presença de um deus?
Um sinal segundo de ausência de seriedade intelectual é a exuberância criativa na procura de explicações alternativas às explicações científicas da realidade, mas a sua falta na procura de explicações alternativas às explicações religiosas da realidade. Isto é falta de seriedade e de amor pela verdade porque com igual arbitrariedade podemos “refutar” seja o que for e defender seja o que for. Quem pensa desta maneira pode genuinamente estar convencido que as explicações científicas são tão arbitrárias quanto as religiosas, dado que o seu pensamento religioso é arbitrário — e nunca teve a experiência da procura paciente e genuína da verdade, do levantar de hipóteses que são refutadas, da crítica dos pares, da reavaliação de explicações e teorias, enfim, da interrogação permanente. Mas não está menos enganado por isso.
segunda-feira, 16 de abril de 2007
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29 comentários:
O pior é quando se começa a interrogar sobre o que se interroga. E depois, tem de se interrogar sobre quem interroga o que se interroga. E depois interroga-se quem interroga aquele que interroga o que se interroga. E qual é a resposta? E qual é a resposta a quem pergunta pela resposta? E qual é a resposta a quem pergunta àquele que pergunta qual é a resposta?
Há uma forma de evitar este neuroticismo. Só uma forma.
Ai, a minha cabeça!...
Ai, a minha cabeça!...
guida martins
Este é um tema muito importante. Um comentário «aturado» a este «post» do Desidério dava um extenso «tratado», que não farei, mas parece-me útil deixar algumas notas.
1. «Competição gnoseológica» entre ciência e pensamento religioso? Creio poder compreender o texto a partir de certos pressupostos, mas ele levanta-me enormes objecções. Para começar, vejo nele um problema comum ao criacionismo: o colocar a ciência (e também, neste caso, a filosofia) em «competição gnoseológica» com a religião, chegando-se ao ponto de querer comparar resultados… A meu ver, isto (e outras coisas) denota uma visão extremamente pobre da religião e da teologia. [Escrevi há algum tempo algo sobre isto aqui, no fórum Paroquias.org, onde participo de vez em quando.] Enquanto se mantiver esta ideia da «competição gnoseológica», alimentam-se os extremismos, que nem são bons para a ciência/filosofia nem para a religião. Também assim se vai Alexandria…
2. Sem pressupostos?… Valeria a pena fazer o «retrato» pormenorizado da religião e do pensamento religioso que nasce deste «post». Creio que tem bastante de caricatura ou, pelo menos, de imprecisão. Mas ficam também dúvidas sobre o retrato da ciência. Por exemplo, a ideia de que «o pensamento científico não parte deste ou daquele pressuposto para depois aceitar as suas consequências» não é, a meu ver, totalmente correcta. E não é preciso invocar Feyerabend ou outro «herege» para dizer que a ciência parte de pressupostos. Parafraseando Alberto Caeiro, há muito pressuposto em pensar que não há pressuposto nenhum… A ciência também parte de pressupostos, nem sempre confessados, não necessariamente estritamente «científicos», mas metafísicos, em última análise. Pode a ciência fundamentar cientificamente o seu próprio método? E se o fizer, é ainda estritamente ciência?
Estabelecido este retrato da «ciência sem pressupostos», parte o Desidério para a consideração do «pensamento religioso», que, diz, parte de certos pressupostos, e onde, ao contrário da «procura constante» da filosofia e ciência, temos «um conjunto dogmático de respostas fechadas e acabadas». Ora, tudo isto é mais do que problemático, como veremos a seguir.
3. «O pensamento religioso», em inquirição. Se se reconhece que a religião é um âmbito próprio da vida humana, como se pode «exigir» que a sua «cidadania» tenha que passar pelo critério científico da verificação empírica e de um método científico? Terá ele que ser absorvido/anulado pela ciência? Não enferma este argumento do mesmo erro do criacionismo, embora em sentido contrário? Não pecam os dois «discursos» do mesmo defeito, o querer impor ao outro critérios de verdade? [Voltarei à questão da verdade.] A menos que reduzamos abusivamente a religião ao criacionismo e aos seus disparates. Mas, mesmo nesse caso, há que fazer melhor que o criacionismo, dado que religião e ciência/filosofia pertencem a âmbitos muito diferentes da vida humana. Respeitemos, pois, a sua autonomia.
4. Os pressupostos do «pensamento religioso». Evidentemente, o pensamento religioso tem pressupostos. Contudo, não é a existência de pressupostos o que a invalida, sem mais. Também a ciência os tem e eles não a invalidam, sem mais. Simplesmente, os pressupostos têm significado diferente em dois âmbitos que não estão exactamente no mesmo plano gnoseológico. Também a filosofia tem os seus pressupostos... O grande sonho de Husserl de uma «filosofia sem pressupostos» parece não ter muitos fiéis… Por outro lado, no pensamento religioso (ou teologia, enquanto forma genuína desse pensamento), os pressupostos mais primários ou radicais (em sentido etimológico e não corrente) não são exactamente aqueles que o Desidério enuncia. Os exemplos dados (os livros sagrados, os «mitos fundadores»…) são já elementos de alguma forma de superfície e dão uma imagem muito pálida do que é o pensamento teológico, uma espécie de «variações sobre a História da Carochinha», passe a expressão. Ora, o pensamento religioso parte de questões muito mais profundas, que me parecem «esquecidas». Antes do «transcendente» parte-se do «transcendental», ou, de outra forma e possivelmente mais correctamente, antes do «teológico» parte-se do «teologal». E o teologal é uma dimensão constituinte da realidade humana, é um «facto» ao qual também pode chegar a reflexão filosófica. Não é por acaso que em teologia há uma área chamada teologia fundamental, que toca muitos elementos comuns à filosofia da religião. É aqui que entra a reflexão de teólogos tão importantes como Karl Rahner (para citar um só exemplo), particularmente nos seus livros Spirit in the World e Hearer of the Word. Basta ter isto em conta e ler estes dois livros de fio a pavio para compreender que esta separação quase maniqueísta do «post» do Desidério não tem muito sentido. Usando da sua particular síntese filosófica, Karl Rahner parte de uma análise antropológica (não parte de Deus!) e na sua análise transcendental encontra aquilo a que poderemos chamar a vertente teologal de todo o homem, quando se dá conta desta sede insaciável de «mais», desta «predisposição» para a escuta (estou a simplificar). Será este um pressuposto estritamente teológico? Não me parece. Na sua busca coloca a questão de podermos averiguar se a essa «predisposição para a escuta» (este vocabulário é meu, para simplificar) corresponde alguma «voz» e se essa voz tem alguma expressão na História. Aqui, sim, entramos no plano estritamente teológico, porque se coloca a questão da revelação e da sua verificabilidade na História. [Outros teólogos fazem outras tentativas de compreensão do facto religioso e da revelação.] Mas atenção: a revelação não é a Bíblia, nem a Bíblia é tautologicamente a revelação, como erradamente se pensa. O Cristianismo não, ao contrário do que tantas vezes se diz, uma «religião do livro» (isso é correcto no caso do Islão). E a fé não é simplesmente a aceitação acrítica de determinadas coisas cuja veracidade não se pode provar cientificamente. Este é um ponto fundamental, que me parece ser constantemente esquecido! Claro, o discurso habitual serve para a caricatura, serve determinados pressupostos, mas não é um grande serviço à busca da verdade.
