Mesmo nas vésperas da passagem do primeiro centenário da implantação da República em Portugal, é oportuno lembrar as raízes desse movimento político-social. E, entre elas, encontramos a visão científica do mundo e da sociedade que o século XIX proporcionou, na sequência do século que o tinha antecedido, o “século das luzes”.
Uma análise profunda das raízes do republicanismo em Portugal encontra-se na obra que acaba de ser reeditada de Fernando Catroga, conhecido professor de História na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910 (Casa das Letras, 2010). Trata-se de uma terceira edição, a qual, como explica o curto prefácio, mantém o texto da primeira e da segunda edições (de 1991 e de 2000, respectivamente), demandando para esse texto novos leitores. A capa fornece um conjunto de palavras-chave que são, afinal, palavras que convidam à entrada no livro e, portanto, à compreensão da teoria e da prática republicanas:
“Liberdade, Livre-Pensamento, Maçonaria, Igreja, Mulher, Moral, Poder, Ciência, Educação e Patriotismo na formação da República”.
Lá está a palavra “Ciência”, logo seguida pela “Educação”. E, no Capítulo 2, “A Visão Republicana da História e da Natureza”, é explanada a relação forte entre a República e a Ciência. Escreve Catroga:
“E sendo uma opção ditada por uma visão optimista do mundo, o advento da República era sentido como uma consequência inexorável de um destino inscrito na própria evolução cósmica”.
E, um pouco mais adiante:
“Ainda que nem sempre de um modo sistematizado, é indiscutível que o evolucionismo, que, em última instância, justificava historicamente a República, se baseava numa cosmogonia oposta às concepções criacionistas e providencialistas.”
De facto, o século XIX ficou marcado pelas ideias evolucionistas da autoria do naturalista britânico Charles Darwin, o autor de “A Origem das Espécies” (com primeira edição em 1859), segundo as quais o vasto mundo vivo era auto-organizado, não necessitando o seu desenvolvimento de constante intervenção divina. Tão profundo foi o impacto dessas novas ideias que, para muitos, Darwin foi o maior cientista do seu século. Na área da Física, a ideia de transformação apareceu também muito nítida na Segunda Lei da Termodinâmica, ou Lei do Aumento da Entropia, que foi enunciada, de formas diferentes mas equivalentes, quase na mesma altura pelo físico alemão Rudolf Clausius (1850) e pelo físico britânico William Thompson, Lord Kelvin (1851). Tudo muda, seja no mundo biológico, seja no mundo físico em geral, embora tenha demorado algum tempo a perceber que a evolução biológica, em sistemas abertos, que se dá no sentido da organização, não é incompatível com a evolução termodinâmica, em sistemas fechados, que se processa no sentido da desorganização.
Os divulgadores da doutrina de Darwin souberam associar a ideia de evolução, patente no aparecimento de espécies mais aperfeiçoadas, com a ideia de progresso a nível histórico e social. O filósofo inglês Herbert Spencer, que é considerado o autor do que hoje se chama “darwinismo social”, escreveu em 1857 um livro com o título de “Do Progresso. Sua Lei e Sua Causa”. Pouco antes, o filósofo francês Auguste Comte tinha introduzido o positivismo, num rompimento epistemológico com a teologia e a metafísica, com o seu “Sistema de Política Positiva”, publicado entre 1851 e 1854, pelo que Spencer pode ser considerado um dos primeiros positivistas.
Todos estes autores contribuíram, de um ou de outro modo, para a fermentação da ideologia republicana, que começou entre nós num pequeno círculo de intelectuais para depois se ir alargando ao longo da segunda metade do século XIX. Como bem diz Catroga:
“A influência do darwinismo punha não só em causa a concepção fixista e criacionista do universo, tal como estava narrada no Génesis, como convidava a soldar o homem à natureza orgânica e biológica, julgando-se que, com isso, se postulavam as condições epistémicas e ônticas necessárias à cientificação da própria realidade social”.
