terça-feira, 1 de junho de 2010

O FIM DAS HUMANIDADES? (2)

(CONTINUAÇÃO)

Do lado dos intelectuais da cultura humanista, a reacção não tem sido boa. Como não compreendem, contra-atacam, desvalorizando e tentando impor, com o seu quê de arrogância, o primado dos seus próprios valores: ler Homero, ou Virgílio e tratar-se por tu com Shakespeare dispensa bem saber o que diz e significa o segundo princípio da termodinâmica. Os juristas, os letrados, os historiadores não raro “se gabam” de não terem inclinação para os números. Não perceber matemática é um galardão. O poeta inglês Wystan Hugh Auden disse um dia: “Quando me encontro na companhia de cientistas sinto-me como um pároco mal amanhado caído, por erro, numa sala repleta de duques.” Quase juraria tratar-se, aqui, não de genuína modéstia, mas sim, de falsa humildade, com o fim de (mal) esconder a alegria exuberante de poder manifestar o seu alheamento do “charabia” dos cientistas. Não ter inclinação nem para números nem para abstracções demasiado refinadas – é, para tantos, da nossa feira de vaidades, uma bandeira que se arvora com orgulho. E é assim que o fosso se aprofunda. Cada vez mais correríamos o risco de andar a criar duas linguagens sem denominador comum. O conhecido linguista americano Noam Chomsky julgou poder estabelecer que “todas as pessoas têm, programada nos seus genes, uma faculdade chamada gramática universal.” O avanço vertiginoso do cabedal científico do nosso tempo, desacompanhado de uma tentativa séria de o tornar partilhável pelo comum das pessoas pode levar a pôr em causa a assunção de Chomsky. Por um lado, como nota Asimov, “a ciência não pára. É uma paisagem que subtilmente se dissolve e altera enquanto a olhamos. Não pode ser fixada em todos os seus pormenores, num qualquer momento, sem nos deixar ficar para trás.” No entanto, de há várias décadas a esta parte, um número perigosamente elevado de pessoas foi-se deixando ficar para trás, para se não incomodar com a linguagem bizarra dos “duques”. E, todavia, o fosso real entre as duas culturas é, de sua natureza, bem menor do que se tem inculcado. O professor Sir Cyril Burt, num eloquente prefácio que escreveu para o celebrado e controverso livro de Arthur Koestler, The Act of Creation, notava com pertinência: “O estudante da natureza humana mostra-se hoje em dia muito inclinado a esquecer-se de que a maior parte do que sabemos sobre a mente do homem aprende-se em escritos, não de cientistas, mas de homens de letras – os poetas e os filósofos, os biógrafos e os historiadores, os romancistas e os críticos literários. Eu digo aos meus estudantes que leiam o Ensaio sobre o Homem de [Alexander] Pope, bem como livro de texto de Skinner sobre Ciências e Comportamento Humano (Pope foi poeta e Skinner cientista).” E concluía assim: “Mas, na verdade, o psicólogo moderno, tal como o jovem Bacon, precisa de 'meter todo o conhecimento dentro da sua província'.” Thomas Kuhn, o autor do celebrado livro A Estrutura das Revoluções Científicas, observava, com o seu quê de provocação, que, “mesmo hoje, a teoria geral [da relatividade] de Einstein, atrai os homens, principalmente por razões estéticas, uma atracção que poucas pessoas, fora das matemáticas, têm sido capazes de sentir.” E, já agora, lembrarei – o que por mais de uma vez fiz – o admirável livro de Bronowski, Science and Human Values, no qual o autor recorda que “a maçã [que cai] no jardim de verão e a grave lua [que se move] acima das nossas cabeças são por certo tão dissemelhantes nos seus movimentos quanto duas coisas o podem ser [mas que] Newton descobriu nelas duas expressões de um só conceito, a gravitação: e o conceito (e a unidade) são, nesse sentido, uma criação sua.” Newton teria, por outras palavras, encontrado “semelhanças escondidas” numa aparente dissemelhança. O mesmo faz o poeta, observa ainda Bronowski, porquanto “uma imagem poética [é apenas] a captação e a exploração de uma semelhança escondida, o manter unidas duas partes de uma comparação que assim se darão mutuamente um acréscimo de profundidade.” E conclui com uma saudável e fundamental audácia: “As descobertas da ciência, as obras de arte são explorações – melhor, são explosões de uma semelhança escondida. O descobridor [científico] ou o artista apresentam nelas dois aspectos da natureza e fundem-nos num só. Isto é um acto de criação, no qual nasce um pensamento original, e é o mesmo acto em ciência original e em arte original.” É neste mesmo – e essencial – sentido que Arthur Koestler, no toque de clarim com que abre o primeiro capítulo do seu livro The Act of Creation (que engloba na sua “província” as artes e as ciências), nos adverte com estas firmes palavras: “A fluidez de fronteiras entre Ciência e Arte é evidente, quer consideremos a Arquitectura, a Culinária, a Psicoterapia ou a escrita da História. O matemático fala de soluções 'elegantes', o cirurgião de uma 'bela' operação, o crítico literário de personagens bi-dimensionais. Diz-se que a ciência visa a Verdade, a Arte a beleza; mas os critérios de Verdade (tais como verificabilidade e refutabilidade) não são tão limpos e duros como tendemos a acreditar, e os critérios de Beleza são-no, é claro, ainda menos.”