5. A pergunta/procura constante e o dogma. O Desidério faz a contraposição entre uma «procura constante» da ciência e da filosofia, por um lado, e o «conjunto dogmático de respostas fechadas e acabadas» da religião, por outro. Pondo agora de parte o problema já aludido de querer colocar no mesmo plano gnoseológico ciência e religião, convém notar que, mesmo estando em planos diferentes, o papel do dogma no pensamento religioso não é exactamente aquele que se depreende deste «post». Em primeiro lugar, o dogma não significa o final da discussão em teologia, mas sim um novo princípio. A pergunta e a busca não desapareceram em teologia. Nem sequer é verdade que o dogma seja o conjunto de respostas fechadas e acabadas, sem mais. Isso seria o fim da teologia e faria do pensamento religioso pouco mais do que um conjunto mais ou menos elaborado de «Frequent Asked Questions» ou, na melhor das hipóteses, um sistema de pensamento monolítico. Ora, isso não é assim. Certamente (falo do caso cristão), os dogmas estabelecem as «balizas» concretas dos conteúdos da fé de uma comunidade de uma tradição (no seu duplo sentido de «traditio» e «tradere»), mas dentro dessas balizas há muitas questões em aberto. São como que os pontos de referência que dizem: a nossa fé tem como certos e verdadeiros estes pontos e seria outra coisa se saíssemos destes pontos de referência. Como pontos de referência que são, eles nem sequer explicam, apenas definem (estabelecem os limites da ortodoxia). Mas não termina aqui a procura, nem a pergunta, porque com estes pontos de referência há muita investigação a fazer. Analogamente, em ciência questiona-se «tudo» dentro de certos limites e respeitando (normalmente) um método e determinados critérios de verdade/verificabilidade. Em teologia também existe um método e também existem critérios de verdade. [Não me esqueci: já iremos à questão da verdade.] Exemplificando, com um dos dogmas centrais do Cristianismo: durante os primeiros séculos da Igreja muito se especulou sobre a «natureza» de Jesus Cristo. Formularam-se muitas «hipóteses», algumas das quais podem ser surpreendentes para nós. Por exemplo, hoje tende-se a ver em Jesus Cristo um simples homem, mas as primeiras heresias tendiam a afirmar a divindade de Jesus e a negar a sua humanidade. O evangelho de S. João espelha isso mesmo. A Igreja foi «afinando» a sua reflexão sobre o tema e compreendeu, dentro do âmbito próprio, teológico, que Jesus Cristo era verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Foi um longo caminho, de séculos, para chegar aqui. Ao estabelecer este dogma a Igreja faz notar que (peço desculpa pelo pormenor doutrinal, mas creio ser de interesse recordar) a redenção só pode ser realizada por Deus e só pode ser salvo aquilo que é assumido e que é isso que está inscrito na fé apostólica (a fé que vem dos Apóstolos). Terminou a discussão ali? De modo nenhum. De resto, a história dos dogmas cristológicos é muito interessante. Com estas «balizas» há ainda muita investigação a fazer. O dogma não se limita a responder. Dele surgem novas perguntas, que vão muito para lá do que em ciência se entende por «conhecer».
Não há para tratar uma outra questão, que seria interessante, a da relação entre teologia e ortodoxia. É uma questão complexa, mas não se identificam sem mais. Citando um exemplo que a Palmira referiu na TV, o livro de Roger Haight, Jesus, Symbol of God, constitui teologia, embora criticável do ponto de vista metodológico e muito problemático sob o ponto de vista de ortodoxia. E há livros de teologia que não sofrem de problemas de ortodoxia, mas que não têm qualquer relevância teológica. Não creio que isto seja completamente «novo» dentro do âmbito da ciência e da filosofia.
Houvera mais tempo e espaço e valeria a pena voltar à questão da fé e a sua relação com a certeza/dúvida.
6. A questão da verdade. Não li ainda todos os «posts» deste «blogue» e não sei se já foi tratado aqui o problema da verdade na ciência e na filosofia. Se não o foi, aqui fica o meu desafio para mais um tema! Contudo, importa ter em conta que há vários modos de conceber a verdade e que esses modos podem ser também «pressupostos». Como se pode garantir em ciência que os seus critérios são os únicos válidos? Ou, talvez, melhor: são os critérios usados na ciência os únicos válidos para todos os âmbitos da vida humana? Não, descansem, não estou a usar a estratégia de alguns criacionistas de que tudo é controverso...
Parece que predomina, na prática, a noção de Isaac Israeli, recolhida por S. Tomás, de que a verdade é a adequação do pensamento à realidade (a frase não é de Aristóteles), enquanto outros parecem «refugiar-se» na ideia de que tudo é construção… Mas há que perguntar se estas noções de verdade são as únicas válidas e se a verdade é uma categoria unicamente cognoscitiva… Por exemplo, quando digo que «isto é ouro verdadeiro» ou «tu és um amigo verdadeiro» ou «é uma pessoa verdadeira», serve aqui a formulação da verdade como adequação? Pois bem, em teologia tem muita importância uma noção bíblica (e semita) de verdade de enorme importância: a verdade como fidelidade e segurança. Deus é «o» fiel, «o» verdadeiro e de alguém tão fiel e verdadeiro eu posso confiar no seu testemunho. Ora, sendo a fé uma entrega a uma realidade pessoal que se me apresenta como verdadeira e absoluta, aqui a verdade como a confiança numa realidade/pessoa que se me apresenta como (com)fiável é fundamental. E isto nem tem nada de estranho. Vivemos a maior parte do nosso tempo «confiando», por exemplo, que o teclado não está armadilhado, que a água que bebo não está envenenada, que as pessoas com quem vivo não querem matar-me, que me contaram a verdade sobre certos episódios dos meus bisavós, etc. A fé tem mais a ver com este âmbito vivencial, embora ele reflicta um âmbito mais profundo, o teologal. Colocar em competição gnoseológica fé/religião por um lado e ciência/filosofia por outro, como se estes diferentes âmbitos tivessem que reger-se pelos mesmos critérios e dar os mesmos resultados, parece-me muito problemático. Pelo menos.
Peço desculpa pela extensão deste comentário.
Alef
Olá, Alef!
Obrigado pelo extenso comentário. Não vou poder responder a tudo, mas espero que estas notas sejam estimulantes para o seu pensamento obviamente sério sobre a religião (conhece o Lugo? Ele esteve ou está ligado ao paroquias.org).
1. A diferença fundamental é que em qualquer religião há ortodoxia. Quem não a respeita, é expulso. Na ciência ou na filosofia isso não acontece. Se eu fizer uma conferência para tentar mostrar que um dos maiores filósofos vivos (ou do passado) está errado, não serei expulso da comunidade. Posso pôr em causa todos os pressupostos filosóficos que me apetecer e até posso ficar famoso por isso. Compare isso como que aconteceu ao Leonardo Boff http://leonardoboff.com/, como a tantos outros. Mas tenho é de argumentar.
2. Tanto se encontra gente dogmática na religião como na ciência e tanto se encontra gente de mentalidade aberta na religião como vice-versa. O que conta não são as pessoas, mas a instituição: http://dererummundi.blogspot.com/2007/03/o-cientista-dogmtico-e-outras-aventuras.html. O que eu argumento no texto é que a instituição religiosa em si é dogmática, ao contrário da prática que os gregos instituíram e que deu origem à filosofia e às ciências.
3. As suas ideias sobre a verdade estão erradas por dois motivos. Em primeiro lugar porque a ciência não está comprometida com a teoria da verdade como correspondência, o que seria absurdo. Em segundo lugar porque o que diz sobre o “amigo verdadeiro” nada tem a ver com a verdade, mas apenas com a confiança e é perfeitamente compatível com a aceitação da teoria da verdade como correspondência. Uma coisa nada tem a ver com a outra, apenas acontece que se usa a mesma palavra, “verdade”, para duas coisas completamente diferentes, como “banco de jardim” e “Banco Comercial Português”. Falar de um amigo verdadeiro é uma mera metáfora. A não ser que queira entender literalmente as coisas quando dizemos que um filme nos fez ficar nas nuvens. Um dos problemas do pensamento religioso é embarcar em conversa metafórica sem perceber que se trata de meras metáforas. Mas aqui não estão sozinhos: apenas abusam. Como veremos noutro post que tenho preparado, os cientistas geralmente falam metaforicamente de “leis da natureza” sem saber que estão a falar metaforicamente!
4. A “competição” entre a religião e a ciência ou a filosofia é inevitável porque a religião faz afirmações empíricas e morais. Eu não me sinto nada mal com a competição, mas faz parte da religião querer proteger-se dela, pois não quer ver as suas afirmações cuidadosamente avaliadas. Mas isso é um problema da religião. Era o que faltava os filósofos ou os cientistas terem de se abster de defender certas ideias porque são contrárias ao dogma religioso. Aliás, é algo hipócrita a posição de algumas pessoas religiosas a este respeito — pois caso um cientista conseguisse provar a existência do Paraíso, ou que o vinho realmente sofria uma transubstanciação ao ser benzido na missa, de certeza que os religiosos não diriam “ah, pá, isso que se lixe, é irrelevante, é de outro domínio, eu tenho a minha fé e isso das provas científicas não interessa para nada”. O camandro é que não interessa. Só não interessa porque nunca se conseguiu provar o que as religiões declaram que é verdade sem provas.
