quarta-feira, 25 de abril de 2007

Mutantes

Os ciclopes são das criaturas mais terríveis da cosmologia grega. Ulisses lutou e venceu, com grande astúcia, Polifemo, o gigante de um só olho, que se alimentava de carne humana dos companheiros de Ulisses, na Odisseia de Homero. De criaturas mitológicas, os ciclopes passaram a ser considerados uma raça de seres com estatuto ontológico. Santo Agostinho perguntou-se se estas poderiam ser criaturas de Deus. O padre Thomas de Cantimpré define a sua genealogia, ao atribuir-lhes o estatuto de descendentes deformados de Caim e Ham.

Contudo, os ciclopes não são apenas criaturas do imaginário universal: têm uma existência real. A colecção anatómica do holandês William Vrolik (1775-1859), em Amsterdão, apresenta vários casos de crianças ciclópicas. A deformidade - a presença de uma única cavidade ocular bem no centro do rosto, no local onde deveria encontrar-se o nariz - revela-se muito profunda: os indivíduos mais afectados apresentam um cérebro não dividido em dois hemisférios. Em vez de dois hemisférios, dois lobos ópticos e dois lobos olfactivos toda a parte superior do cérebro está fundida num único conjunto. Este tipo de deformidade é designada por holoprosencefalia e, na sua variedade, é a mais frequente deformidade cerebral nos humanos, afectando 1 em cada 16-53 mil nascimentos.

A ciclopia pode originar-se de forma assustadoramente fácil. Embriões de peixes podem desenvolver ciclopia se forem aquecidos, arrefecidos ou irradiados, privados de oxigénio, expostos a éter, fenol, cloreto de lítio, ácido retinóico, ou sal. Grávidas diabéticas ou alcoólicas têm uma probabilidade 200 vezes superior de ter fetos com alguma forma de holoprosencefalia. A maior parte dos casos é, contudo, resultante de mutações genéticas em, pelo menos, quatro genes humanos. Um desses genes codifica uma proteína sinalizadora chamada ‘sonic hedgehog’. Esta proteína é um morfogene, isto é, uma substância que sinaliza a formação e localização dos tecidos durante o processo de desenvolvimento; ao formar um gradiente de concentração ao longo do embrião, vai influir na activação inibição dos genes-alvo decisivos em cada etapa do processo e desenvolvimento. Durante o processo de formação do sistema nervoso central, o cérebro começa por ser um tecido unitário. A intervenção da proteína sonic hedgehog vai induzir a sua divisão em duas partes. Este processo é bastante óbvio na formação dos olhos: uma banda inicial vai diferenciar-se em duas pequenas regiões, uma de cada lado da cabeça. A ocorrência de mutações ou a presença de substâncias químicas que inibam a sonic impedem que tal ocorra, originando crianças ciclópicas.

Não sabemos se Homero se inspirou em casos observados ou se em descrições de outros, mas não será difícil imaginar quão impressionante terá sido para a imaginação das pessoas a observação de um caso semelhante.

Se hoje temos uma explicação – ainda incompleta – para o processo de formação de ciclopes em vertebrados, é porque a ciência, num passo regular, tem vindo a revelar o código da vida.

Há algum tempo terminei um post com a referência: somos todos mutantes. A César o que é de César: tomei a expressão emprestada a Armand Marie Leroi, do seu extraordinário livro, Mutants. O Livro foi muito bem acolhido pela crítica e deu origem a uma série no channel 4 britânico. É nele que se pode ler parte desta história sobre ciclopes. E está a ser traduzido. Leitura recomendada.

1 comentário:

Ciência Ao Natural disse...

Viva!
Comprei este livro recentemente e parece-me um excelente sugestão.
Apesar de totalmente centrado no ser humanos já me serviu para repensar algumas questões, nomeadamente do surgimento do gigantismo em dinossáurios.

Saudações

Luís Azevedo Rodrigues

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