As ideias de Deus e de Igreja estavam intimamente ligadas à instituição monárquica que os republicanos queriam arredar. E, por isso, lhes contrapunham as noções de Mundo, governado por leis estritamente deterministas, e de Pátria, cujo governo era um assunto dos homens sem imanência divina. Um poema de uma republicana pouco conhecida, Angelina Vidal, que foi escritora e professora (além de uma grande defensora dos direitos das mulheres), saído no “Jornal de Abrantes”, escassos meses antes do 5 de Outubro de 1910, e que é citado na obra em referência, ilustra o afastamento de Deus. São assim os seus últimos versos:
“Transformação constante – a causa eterna.
Eis a lei que preside e que governa,
O facto que destrói a escura fé.
É debalde que os crentes se consomem,
Se Deus veio primeiro do que o homem,
Deve, quando muito, um chimpanzé.”
Claro que, mesmo tendo Deus sido apeado em favor do homem, ficava por resolver o problema da conciliação da completa cientificidade do mundo com a desejável liberdade humana. Se republicanos mais positivistas como o médico Miguel Bombarda, que não pôde assistir ao triunfo da Revolução (assassinado a 3 de Outubro, foi sepultado a 6 de Outubro de 1910), menorizaram essa questão, autores houve de matriz republicana, como, por exemplo, o filósofo Sampaio Bruno e o escritor e professor Basílio Teles, que sentiram a necessidade de invocar argumentos espirituais ou metafísicos para compreenderem o pensamento e a acção dos seres humanos. É certo que a República, numa base que se reclamava científica, defendeu com unhas e dentes a laicidade da vida pública. Foi assim que, na Universidade de Coimbra, a Faculdade de Teologia foi substituída pela Faculdade de Letras, enquanto as Faculdades de Matemática e de Filosofia se fundiam para formar a Faculdade de Ciências. Mas as notícias sobre a morte de Deus eram manifestamente exageradas...
- Fernando Catroga, “O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910”, Casa das Letras, 2010.
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5 comentários:
tudo muda, nada se perde.
E o tempo se transforma em que? ele perece?
Todos agradecíamos que o Dr. Fiolhais, em vez de escrever estas platitudes piedosas, contasse às pessoas aquilo que é *sempre* omitido, isto é, como a República molestou (perseguiu é talvez forte demais) os dois cientistas portugueses mais importantes da primeira metade do século XX: o monárquico e católico praticante Francisco Gomes Teixeira (matemática) e o monárquico e católico praticante António Ferreira da Silva (química). Conte, por exemplo, o que este último -- possivelmente o mais destacado químico da história de Portugal -- diz acerca do que os republicanos do seu tempo lhe estão a fazer a ele e à ciência do país... (a BGUC tem tantos livros que deve ter as obras de Ferreira da Silva...)
É um livro muito interessante para quem quiser saber os pressupostos metafísicos do republicanismo. Leitura obrigatória. Desde a influência do positivismo de Comte e Litrè até à justificação da laicidade do estado a partir do que havia de mais actual ao nível da ciência, nomeadamente as teorias de Spencer e Haeckel, Catroga faz uma reflexão interessantíssima sobre a forma sociológica do republicanismo.
EM JEITO DE BALANÇO
Da República as promessas
em malogro terminaram:
assentaram-se as travessas,
mas os carris empenaram.
O nome Deus se aboliu
por ser vocábulo vão,
mas quem por dentro se riu
foi desde logo a nação.
Pensou-se que os cientistas
iam tomar com vantagem
o lugar dos humanistas,
mas não passou de miragem.
Desencantado o país
por tanta falta de senso,
cada vez mais infeliz,
a salvação viu no incenso.
Na sua sorte mofina,
quase vivendo de esmola,
o zé-povinho termina
por nem sequer ter escola!
JCN
Gostamos de pensar de uma forma mais limpinha! Em resumo deveria ser assim. E, dever-se-ia concordar com aspetos honestos...
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