5. Finalmente, os pressupostos. Uma vez mais a diferença importante é entre as instituições e as pessoas individuais. Não afirmo que se faça filosofia ou ciência sem pressupostos. Afirmo apenas que qualquer pessoa pode pôr em causa os pressupostos da filosofia ou da ciência, passá-los a pente fino, e isso é bem recebido. Na verdade, é isso que explica o dinamismo da ciência e da filosofia: cada um de nós pode pôr em causa seja que pressuposto for dos seus colegas matemáticos, físicos e filósofos. Temos é de argumentar. Não podemos limitar-nos a dizer que uma voz nos disse ontem à tarde por volta da hora do chá que afinal o Einstein era uma besta e a luz não passa de uma manifestação dos Blins, uns seres especiais que se vestem de fato e gravata apesar de na realidade não terem corpo, existindo nos interstícios do silêncio que se encontra apenas quando há muito ruído, mas apenas provocado por gente que se embebedou com vinho sagrado.
6. Sobre a natureza da fé, farei outro post para explicar o que é.
Estes dois últimos comentários são deveras interessantes mas parecem-me, ou fui eu que não percebi, esquecer o essencial: para as ciências naturais, as que procuram explicar os fenómenos naturais, não interessa uma verdade humana, pode eventualmente interessar uma uma verdade que explique a verdade humana, e a teologia procura sobretudo explicar o que é vivência humana do sagrado. São dois domínios completamente distintos. Confundir Ciência com cientistas, por um lado, e pessoas com fé com as pessoas que não admitem ter dúvidas se não sabem onde deixaram as chaves do carro é no que dá. De resto os meus parabéns ao alef.
Olá, AFF
O que é isso de uma "verdade humana"? E que tal uma "verdade divina"? E uma "verdade ariana"? Para começar, não há A Verdade. Há verdades. Muitas. Carradas delas. A maior parte delas não nos interessam porque são banais.
Quem está interessado em descobrir verdades interessantes não pode à partida excluir esta ou aquela abordagem, ou entrar nos relativismos da "verdade X" ou "verdade y". Se é verdade que os seres humanos não têm alma, não têm alma. Ponto final. Não faz sentido dizer que isso é uma verdade filosófica, mas não é uma verdade religiosa.
A jogada de começar por dizer que há um domínio que escapa à ciência tem de ser vista como o que é: atirar areia para os olhos das pessoas. Porque é óbvio que há imensas verdades que escapam à ciência — pura e simplesmente a ciência não se interessa por tais coisas, por uma ou outra razão. Por exemplo, a ciência não se preocupa pelo problema da metafísica da modalidade ou pela definição de arte, que são problemas filosóficos. E depois?
Depois, quem aparece com este discurso vindo da religião, em geral, está a pedir-nos outra coisa: que paremos de pensar e de interrogar e de levantar dúvidas. Que aceitemos dogmas. Mas por que hei-de fazer isso? Se a religião me diz que tenho uma alma imortal e que há cinco deuses que criaram tudo, eu quero saber se isso é realmente verdade e não quero deixar-me levar por conversas da treta. Quero avaliar cuidadosamente tais ideias, ver se têm razão de ser ou não — não quero limitar-me a aceitá-las porque são confortáveis espiritualmente. Para mim a verdade e a curiosidade intelectual tem precedência sobre o conforto espiritual. Mas respeito quem não é assim. Apenas não me venham dizer que há algo de muito nobre nessa atitude e que eu sou cego porque não a aceito.
Na ciência não existe ortodoxia??
Pelo contrário, os exemplos da ortodoxia na ciência são imensos. Olhe o caso de David Bohm e da mecânica quântica ortodoxa (é o próprio Popper que a classifica assim).
Desidério,
Fui talvez muito sintético ao utilizar o termo, mas pretendi expressar verdade humana no sentido de uma verdade sobre o que é humano e não sobre a explicação da razão da química explicar que uns átomos de hidrogénio, hélio, azoto e oxigénio apresentarem propriedades próprias do ar. Concerteza vai querer argumentar que também a religião explica essas verdades. O que é um facto é que existem razões para o homem procurar um sentido transcendental na sua própria existência uma vez que a razão humana não se consegue explicar totalmente a si mesma. Parece-me que é esta a principal finalidade da religião, dar um sentido quando uma explicação racional não chega. É uma finalidade que como diz conforta, agora, é preferível uma verdade que conforte ou a opção por uma dúvida sem qualquer solução porque pode haver em cada humano como diz uma verdade?
Olá, AFF!
Pois, o problema começa logo com a declaração que há limites aqui e acolá. Isso em geral é só a antecâmara para nos fazer abandonar o sentido crítico que Deus nos deu, e aceitar uma maneira de pensar "outra". Só que não há maneiras de pensar "outras". Ou se está aberto à crítica, à procura de explicações alternativas, à argumentação contrária, às provas, aos contra-exemplos, ou é banha da cobra. É tão simples como isso.
E a propósito de verdades sobre os seres humanos, sabemos muito mais por via da ciência e da filosofia do que sabemos por via da religião sobre o que é ser humano.
Desidério,
"Pois, o problema começa logo com a declaração que há limites aqui e acolá. Isso em geral é só a antecâmara para nos fazer abandonar o sentido crítico que Deus nos deu, e aceitar uma maneira de pensar "outra".
Não estou a perceber o que quis dizer com isto. Ironia? Não falei em limites, disse apenas que a compreensão mútua entre as pessoas também é conhecimento, saber e verdade e isso a ciência não explica e a religião até dá uma achega, assim como a filosofia moral também. Agora a ciência não dá, daí a necessidade de uma clara separação entre o que é do domínio da religião e da ciência. A questão criacionista aqui tão debatida é um bom exemplo, é religião a meter-se naquilo que lhe não compete, cabe à ciência fazer o mesmo. É pena este blogue talvez não ser lido por antropólogos porque qualquer um lhe diria que a noção de comunidade humana, daquilo que hoje dizemos com naturalidade, sem sequer nos apercebermos disso, ser característico da condição humana, nasceu precisamente do mito e da ideia de uma entidade partilhada e transcendente. Hoje ainda vivemos isso, por exemplo no culto dos herois históricos e de um passado comum cheio de simbolos. Sem isso nenhuma comunidade sobreviveria coesa. Isso e outras coisas são demasiado evidentes para não se deitar a religião para o lixo apenas porque a igreja tem certos preceitos que vão contra aquilo que achamos normal e acertado. Isso sim é filosofia de má qualidade, pode ser pensamento político, mera opinião, ou apenas embirração, mas um pensamento aberto ás alternativas não é de certeza. Aliás a igreja não obriga ninguém a acreditar em deus...
A ideia dos «domínios separados» é falsa.
Em primeiro lugar, como explicou o Desidério, porque a religião faz alegações empíricas sobre o mundo. Essas alegações nalguns casos podem ser refutadas pela ciência (noutros não). Por exemplo, a «ressurreição» é uma impossibilidade física. (Muitos cristãos contornam esta dificuldade dizendo que a ressurreição é uma metáfora. Mas nenhuma religião de fé sobrevive puramente apoiada em metáforas.)
Em segundo lugar, a ciência poderá vir a explicar a religião, mas nunca o contrário. A religião enquanto mundividência só é possível porque o ser humano pode construir explicações sistemáticas sobre o mundo, nomeadamente atribuindo intenções às acções de outros seres (ou mesmo a eventos com objectos). Pode portanto ter raízes neurológicas profundas. Pelo contrário, a religião nada tem a dizer sobre a ciência.
Caro António Parente,
«A ressurreição não é uma metáfora.»
Exacto. Sem a fé na «ressurreição», o cristianismo seria um mero conjunto de preceitos éticos e filosóficos. E já teria desaparecido.
(Não vem ao caso, mas há igrejas cristãs que não obrigam à fé na ressurreição. São pequenas e instáveis.)
«A ressurreição foi um acontecimento histórico com testemunhos.»
Isso é a sua fé a falar. A verdade é que não tem um único testemunho presencial corroborável. E o ónus da prova está convosco.
«Dizer que a ressurreição é uma impossibilidade física é o mesmo que afirmar "a evolução não pode ser testada em laboratório".»
