sexta-feira, 3 de setembro de 2010
O TEMPO PERDIDO
Outro texto dop meu livro "A Coisa mais preciosa que temos" (Gradiva):
De entre a rica colecção de instrumentos científicos que podem ser vistos no Museu de Física da Universidade de Coimbra, encontram-se apenas dois relógios: trata-se de relógios fabricados sob a supervisão de João Jacinto Magalhães, um notável cientista e técnico português que emigrou para Londres no século XVIII.
Nesse século (o Gabinete de Física pombalino remonta a 1772) pouca atenção era dada entre nós à medição do tempo, um requisito essencial de muitas experiências científicas. Há cerca de 300 anos (comemorou-se em 2000, embora um tanto envergonhadamente, o tricentenário do nascimento do Marquês) já não tínhamos a noção precisa do tempo, o tempo tal como é medido por relógios suficientemente precisos. Se é que algum dia a tivemos... Os únicos dois relógios da colecção vinham importados de Inglaterra, quando este país já na altura fabricava relógios mais compactos e de maior precisão, nomeadamente os primeiros cronómetros marítimos que iam possibilitar uma revolução na navegação através do conhecimento exacto da longitude.
Os navegadores portugueses do tempo dos Descobrimentos sempre tiveram a noção de latitude (o arco acima ou abaixo do equador). Mediram-na por exemplo através da altura da estrela polar vista por astrolábios e quadrantes. Ensina-se como é nalguns manuais de Física do 8.º ano de escolaridade. E um bom livro de instrumentos científicos mostrará decerto astrolábios portugueses e, talvez também, algumas bússolas portuguesas dos nossos tempos de glória marítima. Mas até ao século XVIII os marinheiros, portugueses ou outros, não sabiam determinar a longitude, o arco para oriente ou ocidente do meridiano inglês de Greenwich, o que constituía um obstáculo essencial à possibilidade de localização dos navios no mar alto.
Foi o inglês John Harrison quem, no século XVIII, conseguiu resolver o difícil problema de determinar a longitude, através do avanço instrumental que consistiu no fabrico de sucessivos relógios, cada vez mais aperfeiçoados, que funcionavam bem nas difíceis condições que um barco encontra no mar alto. O eficiente e também lindíssimo cronómetro H5, sucessor dos protótipos que foram sendo denominados de H1 a H4, data de 1770, sendo, portanto, anterior ao estabelecimento do Gabinete de Física de Coimbra. Encontra-se no Museu da Ciência de Londres, na preciosa colecção do rei George III, que é praticamente contemporânea da colecção portuguesa.
Um progresso civilizacional enorme, que permitiu a generalização do transporte e comércio marítimo, deveu-se assim a um processo de desenvolvimento tecnológico. O livro da jornalista norte-americana Dava Sobel “Longitude”, subintitulado sugestivamente “A verdadeira história do génio solitário que resolveu o maior problema científico do seu tempo”, conta, em poucas mas empolgantes páginas, como John Harrison, com uma determinação exemplar que se prolongou por mais de 30 anos, conseguiu arrecadar o não desprezável prémio de 20 000 libras esterlinas instituído pelo parlamento inglês em 1714 para quem conseguisse determinar a longitude. Nenhum relógio de Harrison está, salvo erro ou omissão, num museu português... Mas o livrinho de Sobel encontra-se em português nas livrarias portuguesas. A obra saiu em 1995 na editora Fourth Estate de Londres e foi um enorme “best-seller” tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos. Demorou um pouco mas saiu em 1998 na editora Temas e Debates. Uma simples história de relógios, terão pensado alguns editores nacionais... Nada de demasiado interessante para um país que nunca cultivou com especial interesse a noção do tempo nem considerou com suficiente entusiasmo a necessidade de o medir. Medimos a latitude, por todas as latitudes do mundo. Mas, apesar de termos andado por todas as longitudes do mundo, fomos incapazes de medir a longitude, até que alguém nos vendeu a tecnologia, isto é, um relógio suficientemente bom. Curioso foi o facto de Harrison ter efectuado os testes de um dos seus primeiros modelos numa viagem de Londres a Lisboa. E o seu aparelho funcionava!
Como se faz a medição da longitude? Muito simples, embora não se ensine no 8.º ano de escolaridade. O tempo decorrido desde a partida do porto é medido com rigor no relógio a bordo. Este é o tempo no local de partida. No sítio onde está o barco mede-se a chamada hora solar, que tem a ver com a altura solar. Este é o tempo no local actual da viagem. A diferença entre os dois tempos, um certo número de horas, permite saber a longitude, pois cada hora de diferença corresponde a 15 graus de longitude (quem não tenha medo da aritmética faça o favor de dividir os 360 graus correspondentes a uma circunferência completa por 24 -- as horas que o dia tem -- para obter os 15 graus).
