sábado, 17 de novembro de 2012

Camilo e a Química: O meu condescípulo e O que são os ventos? de Cavar em ruínas




Em O meu condescípulo, último capítulo do livro Cavar em Ruínas, Camilo Castelo Branco refere algumas peripécias dos seus estudos de Química na Academia Politécnica do Porto.

A frequência desta disciplina, assim como as de Anatomia e Botânica, fazia parte dos preparatórios para o curso de Medicina, nos quais Camilo se matriculou em 1844, é referida por vários autores. Em particular, Isabel Cruz, no TriploV, traça a história dessa época na Academia Politécnica e analisa o que é facto e ficção nesta narrativa de Camilo.

Para além de Camilo, que se apresenta como aluno boémio e pouco dado ao estudo, o texto refere-se a Francisco Pereira de Amorim e Vasconcelos (1812-1859), farmacêutico do Porto que foi durante algum tempo preparador na Escola Politécnica, de forma muito elogiosa: Amorim era doutíssimo na sua especialidade, e, sem favor, o primeiro químico experimental do Porto. Era disertíssimo e correcto; benfazejo, liberal com os pobres e consigo, austeramente económico e abstinente. Devo à sua memória esta notícia em paga de ele me ajudar a fingir uma vez que eu sabia química.

Tendo desistido de estudar para o ponto, o qual incidiria sobre a “kermes mineral entre outras coisas”, não sabendo sequer em que página a matéria começava, Camilo acaba por encontrar à porta do quartel general, onde tinha ido ouvir música, Amorim e Vasconcelos que se propõe ajudá-lo. Nas suas próprias palavras: Escutei-o até às duas da madrugada. Quando saí, sabia o ponto, sabia os rudimentos da química, sabia a história e a filosofia da ciência, conhecia Berzelius, Gay-Lussac, Orfila e não sei quem mais. Competentemente instruído por Amorim e Vasconcelos, Camilo acabou por fazer um ponto nemine discrepante e, não fora o número escandaloso de faltas e fugidas, teria, nas palavras de Amorim, sido premiado.

Camilo Castelo Branco sabia muito bem dosear os factos e a ficção. Isabel Cruz confirma que Camilo identifica correctamente o livro adoptado e o professor, mas alerta-nos para o facto de Amorim e Vasconcelos só ter estado matriculado no curso de Química uma década mais tarde.

A referência à kermes mineral é, na minha opinião, um aspecto pitoresco a que Camilo não resistiu. No livro adoptado (Abrégé élémentaire de chimie de Jean-Louis Lassaigne), que Camilo denomina Lasagne, referindo não lembrar a ortografia, as propriedades e preparação do kermes mineral são, de facto, descritas de forma detalhada. Trata-se de um medicamento de antimónio com uma composição variável de trissulfureto e trióxido de antimónio, obtido de forma artificial e que, desde o século XVIII, e ainda na altura de Camilo, teria aplicações médicas como emético, purgante e sudorípero. Camilo, que conhecia desde jovem as farmacopeias da casa do seu cunhado médico, provavelmente conheceria este medicamento.

Mais tarde, Amorim e Vasconcelos acabaria por se tornar um adepto da homeopatia e do espiritismo, como foi aliás comum entre vários cientistas da época (basta lembrar Crookes). Camilo foi-o encontrando cada vez mais magro e alienado, afirmando que o lugar dos espíritos não era neste mundo. Mais tarde Amorim e Vasconcelos acaba por se suicidar, deixando-se cair de uma varanda.1

A análise que Camilo faz da homeopatia é de uma grande sagacidade e clareza: Não duvidava assegurar-me que dez gotas de nux lançadas das Berlengas ao mar podiam converter o oceano num remédio bom para dores de estômago, de cabeça e outras. As demonstrações saiam-lhe claras e irrecusáveis como uma operação algébrica.

Embora Camilo não tenha tido como Goethe uma iniciação profunda nas ciências experimentais, as suas observações pertinentes revelam que Camilo sabe do que fala quando se refere a aspectos científicos. Não me parece que Camilo procurasse criticar a Ciência ao mostrar as tolices pseudocientíficas em que as pessoas inteligentes se podiam envolver, ou reduzindo o ensino da química a eloquência recamada de protos, de deutos, de bis, de sesqui, de pilhas, de retortas, e várias coisas com que os homens entretêm a vida para não morrerem de tédio. Camilo apreciava com certeza a Ciência mas não tolerava o ridículo e procurava os efeitos cómicos da caricatura.

Também em Cavar em ruínas, Camilo faz a análise de um texto anónimo de 1732 denominado A Fenix das tempestades, escrito a propósito de uma grande tempestade que se abateu sobre Lisboa. Vai comentando o texto anacrónico e pseudocientífico nas suas mais variadas vertentes e quando chega ao domínio da ciência das tempestades não deixa de referir a falta de Gay-Lussac no panfleto. Mais à frente desculpa o autor anónimo por apenas depois de 1750 é que Demaison estudou o fenómeno da congelação, e Saussure escreveu as suas observações sobre as nuvens, chuvas e formação de vapores. As auroras boreais, o raio e a electricidade foram também depois examinadas por Franklin e Mairan. Dufay e Volta estudaram o orvalho e a saraiva. E termina com bom efeito cómico: Apesar disso sejamos lisos e modestos: o autor da Fénix das Tempestades foi o asno mais desmedido do seu tempo.
1 Este tipo de suicídio foge à tipicidade de forma que mais tarde se tornou quase uma verdadeira mania nacional entre os intelectuais. No final do século XIX e princípio do século XX, intentado principalmente à pistola (Camilo foi um deles), por vezes com recurso a mais do que um tiro, mas também com veneno, corte dos pulsos, enforcamento, afogamento e até com explosivos, foram identificados por José Brandão quase duas dezenas de suicidas notáveis!

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