domingo, 12 de dezembro de 2010

A DOCÊNCIA DA MATEMÁTICA E DAS CIÊNCIAS DA NATUREZA NO ENSINO BÁSICO



“Achais estas páginas cruéis? Pensais que não nos dói tanto escrevê-las com a vós lê-las? ” (Eça de Queiroz, 1845-1900).

Não escapando à tentação de louvor em boca própria, políticos portugueses julgando passar para história, ainda que mesmo para aquela história que é apenas o esforço desesperado dos homens para darem corpo aos mais claros dos seus sonhos, como escreveu Albert Camus, tentam, em ocasiões de crise, fazer passar a nuvem por Juno.

Mais uma vez isso aconteceu quando na semana ora finda, em plena Assembleia Nacional, o Partido Socialista se congratulou, em exaltação da obra educativa do seu governo, com o êxito alcançado por alunos portugueses nos testes PISA – segundo Nuno Crato, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, em “questões de aplicação da Matemática em situações do dia-a-dia, muito simples” (Público, 11/12/2010) – em anúncio oficial de caudais de sapiência académica, qual petróleo a jorrar no Beato para a resolução dos problemas económicos do país em sátira de uma revista à portuguesa de 1986.

Sejamos realistas! Numa país em que colhe honras a judiciosa sentença de Sigmund Freud, “a maior paixão da humanidade é iludir a realidade”, com a ingenuidade de acreditar, por outro lado, de que “água mole em pedra dura tanto dá até que fura”, tenho vindo, insistentemente, a chamar a atenção pública para a injustiça de haver docentes com formação diferente para o magistério do ensino básico, uns oriundos da Universidade, outros das Escolas Superiores de Educação, a concorrerem para as mesmas disciplinas. Concretamente, faço referência à aberrante docências conjunta das disciplinas de Matemática e das Ciências da Natureza no 2.º ciclo do básico a cargo de um enciclopédico diploma único obtido nas Escolas Superiores de Educação tido em paridade com licenciaturas universitários específicas, respectivamente, em Matemática e Biologia.

Como escrevi e rescrevi anos atrás, “isto apesar dos alunos das Escolas Superiores de Educação terem ingressado nos respectivos cursos com notas mais baixas, terem menos tempo de frequência escolar, terem saído com notas bem mais altas e a exigência do ensino aí ministrado ser bem menor daquele ministrado nos cursos de via ensino universitários" (Diário de Coimbra, 04/03/2010). Desta forma, rompendo com o passado que exigia para a docência precedida do antigo ensino primário uma licenciatura universitária, os responsáveis da 5 de Outubro fizeram-se vestais de um dogma educativo com a bênção forte sindicalista da melhoria do ensino estar na razão inversa da exigência formativa dos respectivos docentes.

Por vezes, a consciência leva-nos a ser assaltado pelo receio de que a prática da vida contrarie aquilo que temos como inamovível Rochedo de Gibraltar. Todavia, embora no dizer de Pessoa “o sossego não querer razão nem causa”, encontrei sossego para a razão da minha crítica em causa recente e, outrossim, respaldo em Eça quando nos adverte que “para ensinar há uma formalidade a cumprir - saber”.

Assim, na passada segunda-feira, no programa televisivo de grande audiência “Quem quer ser milionário", uma professora de Matemática, que se veio a saber pela sua própria boca estar simultaneamente habilitada para ministrar de Ciências da Natureza, exaltava “os cadeirões” do seu curso, de entre eles a disciplina de Estatística. Nem de propósito, e quando eu pensava estar ela na presença de ouro sobre azul, uma das perguntas que lhe foi formulada, entre 4 hipóteses - três que cito de memória, baço, fígado e intestino grosso -, foi a de responder em qual destes órgãos se encontrava localizado o apêndice. Por mais estranho e insólito que possa parecer, depois de andar da frente para trás e de trás para a frente, hesitou entre o baço e o intestino grosso. Finalmente, lá se resolveu pelo intestino grosso!

Concedo, sem qualquer dificuldade, que lapsos de memória possam ocorrer (na gíria académica, as chamadas “brancas”!) sempre que a pergunta formulada não tenha o auxílio de memória da resposta certa. Estou em crer, apostando dobrado contra singelo, que um licenciado em Biologia não hesitaria um segundo que fosse em dar a resposta certa provando, desta forma, que a promiscuidade de formação docente para o ensino das Ciências da Natureza do ensino básico só pode encontrar guarida em mentes sempre prontas a cometer a injustiça de igualar desiguais.