Não. A evolução já foi observada. Há vários exemplos por aí. E não há outra forma de explicar uma quantidade muito grande de dados. A «ressurreição» não foi observada. E a mim parece-me impossível. Creio que a si também. Guarda lâmpadas fundidas na arrecadação?
«Essa tentativa da ciência explicar a religião parece-me uma tolice perigosa porque mais dia menos dia andamos a retalhar os cérebros uns dos outros, na esperança de ou acabar com a religião ou com o ateísmo...»
O perigo nunca será compreender neurologicamente o sentimento religioso. O perigo pode ser tentar alterá-lo cirurgicamente... ;) O que me parece uma hipótese muito remota.
Pós-modernismo
"Muito do movimento pós-moderno na academia originado não nos departamentos de filosofia, mas, estranhamente, nos departamentos de literatura, criados por criticos literários que nao eram muito versados em subtilezas filosóficas. Isto aconteceu por uma razão directa: o criticismo literário preocupa-se primeiramente com maneiras de interpretar textos...Descobrir como interpretar textos não é simples como parece; de facto, é altamente incompreensível como criamos e entendemos um significado, e portanto, a interpretação é um exercicio tipo puzzle.
Todo o pós-modernismo começa aqui. Tomem um simples exemplo, como frases "the bark of the dog" e "the bark of the tree". Agora claramente a palavra "bark" significa algo inteiramente diferente nestas duas frases. Entao, o significado da palavra "bark" não pode vir da própria palavra, não é? Não, o significado depende do contexto da frase onde a palavra está. Mas o significado da frase do mesmo modo, depende do contexto do sistema linguístico, que este mesmo é definido em práticas não linguísticas, e ad infinitum. Portanto, parece que todo o significado (e todo o conhecimento) depende de alguma maneira, de vários contextos, e se mudas os contextos, mudas o significado. Isto é geralmente referido como `contextualismo`..
A deconstrução de Jacques Derrida tornou-se imensamente popular porque ele foi o primeiro a enfatizar estas ideias importantes. Como Jonathan Culler no seu livro "On Deconstruction" sumaria, a deconstrução assenta em dois princípios: a) todo o significado é dependente de contexto e b) os contextos não têm limites. Por outras palavras, verdades que eram tomadas por ser universais, que unem ou que são eternamente verdades, dependem de facto dos contextos em que existem. E dado que os contextos não têm limites - são literalmente infinitos: cada contexto tem outro contexto - então o próprio significado torna-se um jogo infinito de contextos que mudam, instáveis em toda a forma - a famosa `corrente deslizante de significados` e o infinito `adiar do significado`.
Isto teria sido uma importante ideia, coerente com o contextualismo nas suas várias formas, desde Heidegger a Gadamer a um tardio Wittgenstein, não tivessem os Boomers Americanos olhado para a própria noção com fúria e torná-la em algo mais. Que toda a verdade e significado são dependente de contextos NÃO significa que são necessariamente arbitrários, relativos ou construídos em areias movedíças do capricho cultural. Um diamante cortará um pedaço de vidro, não interessa que palavras usemos para `diamante`, `corta`, e `vidro`. Mas nas mãos de boomeritis, a dependência de contexto foi usada, numa forma exageradamente selgagem, para tornar todo o significado e toda a verdade cada vez mais relativa e arbitrária, para que qualquer significado estabelecido pudesse ser diminuído, subvertido e desconstruído. "Significado é fascista!" era o moto aqui - porque qualquer significado me constrange, e ninguém me pode constrangir! A cada momento que vieres com um significado, eu vou tentar encontrar um contexto que o subverta, desconstrua e o desfaça - e eu o posso fazer porque os contextos literalmente são sem limites, e portanto, eu posso jogar com este facto das maneiras mais irresponsáveis se `Ninguém me disser o que fazer`.
Uma típica desconstrução boomeritis começa por pegar um texto - e pode ser de filosofia, literatura, religião, e que for - e usando o facto que todo o significado é dependente de contexto, demonstra que, por exemplo, o texto realmente significa o oposto do que alega, para que o texto se subverta a si próprio. Por exemplo, podemos dizer - isto é um exemplo simples, `A noção de verdade procura o seu significado na noção de falsidade.` Por outras palavras, todas as verdades aceites, todos os valores convencionais, todas as escrituras morais, podem ser facilmente `desconstruídas` usando esta técnica. Podes literalmente desconstruir o que quiseres.
Jacques Derrida foi o teorista mais frequentemente citado na academia literária. Alguém poderia fazer carreira simplesmente tomando textos criados por outras pessoas - os seu livros, peças, filmes, histórias, etc - e desconstruí-los. No passado, para poder publicar, tinha de escrever, criar ou construir algo novo; agora basta simplesmente deitar algo abaixo. E sentir portanto, um ímpeto hilariante de superioridade no processo. Isto é algo especialmente importante se tu talvez não és muito criativo ou brilhante, e no entanto, tens necessidade de te ver como vastamente superior. A desconstrução oferece as ferramentas para subir acima de verdadeiras obras de arte e filosofia ao simplesmente tirar a carpete debaixo destas, é por isso que se tornou na ferramenta numero um e o método mais frequente usado no criticismo textual por mais de uma década.
Através da deconstrução, eu posso destruir a essência de qualquer texto em mim; posso subverter as exigências que faz em mim. Dado que `texto`, realmente significa qualquer coisa que exista, então ao descontruir textos, posso completamente negar quaisquer exigências no meu ego. Porque, profundamente e acima de tudo, Ninguém me diz o que tenho de fazer!
A desconstrução rapidamente se tornou indistinguível da desconstrução extremista - mesmo Foucault chamou `terrorista` a Derrida e para o Foucault chamar alguém de terrorista, podes imaginar o quão má a situação se tronou. A desconstrução tornou-se no primeiro ataque terrorista para destruir qualquer restrição que não encaixe nos próprios impulsos. Não colocou nada no lugar das estruturas, simplesmente destruiu, e portanto fez escalar o narcisismo e o niilismo como a equipa vencedora diabólica do pós-modernismo, deixando o ego sozinho no meio das ruínas em fumo."
Este texto enorme, tirado do livro "Boomeritis, A novel that will set you free" de Ken Wilber surge para tentar alertar de campos de desenvolvimento cognitivo e estrutural que não vão fazer mais que desconstruir tudo o que foi construído. E a questão é que se poderia apresentar algo novo, mas simplesmente vai-se desconstruir pois não encaixa nos impulsos da pessoa que desconstroi e portanto, é o que se vai passando quando o prazer é esse mesmo. Muitas vezes, nem sabemos onde nos leva tanta desconstrução, simplesmente o fazemos porque não encaixa na maneira como vemos as coisas. Sim, porque dogmas temo-los sempre, desde que nascemos, somo levados com dogmas. Agora, se alguns não interessam, então é fácil negá-los e escolher aqueles que nos interessam. Se são dogmas religiosos e não me interessam, então deito-os fora e escolho os científicos. Se os significados não são os melhores, então escolha-se outros significados mais a meu jeito. O lema desta geração pós-modernista é mesmo esse "Ninguém me diz o que devo acreditar!, Eu é que sei o que devo ou nao acreditar. Ninguém me impõe dogmas que não quero. Só aqueles que me interessam é que os tomo." Há quem fale numa falácia pré/trans para definir esta geração, onde parece que a maneira de estar pós (trans) modernista é parecida com a pré modernista. Em favor de uma nobre pluralidade (pós), toda uma série de patologias surgem: confusões pré/pós, infestação de pluralismo pós-convencional com narcismo pré-convencional, abdicação de subjectividade e responsibilidade matura, regressão a um egocentrismo imaturo e infinito, o deslizamento para uma victimização chique. Ou seja, parece que às vezes, se confunde pós com pré, dada a postura que é desenvolvida. A questão é se os pós-modernistas vao querer continuar a questionar tudo. Quanto mais o fizerem, mais atraem narcisismo e egocentrismo. Uma criança na sua fase pré-convencional também se questiona, também o mundo gira á volta dela.