O físico norte-americano de origem inglesa Freeman Dyson já chamou a atenção (no seu excelente livro “Mundos Imaginados”, editado em 1998 pela Gradiva e pela Universidade de Aveiro), para o facto de muitas das grandes revoluções da ciência e da sua inseparável companheira a tecnologia acontecerem não por obra e graça de redentores golpes de imaginação teórica mas sim, pura e simplesmente, pela criação e aperfeiçoamento de instrumentos. Foi o caso do telescópio, do microscópio e, nos dias mais próximos de nós, do computador e do acelerador de partículas. Foi, evidentemente, também o caso do relógio mecânico, o relógio de pêndulo, que é contemporâneo da revolução científica protagonizada por Galileu Galilei, no século XVII, completada por Isaac Newton, Christian Huyghens e outros a seguir (o holandês Huyghens foi o inventor do relógio de pêndulo, que permitiu um espectacular aumento da precisão na medida do tempo). A história dos relógios é parte importante da história da ciência e, por consequência, da história da economia e da civilização. Esta verificação está bem enfatizada no livro de David Landes, “A Riqueza e a Pobreza das Nações” (publicado pela Little Brown nos Estados Unidos em 1998 e com tradução publicada pela Gradiva em 2001). Este livro explica com erudição inaudita como Portugal passou de um dos países mais ricos do mundo para um país do meio da tabela (enfim, mais perto do cimo do que do fundo). Ficámos decadentes logo que perdemos as ciências e as tecnologias, incluindo as dos relógios. Perdemos não só o conhecimento da longitude em primeira mão como também a economia dos mares em favor dos grandes fabricantes dos relógios, os ingleses e os holandeses.
Uma das razões por que grandes países orientais como a China e o Japão foram durante muito tempo menos desenvolvidos que os países ocidentais foi o facto de só terem disposto de relógios rudimentares até terem chegado os navegadores europeus (os primeiros foram portugueses, como é sabido). Sem saber o tempo não há civilização nem economia que funcionem. Foram jesuítas portugueses ou que passaram por Portugal, que, entrando por Macau, introduziram os primeiros relógios mecânicos na China (os chineses escolheram-nos de entre a vária missanga e em breve arranjaram maneira de os multiplicar pela corte do imperador). Segundo reza um relato algo lendário, foi o basco (embora a trabalhar no império português) S. Francisco Xavier que introduziu o primeiro relógio digno desse nome no Japão, numa oferta que fez ao governador de Yamaguchi (conferir “As Máquinas do Tempo”, de Carlo Cipolla, Edições 70, 1992, uma breve história cultural dos relógios). Passou-se isso no século XVI, quando os Descobrimentos estavam no auge, portanto pouco antes de começar o declínio português. Como bons comerciantes, soubemos levar e passar a outros os produtos. Mas, depois dos astrolábios e das bússolas, não fomos construtores de instrumentos. Nunca tivemos relojoeiros que fizessem concorrência aos de Genebra, Londres, Nuremberga ou Paris. Os chineses depressa começaram a fazer relógios, embora para usufruto apenas dos aristocratas. Os japoneses fizeram-nos um pouco mais tarde. Hoje os relógios japoneses rivalizam com os suíços. E o Japão é, como a Suíça, um dos países mais ricos do mundo. Coincidência? Ganharam o tempo perdido com uma rapidez espantosa, uma rapidez que nos devia fazer inveja.
Nós empobrecemos quando perdemos o comboio da inovação tecnológica. Foram os relógios, além do mais, que permitiram a organização do trabalho na revolução industrial dos séculos XVIII e XIX, algo que entre nós não tivemos com a celeridade necessária (tivemos, isso sim, no século XIX o romantismo doente e persistente, a nostalgia de D. Sebastião e do império perdido, tendo entrado no século XX com o episódio trágico-cómico do mapa cor-de-rosa, que bem simboliza a decadência e capitulação do império). Perdemos, se algum dia a tivemos, a ideia particularmente europeia, ocidental, de tempo. Perdemos tempo, muito tempo. Tempo esse que temos de recuperar, agora que somos europeus.
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3 comentários:
A sua prosa deleitou-me. Obrigada!
O tempo...sempre o maldito tempo.
RECUPERAÇÃO
Contra o tempo perdido há que lutar
com quantas forças haja em nossa mente
para o comboio que já vai na frente
ainda o consigamos... apanhar!
Há que fazer das tripas coração,
dar mil e uma voltas ao juízo
correr de sapatilhas, se preciso,
sem para trás olhar na emulação.
Tudo quanto é possível acontece
e seja lá qual for o seu motivo
tem cada povo aquilo que merece.
Façamos, pois, o esforço que devemos
para com todo o ardor competitivo
passarmos para a frente que perdemos!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Gostava que me opiniasse sobre a iniciativa e o conteúdo presente em www.quitsato.org
João Moreira
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