Este statu quo foi criticado por Reis Torgal, catedrático de Letras de Coimbra, ao usar da palavra num debate sobre esta temática, promovido pela Associação Académica de Coimbra, para se insurgir contra a formação de professores para um mesmo grau de ensino com diferente grau de exigência ( Diário de Coimbra, 19/02/2003). Ou seja, na voz do povo “cada macaco no seu galho” ou na máxima do Direito Romano, “suum cuique tribuere”, sem abdicar da dignidade que ambas as formações universitária e politécnica devem merecer de per se, nunca através de formações docentes diferentes para o mesmo grau de ensino. Quanto a mim, é este um dos actos da tragicomédia do sistema educativo nacional em que o pano de boca do proscénio tarda em descer para lhe pôr cobro definitivo!

5 comentários:

Anónimo disse...

Cursos tirados ao Domingo é no que dá...
O das velhas

Anónimo disse...

"Meanwhile, a 2010 study of teacher-prep programs in 16 countries found a striking correlation between how well students did on international exams and how their future teachers performed on a math test. In the U.S., researchers tested nearly 3,300 teachers-to-be in 39 states. The results? Our future middle-school math teachers knew about as much math as their peers in Thailand and Oman—and nowhere near what future teachers in Taiwan and Singapore knew. Moreover, the results showed dramatic variation depending on the teacher-training program. Perhaps this should not be surprising: teachers cannot teach what they do not know, and to date, most have not been required to know very much math." in http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2010/12/your-child-left-behind/8310/

Anónimo disse...

Eu não diria melhor. Mas a culpa não é de nenhum professor que está nessa situação de dar aulas de Matemática e Ciências mas sim, dos incompetentes que fizeram essa e outras leis aberrantes de que o nosso país e, em particular, a educação estão cheios.
Para ser sincero, eu até já evito pensar nesses assuntos porque pensar é um defeito que alguns de nós, em que eu me incluo, temos.
Para vivermos em (nesta "democrática")sociedade temos de pensar mas não verbalizar porque...sim.
Não sei se me faço entender.
E mais não digo porque eles andam aí e há a farsa da avaliação de professores e uma pessoa nunca sabe que blogues eles lêem.

Rui Baptista disse...

Agradeço os pertinentes comentários feitos a que penso dar atenção futura pelo interesse de que se revestem. Todavia, e desde já, não posso deixar de ter em conta um certo desinteresse da classe docente por medidas que penalizam a qualidade do ensino não lhe merecendo um repúdio vigoroso, continuado e sem desfalecimento que altere a aberrante situação de cabeças pensantes (?) que a tutelam quererem fazer querer aos portugueses que a qualidade do ensino está na razão inversa da qualidade da formação dos professores.

Nada fazer para alterar este estado de coisas é consentir que elas se perpetuem com o beneplácito sindical que tenta proletarizar cada vez mais a classe docente com manifestações de rua e manobras de bastidores que fazem com que a batuta das decisões da 5 de Outubro andem ao sabor de situações que premeiam os docentes de menor habilitação e castigam todos aqueles que se dispuseram a gastar os melhores anos da sua juventude, sacrificando, não poucas vezes, a magra bolsa familiar e queimando as pestanas para no fim verificarem que nada lhes valeu fazerem de formigas enquanto outros desfrutavam de cantares de cigarra.

Ademais, chegou a altura de chamar a atenção para o facto de o dirigismo sindical docente se ter quase profissionalizado querendo, todavia,fazer passar a mensagem de uma missão ao serviço do ensino, da grei e do próprio país. Nunca ao serviço partidário e de clientelas específicas que justificam a existência de inúmeros sindicatos docentes,ora organizados numa apelidada Plataforma Sindical, pagos pelo erário público, situação que só se verifica na Educação.

Com direito ao contraditório desafio quem quer que seja a demonstrar a existência de idêntica, ou sequer remota parecença, com outra qualquer profissão representativa do operariado a profissões de grande exigência académica. Se for feita tal prova, com a ombridade em não querer parecer (e muito menos, ser) injusto estou pronto a apresentar a minha “mea culpa”. A minha consciência e a dignidade do Ensino assim mo exige, assim como deve exigir uma reflexão a quem, consente, promove ou defende “à outrance” este estado de coisas. Deixar continuar tudo na mesma é pactuar com a situação porque no dizer do povo “quem cala consente”!

Rui Baptista disse...

Errata: Na 6.ª linha do 1.º parágrafo onde está "quererem", corrijo para "querendo".

Na 7.ª linha do derradeiro parágrafo, emendo "assim mo exige" para "assim mo exigem".

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