As pessoas neste pós-modernismo precisam de fazer victimas para que tenham sentido do mundo, mesmo que as tenham de criar. Então vão buscar tudo o resto, desconstroem e defendem uma posição que inclua um pouco do que mais lhe interessa. É "crença à la carte", se é importante colocar um Big Bang para explicar o inicio do mundo, escolhe-se o Big Bang. Se for importante depois ter como base alguns dos mandamentos da Biblia sobre os quais devo regular a minha vida, então escolho esses e desenvolvo uma "crença à minha maneira" que inclua uma pouco de cada prato. Lá o Frank Sinatra dizia, "My way". E o mais engraçado é que isto tudo não é novo, já desde há muito tempo que se passa isto, desde os Gregos como alguém dizia, que questionavam a vida. Não sei se lhes valeu de muito. A civilização grega foi por aí abaixo e não tem hoje em dia nada do esplendor de antigamente.
Vamos ser sérios em relação às questões. E não presumir que tudo depende de contextos e que os contextos não têm limite, afinal de contas, até nos vamos entendendo minimanente em muitas questões. Só precisamos é de deixar de nos comprometer noutras que parecem não encaixar muito bem na "minha crença à la carte", feitos de dogmas que foram construídos por ensinamentos daqueles outros que também escolheram o que queriam acreditar.
Ricardo Alves:
A ideia dos domínios separados não é falsa, abstenho-me de fazer grandes considerações sobre o que é por demais evidente, quer-me dar algum exemplo de uma explicação científica e simultaneamente religiosa para o mesmo fenómeno?
antónio filipe fonseca
Rui, o seu comentário sublinha precisamente o que me parece mais importante. O estruturalismo, o pós-estruturalismo e o desconstrutivismo são formas de instituir o "vale tudo" -- menos pôr em causa as vacas sagradas da área. Veja-se o caso Sokal. Foi um escândalo ele ter-se atrevido a mostrar que aqueles autores são pura fraude intelectual. Mas não é um escândalo que tais autores possam dizer que uma equação matemática é falocêntrica, por exemplo. Isto é o mundo de pés para o ar. O pensamento supostamente libertário tornou-se pensamento doutrinário, fechado e dogmático -- e ainda por cima obscurantista, pois recusa arbitrariamente todos os argumentos contrários às suas ideias favoritas, mas "refuta" tudo o que não lhe interessa com jogos de palavras. Quando se entra no domínio da arbitrariedade a primeira vítima é a verdade, e a segunda a justiça. Junte-se a isto muita pose fotográfica e ademanes de génio romântico, e temos uma mistura explosiva de obscurantismo.
Ricardo Alves,
Esqueci-me de dizer que é muito natural que a religião use metáforas para expressar sentimentos de redenção como acontece com a 'ressureição', qualquer um de nós já fez alguma coisa a alguém que depois se arrependeu e depois de pensar duas vezes se desculpou, a 'ressureição' é uma metáfora para este processo, nada tem a ver com processos físicos como é natural. De igual modo será sempre explicar pela ciência fenómenos mentais holisticos. Uma coisa é a psicologia explicar porque certas pessoas são agressivas em determinadas situações ou porque fantasiam em outras, mas a análise completa do conteúdo da fantasia é impossível, porque então não seria uma fantasia mas uma observação da realidade.
Desiderio: so' uma sugestao: porque nao por os comentarios numa caixa distinta? E' ir aos "Settings" e escolher uma opcao cujo nome nao me recordo mas que e' bastante obvia. Torna mais facil a navegacao no blogue.
Abraco,
E obrigado, enquanto leitor, pela elevacao, interesse e serenidade do debate. (Comentario que se estende aos co-bloggers).
Tiago Mendes
Embora seja naturalmente aplicavel a qualquer post, pensava que tinha deixado este comentario no outro post, sobre "fundamentalismos", em que tem participado activamente (or, should I say, impetuosamente) o Joao Galamba.
Abraco,
Tiago Mendes
Caro Desidério:
Greetings from Lugo!
Da sua resposta ao meu comentário, embora tenha dito que ele ficou incompleto, deduzo que teremos material para longas conversas, porque vários dos pontos que eu considero importantes não foram tocados. Portanto, lá hão-de aparecer, porque têm a ver com diferentes modos de colocar as questões. Sem mais considerandos, que isto adivinha-se novamente longo, vamos a mais umas notas. Os meus pontos seguem os do comentário do Desidério.
1. Religião e ortodoxia. Começa o Desidério por dizer que «a diferença fundamental é que em qualquer religião há ortodoxia. Quem não a respeita, é expulso. Na ciência ou na filosofia isso não acontece». E cita depois o caso de Leonardo Boff.
Começo por uns necessários pontos prévios.
a) Distinguir para compreender melhor. Haveria que voltar atrás, a um ponto prévio fundamental, que é o de distinguir bem o domínio da ciência e o da religião que, repito, não estão no mesmo plano, nem usam exactamente os mesmos critérios de verdade, nem linguagem, nem método. Mesmo quando se «tocam», já que o homem não é um conjunto de compartimentos estanques… Obviamente, os pontos de partida e os pressupostos são muito diferentes. Se isto ficasse claro desde o início, a relação entre estes dois planos seria mais fácil e proveitosa. Se não for assim, continuamos na velhinha e falsa dialéctica de tipo apologético, com maniqueísmos e anátemas mútuos à mistura.
b) Não mutilar… Tanto quanto me foi dado perceber, o Desidério pretende desacreditar o discurso religioso por não respeitar os critérios de verdade ou o tipo de pergunta usados em ciência e filosofia. Se não for essa a sua posição, peço-lhe que clarifique. Ora, a minha posição é bastante clara: não é preciso demonizar nem anular o pensamento religioso se para fazer ciência. A existência de bons cientistas que também são homens de fé deveria ser suficiente para cuidar os discursos exclusivistas… Eu creio que a ciência tem uma função importante junto da religião (voltarei ao assunto), na medida em que também permite purificá-la, mas isto não significa que tenhamos que mutilar o âmbito teologal do homem. Tenho tratado aqui de mostrar que ciência e religião são âmbitos muito diferentes e que a dicotomia que se tem apresentado por cá ao modo de «competição cognoscitiva» é errada e criadora de problemas.
c) Para lá do conhecer… O Desidério tem insistido muito na questão dos «conhecimentos» ou dos conteúdos de fé, «esquecendo», pelo menos aparentemente, que o centro da religião não é nem o dogma nem os «conhecimentos». Não é esse o aspecto mais radical do religioso, pelo que é necessário ver a religião e a ciência num âmbito mais abrangente, que não se limite ao aspecto cognostivo. Considero que a apreensão humana é mais vasta que a razão e que o conhecimento. O aspecto cognostivo é apenas um aspecto da razão humana e o homem não se reduz à razão. Tem também sentimentos e/ou afectividade, vontade… E nisto é preciso reivindicar, contra o que se escreveu por cá, a necessidade da metáfora, da analogia, da poesia, da arte… também em religião. Aspectos fundamentais na vida humana, fundamentais na experiência religiosa, que não estão completamente arredados da ciência e da filosofia, como é evidente.
Embora à pressa, pareceu-me bem vincar estes aspectos antes de começar a resposta formal aos diferentes aspectos do seu comentário, porque assim fica mais claro o plano em que me situo e desde o qual tratos estes temas.
E agora «entro» no texto do Desidério.
O ponto de partida. Sim, é verdade que em religião normalmente há limites de ortodoxia, mas nem é o elemento mais fundamental, sobretudo se por ortodoxia se entender o sistema de dogmas. Há religiões que se apresentam como não dogmáticas e nem por isso deixam de ser religiões. Há religiões onde a definição do que é mais ou menos ortodoxo tem uma relevância muito reduzida. De qualquer forma, sendo o dogma muito importante em algumas religiões, como é o caso do cristianismo, ele não é o ponto fundamental do dado religioso. A questão dos dogmas é bastante derivada, embora muito importante. O cristianismo é também uma praxis. O mandamento essencial do cristianismo não é um culto, nem um «dogma» sobre Deus ou o mundo sobrenatural «tout court» mas algo mais «concreto»: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei». É preciso ir ao fundo daquilo que antes chamei a dimensão teologal do homem.