Pois então, perguntava eu, num texto que em tempos escrevi para um simpósio de cientistas portugueses que viviam no estrangeiro, “se tanto de essencial aproxima o cientista do artista e do escritor criativo, não será o caso de se começar a fazer um pouco mais no sentido de se dar [nas universidade] expressão curricular a tal semelhança? Não será lisinhamente aconselhável que se acabe, de vez, com esse falso fosso que divide as duas culturas e se inclua, para maior abertura, equilíbrio e até alegria e sentido de descoberta de ambas as partes, [se inclua, dizia] no curriculum de alguns alguma matéria do pelouro dos outros? Não seria normal, fecundo e aproximador que durante algumas horas por semana as humanidades fecundassem a reflexão dos aprendizes de cientista, nas universidades, e vice-versa? Note-se que falo de fecundação curricular e não de docência tolerada a horas tardias [e voluntárias] de erosão e cansaço. A proposta pouco tem de idealista e nada tem de original. O mito da super-especialização [automaticamente estreitadora], como muitos outros mitos, começou há muito a meter água por todas as costuras. No fim de contas, homens como Einstein, Oppenheimer, Bento de Jesus Caraça, Mira Fernandes, Tiago de Oliveira ou António da Silveira, para só citar alguns ao acaso, eram vultos de ampla abertura cultural, fora do domínio específico em que se distinguiram. Se, como queria Durrell, “a ciência é a poesia do intelecto e a poesia é a ciência dos afectos do coração”, seria, a todos os títulos, recomendável que ciência e poesia melhor se conhecessem, para que o coração se aproprie um pouco mais da ciência e a ciência um pouco mais do coração.”

Era isto, em resumo, que Sir Charles Snow, ao lançar, em 1959, o alerta de As Duas Culturas, pretendia, no fundo: o aparecimento de uma terceira cultura que fechasse o fosso entre as outras duas. Seria esse o ideal a atingir. Começa-se, no entanto, a pensar – porque se começa a verificar – que a “terceira cultura” imaginada por Snow não corresponde exactamente à terceira cultura que começou de facto a emergir. No seu livro que recolhe textos antológicos de notáveis cientistas vivos, John Brockman, no prefácio que antecede a selecção , dá-nos conta daquilo em que parece estar a tornar-se, de facto, a terceira cultura. Brockman, no seu bem arguido comentário, observa: “Embora eu peça emprestada a Snow a frase [As Duas Culturas], ela não descreve a terceira cultura que ele previu. Os intelectuais literários não andam a comunicar com os cientistas. Os cientistas é que andam a comunicar directamente com o público em geral. Os media do intelectual tradicional jogavam um jogo vertical: os jornalistas escreviam de baixo para cima e os professores escreviam de cima para baixo. Hoje, os pensadores da terceira cultura tendem a evitar o intermediário e conseguem exprimir os seus pensamentos mais profundos de modo acessível ao público leitor inteligente.” Por isso, concluía Brockman, “os recentes êxitos editoriais de livros sérios de ciência só têm surpreendido os intelectuais do velho estilo."

O seu ponto de vista é que estes livros são anomalias – que são comprados mas não são lidos. Eu discordo. A emergência desta actividade da terceira cultura é o testemunho de que muita gente tem uma grande fome intelectual de novas e importantes ideias e estão desejosas de fazer o esforço necessário para se educarem. Se alguma coisa a terceira cultura veio fazer, foi marginalizar ainda mais uma classe de mandarins intelectuais antiquados e elitistas, abrindo-se à divulgação e livre discussão das ideias mais importantes e influentes do nosso século.

Eugénio Lisboa

(CONTINUA)

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu-genuidades! JCN

JCC disse...

"O avanço vertiginoso do cabedal científico do nosso tempo, desacompanhado de uma tentativa séria de o tornar partilhável pelo comum das pessoas pode levar a pôr em causa a assunção de Chomsky."
Importa-se de clarificar a afirmação?

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