(A propósito de um livro de António Brotas)
"That is the essence of science: ask an impertinent question and you are on the way to a pertinent answer"- J. Bronowski.
De ciência falemos hoje um pouco. Este, em que escrevo, é um jornal de ideias e de cultura – o que não é o mesmo que dizer: só de letras e de artes. A ciência é a outra cultura, não menos importante do que a chamada humanística. Saber Ésquilo, Sófocles ou Virgílio não é mais chic do que manusear Arquimedes, Pitágoras ou Euclides. O físico teórico contemporâneo Paul Davies observava, com fina e justiceira ironia, que “a percepção pública de um intelectual é a de um cavalheiro de óculos e cabelos a esbranquiçarem, que estuda mitologia grega, beberica sherry e impele, com vara preguiçosa e contemplativa, rio abaixo, o barco, por entre os terrenos de algum colégio antigo. E é com esta percepção”, prossegue Davies, “que é dado um status que sugere serem os intelectuais das artes e das letras quem detém o monopólio, outorgado por Deus, das grandes questões da existência".
A esta percepção bem instalada, os cientistas acabaram por reagir, saltando para o palco e fazendo-se ouvir de um público cada vez mais alargado. De resto, Davies avisara com clarividência: "O facto de os cientistas começarem a ser ouvidos, captando não só os espíritos mas também os corações da população – como se evidencia pelo fenomenal êxito dos livros de ciência – está a provocar o que se parece muito com uma gritaria territorial para o lado das letras. A repercussão disto tem assumido a forma de um palavreado histérico nos jornais e periódicos, e uma chuva de livros que denunciam os cientistas como fraudes arrogantes e interesseiras. [...] Durante anos e anos, os cientistas foram ignorados porque não eram ouvidos; agora que começam a ser ouvidos, são violentamente atacados por uma máfia intelectual.”
Os cientistas, portanto, não se resignaram – e até descobriram, na esteira de outros, como Jean Rostand (notável cientista e um dos grandes prosadores da França, ao nível dos maiores pensadores aforistas que nos deu a pátria de Pascal), que sabiam escrever e eram até capazes de entrar em competição com os humanistas, no próprio território destes. Stephen Jay Gould, o autor do celebrado livro O Sorriso do Flamingo foi ao ponto de dizer, com ácida energia: “Existe algo de parecido com uma conspiração entre intelectuais literários que se tomam por donos da paisagem intelectual e das revistas de avaliação crítica, quando, de facto, há um grupo de escritores de não ficção, largamente oriundos das ciências, que possuem todo um exército de ideias fascinantes sobre que as pessoas querem ler”. E, acrescenta, com vingativa ironia, “alguns de nós são escritores decentes e exprimem-se razoavelmente bem.”
De resto, a separação entre as humanidades e as ciências é menos demonstrável do que se pensa e os testemunhos em favor desta minha asserção são muitos e de peso, na pena, de resto, de grandes cientistas (como, por exemplo, Einstein, que “se via” mais como tendo uma concepção “artística” do mundo, do que propriamente científica...). Karl Pearson (1857 – 1936), matemático e um dos fundadores da moderna estatística, autor do livro The Grammar of Science, considerado um clássico, no domínio da filosofia da ciência, diz, por exemplo, e nestes termos belamente incisivos: “Todos os grandes cientistas foram, em certo sentido, grandes artistas; o homem sem imaginação pode coligir factos, mas não consegue fazer grandes descobertas. Se me obrigarem a nomear os ingleses que, no decurso da nossa geração, tiveram a mais vasta imaginação e a exerceram em maior benefício, eu acho que poria, de um lado, os romancistas e poetas, e, do outro, digamos, Michael Faraday e Charles Darwin.”
Depois de coligir os factos brutos e de os classificar, qual o passo seguinte do investigador?, pergunta Pearson. E responde: “É, sem dúvida, o uso da imaginação. A descoberta de alguma asserção, de alguma fórmula breve de que todo o grupo de factos parece fluir é obra, não do mero catalogador, mas do homem dotado de imaginação criadora.” A imaginação capaz de propor as tais perguntas impertinentes, motivadoras de prováveis respostas pertinentes, de que fala o Bronowski da epígrafe deste texto. Esta imaginação é também de natureza estética e não difere substancialmente da do poeta que cria metáforas, por uma aproximação subtil de coisas, à primeira vista, não aproximáveis. Os grandes feitos da imaginação devem-se tanto a homens como Galileu, Newton ou Einstein, como a homens como Dickens, Goethe ou Tolstoi.
Nada disto tem, no entanto, impedido um movimento de reacção fundamentalista contra a ciência, acusando-a de todos os malefícios – os Principia de Newton não passariam de um “manual de violação” e por aí fora. No seu eloquente livro A Cultura Científica e os Seus Inimigos (no original: Einstein, History ande Other Passions), George Colton glosa este fenómeno extremista “que se dirige contra noções tais como as de racionalidade e objectividade” e “se viria a tornar dominante na última terça parte do século XX”, fazendo-nos antever um regresso à “rejeição da razão e da ordem como cárceres do espírito”.
Por cá, pela nossa Lusalândia, também não falta quem execre a Razão e vaticine aos seus cultores o mais sinistro dos futuros – o total oblívio! Il y en a de toutes les couleurs... Vem tudo isto a propósito da publicação, não há muito, de um livro do meu colega de curso – e velho amigo – António Brotas, Professor jubilado de Física do IST, e uma das melhores cabeças pensantes da minha geração. O seu livro – Relatividade e Física Clássica – Continuidade e Ruptura – vem associar-se, com particular felicidade, a este saudável movimento de cientistas que não temem vir falar, em directo, ao público em geral, porque, repetindo as saborosas palavras de Jay Gould, “alguns de nós [cientistas] são escritores decentes e exprimem-se razoavelmente bem.” É o caso de António Brotas, cuja persistente, articulada e eloquente campanha, na Internet, contra a insensatez de certas decisões políticas – ou técnico-políticas – não pouco ajudou a que se evitassem certos desastres.
A secção principal do livro – Conversas sobre Física – é, nas palavras do próprio autor, “um longo desenvolvimento de uma conferência proferida em 2005, no IST.” O ano, como se sabe, do centenário dos grandes papers que deram a glória a Einstein: o annus mirabilis da Física moderna. A “conversa” de Brotas reflecte, com vigor, sobre o nascimento da Relatividade e sobre o seu papel no desenvolvimento da ciência moderna. Uma segunda secção é constituída por “uma série de textos sobre assuntos que podiam ter sido esclarecidos logo no início da relatividade, mas que depois ficaram esquecidos.” E, por fim, uma parte autobiográfica “em que o autor conta como, tendo uma formação de engenheiro mecânico e tendo sido assistente de Física do IST, acabou por se interessar por estes assuntos”. Numa linguagem clara, viva e arejada pela brisa salutar da Razão, António Brotas prossegue o bom combate que, de longe, tem vindo a travar contra a des-razão “romântica” dos que preferem não pensar.
Não prometo que a leitura deste livro seja sempre de tout repos, mas vale a pena. Brotas, eternamente atento, merece a nossa atenção.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
Pôr em confronto querer
artes, letras e ciência
mais não é que impertinência
por cabimento não ter!
JCN
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