Que significa «acreditar»? No «post» anterior falei da importância dos dogmas na investigação e no perguntar teológico. Agora, porque se referiu Leonardo Boff, vale a pena lembrar algo mais. Sendo um âmbito que não é meramente cognostivo, o dogma tem sentido apenas «ad intra», numa comunidade de pertença, no contexto da fé. Todos os dogmas são estúpidos fora do ambiente da fé! [Também «todas as cartas de amor são / ridículas...» (Álvaro de Campos).] Ora a fé, repito, não é a mera aceitação acrítica de certas afirmações tidas por verdades mas não provadas cientificamente, mas a entrega pessoal a alguém que se me apresenta como absoluto e verdadeiro. A palavra «entrega» é fundamental. Ao tratar deste tema não se pode ignorar a distinção agostiniana entre credere Deo (a fé seria aceitar conteúdos, o que Deus comunica) e credere in Deum (acreditar, dar crédito à pessoa de Deus). O mesmo autor sublinha a importância fundamental da segunda noção. Santo Agostinho diz da fé que «credere in Deum (est) credendo amare, credendo diligere» (portanto, crer em Deus é amar acreditando). Falar da fé sem esta abrangência é fazer mera caricatura. Ora, até agora vi aqui falar de fé apenas num sentido de aceitar verdades pré-estabelecidas. Meio a brincar, meio a sério, já expliquei que o diabo sabe que Deus existe e conhece bem todos os dogmas e não se salva, não vai para o céu; não tem fé. Talvez isto signifique que o que se tem dito por cá sobre a fé é muito pobre. E porque se fala apenas nesse nível? Porque só se vê a questão em termos cognoscitivos. Ou seja, insiste-se nos limites da religião, mas parece faltar um esforço por alargar os limites da própria visão.
O «lugar» do dogma. Ora, se tivermos todos estes elementos em conta, o dogma surge como algo natural e até desejável, já que ele define, para aqueles que já aderiram, pela fé, não apenas os conteúdos da fé, como também a pertença a uma «comunidade de salvação». É completamente diferente para um crente que Jesus Cristo seja Deus e homem ou que seja apenas um homem como o foi Sócrates (o filósofo).
«Actualização» do dogma. Evidentemente, relembrando ainda o que dizia antes sobre a função do dogma no pensamento religioso, tenha-se em conta que o dogma também é «interrogado» para ser melhor «entendido» ou «actualizado». Por exemplo, a palavra «pessoa» aplicada à Santíssima Trindade tinha no Concílio de Niceia um sentido diferente daquele que hoje temos presente ao dizer tal palavra. «Pessoa» na Trindade não significa «indivíduo». Algo parecido se diga da «transubstanciação». Hoje o conceito de substância quase não tem relevância, uma vez que quase desapareceu do vocabulário filosófico. Continuamos a usar a palavra «transubstanciação», talvez à falta de melhor e pelo seu peso histórico, mas é preciso «explicar» isto de «outra forma». Da mesma forma que não é muito simpático «mandar bocas» contra a filosofia sem a conhecer (o Desidério o disse e eu estou de acordo), o mesmo critério deve ser aplicado à teologia, que é bem mais dinâmica do que parece a quem está «fora».
Boff expulso? O uso e o abuso. Em relação ao caso de Leonardo Boff, creio ser difícil falar aqui de um problema restrito de ortodoxia. Leonardo Boff foi proibido de ensinar em nome da Igreja, mas continua a ser membro da Igreja Católica. Não foi excomungado. Há exemplos «melhores». Eu não concordo com o processo que lhe foi movido (sobretudo com os métodos usados), mas o seu caso não invalida a religião. Quando muito, é um exemplo de que as diferentes religiões também precisam de ser purificadas, mas não suprimidas. O abuso não destrói o uso. Há na Igreja um lema famoso que diz «ecclesia semper reformanda», porque realmente há sempre algo a reformar. Não é por acaso que os cristãos sempre se confessam pecadores… A Igreja não é o conjunto dos «puros», mas a assembleia dos que, embora pecadores, aderiram pela fé à pessoa de Jesus Cristo.
2. O dogma, de novo. Em relação a este ponto 2, já respondi no essencial no ponto anterior. O dogma é perigoso em ciência e em filosofia, mas tem o seu lugar em religião. Mas para o entender é preciso «entrar», isto é, perceber a dinâmica interna da fé, que vai muito para além de «conteúdos». É fé-entrega, relação pessoal, experiência, comunidade, etc.
3. A verdade e a verdade em sentido bíblico. Quanto às minhas ideias sobre a verdade, não creio que esteja propriamente errado. Em primeiro lugar, eu dizia que «parece que predomina, na prática, a noção […] de que a verdade é a adequação do pensamento à realidade […], enquanto outros parecem «refugiar-se» na ideia de que tudo é construção…». Esta frase foi escrita com tripla precaução, pelo que eu não afirmo taxaticamente que «a ciência está comprometida com a teoria da verdade como correspondência». Afirmo que me «parece» que «na prática»… Isto tem a ver com os meus contactos com várias pessoas das ciências e com a minha impressão de somos em geral «realistas ingénuos» e que o discurso de muitas pessoas das ciências parece alinhar por aí… Evidentemente, é sobretudo uma suspeita da minha parte.
Em segundo lugar, não concordo com a «eliminação» dos vários sentidos de verdade que enunciei. Eu creio que a verdade pode ser vista sob vários aspectos, mas todos eles são verdade. Não se trata exactamente de sentidos tão díspares quanto nas expressões que citou com a palavra «banco». Isto daria para outra longuíssima discussão, mas o que me interessava e continua a interessar neste tema é que em teologia, especialmente na teologia judeo-cristã, «verdade» incorpora um sentido que habitualmente não se tem presente na ciência, mas que é parte integrante da vida humana, vida na qual ciência e religião tem o seu lugar. Creio que neste ponto já fui bastante claro.
4. A competição… O Desidério volta a falar da competição, afirmando que ela é inevitável, porque a religião faz afirmações empíricas e morais. Há certamente pontos de contacto, já que o homem não vive em compartimentos estanques. Mas considero errado compará-las exclusivamente sob esse ponto de vista, já que se encontram em planos bastante diferentes. No que diz respeito aos pontos de contacto, que, sim, existem, creio fundamental que se mantenha a independência, mesmo que isso custe tensões. Mas não se resolvem tensões por eliminação. Se «a Bíblia diz como se vai para o céu, não como vai o céu», à ciência cabe a crítica à religião quando esta queira impor o «como vai o céu» e à religião cabe lembrar à ciência que não se pode substituir à religião.
Religião, praxis e moral. No que diz respeito à moral, o caso é talvez mais complexo, porque o fenómeno moral tem fortes afinidades com a experiência religiosa e da experiência religiosa nascem necessariamente consequências ao nível do agir moral. Lembro o já dito anteriormente: o cristianismo é também uma praxis. A experiência moral perpassa também a actividade científica, mas é fundamental notar que a ciência não pode «fazer» nem «fundamentar» uma moral. Aqui pode haver e há tensões ao nível moral, mas querer reduzir a religião «à sacristia», ou ao «foro privado», é também um pressuposto (!) que viola a própria natureza do religioso. De resto, da mesma forma que a fé não se reduz a um conjunto de dogmas, também a religião não se identifica com uma moral. Por outras palavras, religião não é moral, muito embora religião e moral interajam e da primeira nasçam consequências para a segunda. Querer eliminar ou invalidar uma religião porque não agradam os preceitos morais dela emanados é, além de uma prepotência, uma mostra de incompreensão do fenómeno religioso no seu todo. Evidentemente, ao dizer isto não estou a acusar o Desidério de ter afirmado tais coisas. Apenas tiro algumas consequências possíveis de algumas afirmações. As consequências morais da religião devem poder ser traduzidas numa linguagem não exclusivamente teológica, para que seja possível o diálogo com os que não pertencem à mesma comunidade de fé. Em tempos a noção de «lei (moral) natural» serviu como plataforma fundamental; hoje parece estar em crise, pelo que há certamente necessidade de buscar novos instrumentos, mas a dificuldade de diálogo não tem que significar a anatematização mútua…
Problemas do camandro... Depois, ainda no ponto 4, vem um trecho que tenho que citar, a propósito do eventual uso de dados científicos para provar dogmas, porque ele merece ser visto com certa calma. É o que eu chamaria «o trecho do camandro» (gosto muito desta palavra, que o Desidério usou):
Diz o Desidério:
«Era o que faltava os filósofos ou os cientistas terem de se abster de defender certas ideias porque são contrárias ao dogma religioso. Aliás, é algo hipócrita a posição de algumas pessoas religiosas a este respeito — pois caso um cientista conseguisse provar a existência do Paraíso, ou que o vinho realmente sofria uma transubstanciação ao ser benzido na missa, de certeza que os religiosos não diriam “ah, pá, isso que se lixe, é irrelevante, é de outro domínio, eu tenho a minha fé e isso das provas científicas não interessa para nada”. O camandro é que não interessa. Só não interessa porque nunca se conseguiu provar o que as religiões declaram que é verdade sem provas.»
Aparentemente coerente, este texto apresenta vários problemas, que agruparei em dois aspectos.
Não calar… Em primeiro lugar, no dizer do Desidério, a ciência não se cala mesmo quando isso implica ir contra o dogma religioso. Mas então, isso implica que a ciência «falsificou» os dogmas religiosos? Note que falo em dogma em sentido técnico, o que lhe pertence, que são aqueles que são realmente determinantes para o homem religioso, que, em linguagem religiosa, têm implicações ao nível da salvação. Portanto, o sistema geocêntrico não é um dogma, nunca o foi. Falemos dos dogmas cristológicos, trinitário(s), escatológicos (de «éschaton»!)… Foram «falsificados» pela ciência? Acha mesmo que estes dogmas impedem por si mesmos a actividade científica? Como explica então que haja tantos cientistas católicos, alguns dos quais são padres? Serão menos cientistas por serem católicos?
Se a ciência provasse algum dogma... Em segundo lugar, com a acusação de hipocrisia, diz que, se pudesse, a Igreja usaria resultados científicos que corroborassem os seus dogmas. Mas, então surge uma multidão de problemas! Se, usando o seu exemplo, a ciência provasse a transubstanciação, esta continuaria a ser dogma? Continuaria a ser algo aceitável apenas pela fé? Não lhe parece que o exemplo não colhe? Nem este, nem qualquer exemplo que lhe ocorra sobre qualquer dogma! Qualquer dogma que fosse provado cientificamente não apenas tornava esse dado em dado evidente a toda a pessoa, mesmo sem fé, como, pela relação que tem com os outros dogmas, transformaria os conteúdos da religião em dados evidentes a quem não se recusasse ver, como um dado empírico mais. Portanto, não me parece que tenha qualquer sentido esta do camandro!…
5. Pressupostos: se a fé (não) fosse só conteúdos… Em relação aos pressupostos, creio que o que disse no início do meu ponto 1 é esclarecedor. O Desidério continua a projectar sobre a religião pressupostos que são «derivados», parciais, e de modo nenhum «primários» ou «pontos de partida» do religioso. Note o seguinte: os primeiros discípulos de Jesus tiveram uma fé bem grande e não manifestaram formalmente a aceitação de qualquer dogma. Mas houve ali e há em toda a manifestação religiosa algo que não vi mencionado pelo Desidério: uma «experiência religiosa». A fé é também uma experiência, na qual se insere o pensamento religioso.
Passar os pressupostos a pente fino, desde donde?... Parece-me importante ainda comentar o seu texto, citando: «Afirmo apenas que qualquer pessoa pode pôr em causa os pressupostos da filosofia ou da ciência, passá-los a pente fino, e isso é bem recebido. Na verdade, é isso que explica o dinamismo da ciência e da filosofia: cada um de nós pode pôr em causa seja que pressuposto for dos seus colegas matemáticos, físicos e filósofos. Temos é de argumentar.»
Comento: Ora bem, mas há aqui um «salto» não autorizado… Tudo é criticável dentro de uma certa «moldura»… O cientista não pode pôr em causa a metafísica porque nunca detectou o Ser de Parménides ou as mónadas de Leibniz… «Temos é de argumentar», é verdade, mas dentro de um determinado contexto. Em religião a argumentação também existe, mas dentro da «moldura» que lhe é própria. Tentar invalidar a religião porque não posso provar cientificamente a existência de Deus é saltar indevidamente de plano. É, afinal, o que de outra forma pretende fazer o criacionismo…
«Uma voz nos disse»… O Desidério continua (e será a minha última citação):
«Não podemos limitar-nos a dizer que uma voz nos disse ontem à tarde por volta da hora do chá que afinal o Einstein era uma besta e a luz não passa de uma manifestação dos Blins, uns seres especiais que se vestem de fato e gravata apesar de na realidade não terem corpo, existindo nos interstícios do silêncio que se encontra apenas quando há muito ruído, mas apenas provocado por gente que se embebedou com vinho sagrado.»
Comento: Claro, não seria ciência… Mas se eu pretendesse usar o mesmo «rigor» científico para uma apreciação estética sobre uma música, sobre uma declaração de amor, sobre as saudades que tenho de alguém, ou sobre a possibilidade de chegar vivo ao fim desta mensagem, ou sobre o sentido da minha vida, daria em louco, certamente. A religião não é simplesmente um conjunto de enunciados «vindos de fora»; é também uma experiência que radica profundamente na constituição humana, como escrevi no comentário anterior quando falei de Karl Rahner. E nesta experiência entra a fé, fides, que está ligada intimamente a fidelidade, confiança, entrega...
Um elemento fundamental da fé cristã é a transmissão de um testemunho, ao qual eu dou crédito ou não. Portanto, ao contrário da ciência, aqui pode haver lugar para «uma voz me disse», se a essa voz eu dou credibilidade. Diante de uma «voz» (aqui refiro-me, por exemplo, a outra pessoa, não a fenómenos «sobrenaturais») posso aceitar, dar credibilidade, aceitar que posso «actualizar» a experiência de encontro com Deus que outros testemunham ter experimentado; posso ficar-me por uma «aposta pascaliana»; posso adoptar uma «aposta pascaliana ao contrário», que seria essa ideia da «hipótese desnecessária» de que falou o Desidério em «post» anterior; posso rejeitar tal proposta. O espaço da liberdade é fundamental. Contudo, não se trata de mera «transmissão» de um «relato» que me é alheio; ele é de alguma forma o «espelho» de algo muito mais profundo, a que chamei a «dimensão teologal», a que a filosofia me pode ajudar a chegar. Portanto, ao contrário do que sugere, não é necessariamente um discurso completamente arbitrário, sem qualquer ligação com uma camada mais profunda da minha constituição humana. O que é importante é que o Desidério não ignore esta vertente fundamental e tão vasta.
6. Uma promessa. Muito bem, espero o tal post prometido sobre a fé.
Oops, bati mais um record no tamanho de um comentário. As minhas desculpas! Não tive tempo de pôr isto mais curto! :o)
Alef
Caro Alef
Obrigado pelo seu extenso comentário! Cumprimentos ao Lugo.
Não vou poder responder exaustivamente, seria fastidioso. Escreva-me pessoalmente e poderemos continuar esta conversa. Depois poderemos pôr no blog as partes interessantes.
Digo-lhe só que é um prazer poder discutir ideias com uma pessoa claramente ponderada e séria. E digo-lhe que algumas das pessoas que mais prezo são religiosas -- e muitas outras com quem trabalho diariamente nem sei se são ou não religiosas. Portanto, numa coisa estamos de acordo de certeza: pode-se ser religioso de forma séria.
Deixe-me só responder a isto: é falso que se faça em ciência ou sobretudo na filosofia uma discussão só depois de se aceitar uma série de pressupostos. Pelo contrário, os pressupostos podem sempre ser postos em causa, mesmo os mais básicos. E isso é precisamente o que não se pode fazer no âmbito religioso. Não estou ainda a dizer que isso é bom ou mau -- apesar de eu achar que é mau.
Quanto à religião como modo de vida e entrega pessoal, isso em nada invalida o que eu disse. Pois a filosofia também o é, tal como a ciência, mas a diferença marcante continua a ser a mesma: na ciência e na filosofia trata-se de avaliar criticamente se este ou aquele modo de vida é o mais indicado, trata-se de saber se esta ou aquela entrega é justificável. Na verdade, ninguém pode evitar entregar-se às verdades da ciência -- fazemos isso de cada vez que escrevemos na Internet -- mas podemos viver na boa sem nos entregarmos a Cristo, a Buda ou a Apolo.
Caro aff,
se a «ressurreição» tivesse sido sempre encarada como uma metáfora, o cristianismo não teria tido um centésimo do sucesso que teve. Sem a fé na ressurreição, o cristianismo é uma filosofia como qualquer outra.
Quanto a ter explicações religiosas para fenómenos físicos ou biológicos, não sei no que está a pensar. «Explicação religiosa» aproxima-se de ser um oxímoro. Nunca vi a religião explicar fosse o que fosse.
Ricardo
Permita-me discordar. Eu acho que as religiões sempre explicaram várias coisas, desde os fenómenos naturais às razões pelas quais devemos viver a vida de certa maneira.
O problema é que tais explicações são sempre ou quase sempre incorrectas ou baseadas em mitologia e superstição.
Mas concordo consigo que a ressurreição não é doutrinariamente encarada como mera metáfora pela doutrina da generalidade das igrejas cristãs, incluindo a católica.
O Alef é uma pessoa demasiado sofisticada para aceitar as mitologias cristãs, e então interpreta-as metaforicamente. Mas isso é outra religião, intelectualizada, muito diferente da religião efectivamente vivida pela generalidade das pessoas religiosas. O que levanta um problema: até que ponto a religião, para se afirmar, tem mesmo de ser mitológica e irracionalista? Pois parece-me que para a maior parte das pessoas uma religião intelectualizada, metaforizada, não responde às suas ansiedades. Elas querem mesmo um tipo com barba no céu para cortar as mãos ao vizinho que é invejoso e para nos recompensar com uma vida eterna fixe num paraíso que é mais ou menos como viver em Beverly Hills. Tire-se isso à religião e perde o seu apelo junto das massas. Este é um dilema lixado, que penso que só podemos resolver elevando o nível de ensino para todos. Tivessem as massas a sofisticação intelectual do Alef, e não teríamos bombistas suicidas e fundamentalismo religioso, e não teríamos criacionistas.
Acho que mais do que sofisticação social ou intelectual, o que mais falta faz é bom senso e ponderação.
Infelizmente sou obrigado a concordar que a imagem que se tem da religião é na maioria das vezes errada, quer seja da parte de muitos crentes quer seja da outra face da moeda, os não-crentes.
Caro Desidério,
é evidente que as religiões «explicam» várias coisas. Mas «explicam-nas» no mesmo sentido que a astrologia ou a psicanálise explicam a matança da Virgínia ou a esquizofrenia, respectivamente.
Quanto ao seu parágrafo final, uma ilustração possível é o que se passou nos EUA desde a independência. Num clima político em que nenhuma igreja era privilegiada, as mais fundamentalistas expandiram-se (ou fundaram-se novas), e as mais «moderadas» (quer nas exigências da fé, quer nas prescrições sociais) definharam. Igrejas como os unitários ou os quakers são exemplos da segunda situação; as igrejas baptistas, os mórmones e as TJ´s são exemplos da primeira.
E contudo para nenhum cristão a ressurreição é simples metáfora.
Interessantíssima discussão sobre a qual muito haveria a dizer, por certo! A mim, o fenómeno religioso desde muito cedo me cativou e claro que o não considero um mero conjunto de mitos e metáforas que precedeu a idade da razão ou o pensamento científico. Deveras, e creio que já o disse noutro comentário, Ciência e Filosofia e Religião perseguem, todas 3, o mesmíssimo objectivo que preside à insaciável curiosidade do Ser Humano, a saber: a Verdade ou natureza da última Realidade!
Mas não vou discursar ainda sobre isto, deveras só intervenho por essa menção à impossibilidade física da ressurreição, que alguém referiu atrás. Talvez não seja inteiramente assim, a crer nos casos invulgares de reanimação espontânea de pessoas dadas como clinicamente mortas, o que naturalmente significa que o corpo de Cristo poderia ainda estar vivo, pese embora a aparência contrária. É que se ainda hoje e com toda a parafernália técnica é possível declarar morto um vivo, o que não seria há 20 séculos atrás! A propósito, compare-se também com o episódio de Lázaro, logo Cristo nem terá sido o único que ressuscitou dos mortos! ;)
Obviamente, o que refiro é uma mera hipótese académica, nada mais. Ainda assim, é muito interessante pôr em paralelo o relato bíblico desses 3 dias no reino de Hades – com a subida aos Céus e a descida aos Infernos, por exemplo – com as intrigantes experiências de quase-morte, agora cada vez mais aceites e amplamente divulgadas, onde há por vezes alguns registos semelhantes. Enfim, curioso, no mínimo... Logo, mais um ponto para supor que a ressurreição poderá ter sido só uma reanimação e que a consciência jamais abandonou por completo aquele corpo.
Ah! Isto até me fez agora recordar a interessantíssima noção tibetana de bardo ou a transição entre os diversos estados de consciência, tanto no plano físico (sono, sonho, vigília e transcendência) como no não-físico.
Logo, a famosa mente aberta deve ser aplicada em ambos os sentidos, naturalmente. E então se falarmos da surpreendente concepção oriental quando à realidade universal, muitíssimos pontos de contacto com as mais modernas descobertas da ciência de ponta se poderiam encontrar! Interessante, já que não parece ter sido através da ciência, como hoje a entendemos, que tais conceitos foram adquiridos. Mera especulação filosófica? Talvez. Ou será que a realidade interior espelha mesmo o universo interior e assim "o que está dentro é igual ao que está fora e o que está em cima é o mesmo que está em baixo", Hermes Trimegistus says?! :)
Assim como todas as coisas são e procedem do Uno, pela mediação do Uno, assim todas as coisas nasceram desta coisa única, por adaptação. (Hermes Trismegistus)
Ainda um ponto que reputo de muito interessante e significativo, já que foi considerada atrás essa possibiliade, pelo menos teórica, da ciência validar fenómenos da esfera religiosa, como a "transubstanciação" ou a "ressurreição", por exemplo.
Ora bem, antes do conhecimento científico havia, naturalmente, um conhecimento empírico. De facto, as ciências médicas, e em particular a indústria farmacêutica, até se aproveitam deste empirismo no campo da fitoterapia tradicional para investigar os princípios activos de certas plantas com propriedades curativas.
Ou seja, muito daquilo que já se sabia há imenso tempo, pela simples via da experiência, está agora a ser também explicado pela racionalidade científica... muito bem!
E se a religião, ou alguns fenómenos religiosos, na sua componente de psicologia humana, onde o sentir e o íntimo vivenciar é importante, também puder vir um dia a ser, pelo menos parcialmente, explicada?! De facto, há até alguns cientistas que já se dedicam a estudos sobre a psicofisiologia do êxtase ou da meditação, por exemplo. Analisando também os circuitos neuronais no cérebro, à semelhança dessa experiência recente sobre a doçura do chocolate e do beijo... oh! ser cobaia assim desejo! :)
É certo que os campos até são diferentes, mas continuo a pensar que todos esses 3 caminhos convergem para a mesmíssima meta: a busca da Verdade e o que é a Realidade!
Ah! A definição até é fácil: aquilo que NUNCA muda, que é hoje como foi ontem e será amanhã! E haverá algo de eterno... Verão constante sem Inverno?!
I dearly love that name TAO... somehow! :)
The Tao is infinite, eternal.
Why is it eternal?
It was never born;
thus it can never die.
Why is it infinite?
It has no desires for itself;
thus it is present for all beings
Desidério,
Quanto ao afirmado lá atrás:
1. A diferença fundamental é que em qualquer religião há ortodoxia. Quem não a respeita, é expulso. Na ciência ou na filosofia isso não acontece. Se eu fizer uma conferência para tentar mostrar que um dos maiores filósofos vivos (ou do passado) está errado, não serei expulso da comunidade. Posso pôr em causa todos os pressupostos filosóficos que me apetecer e até posso ficar famoso por isso. Compare isso como que aconteceu ao Leonardo Boff http://leonardoboff.com/, como a tantos outros. Mas tenho é de argumentar.
Gostaria de perguntar-lhe algo, como seria tratado, ciêntificamente, um professor de medicina que afirma-se que o coração, assim como a vesícula é desnecessário ao bom funcionamento do corpo humano, e pode ser extraído sem maiores preocupações.
Seria convidado a dar palestras, e seria aclamado? Ou perderia seu cargo, e até seu registro médico?
Concordo com você em apenas um ponto, este provavelmente ficaria famoso.
Tudo que foi comentado tem fundamento dentro da biblia,a graça de Deus não é religiao e a ciencia é Religiao? Porque? pesquise. Tá na biblia.Ciencia e graça não há o que comparar. tudo é vosso.apenas uma serve pra uma coisa e a outro pra outra coisa. difere apenas no objetivo.
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