segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Entrevista a Tiago Carneiro


Entrevista de António Piedade ao bioquímico Tiago Carneiro (na foto):

O Doutor Tiago Carneiro é investigador do grupo de Telómeros e Estabilidade Genética do Instituto Gulbenkian de Ciência, e acaba de publicar, como primeiro autor, um artigo muito interessante na revista Nature.

António Piedade – Os telómeros, garantes estruturais da estabilidade terminal e da individualidade cromossómica, têm também um papel funcional na regulação do ciclo celular?

Tiago Carneiro – Claro que sim. Os telómeros além de garantirem que as extremidades dos cromossomas continuam estáveis através do ciclo celular permitem a contagem do número de vezes que uma célula já se dividiu, o que é muito importante para as células de organismos complexos. Na grande maioria das células destes organismos, as pontas dos cromossomas diminuem em cada ciclo celular pois as extremidades dos cromossomas não conseguem ser copiadas pelos mecanismos que normalmente copiam o DNA em duas moléculas iguais a distribuir pelas células filhas. Isto faz com que em cada ciclo celular as pontas diminuam e desta forma a célula perceba o número de vezes que já se dividiu.

AP – E o que é que impede à célula de se dividir infinitamente?

TC - As células não se dividem infinitamente porque a partir de determinada diminuição das pontas as células param o seu ciclo de divisões. Poder-se-ia pensar que seria uma desvantagem o facto de as células não serem capazes de se dividir para sempre (afinal poderíamos ser imortais!) mas a verdade é que esta capacidade de parar o ciclo celular em resposta a uma diminuição das pontas dos cromossomas é uma protecção contra o cancro. Isto porque, quantas mais vezes uma célula se divide mais mais instável fica o seu material genético e essa instabilidade, se continuada, poderá dar origem a uma desregulação do ciclo celular. Nesse caso, as células poderiam começar a dividir-se descontroladamente e dar origem a um cancro. Um cancro começa sempre por este processo: uma divisão desregulada das células!

AP – O que é que a sua descoberta acrescenta ao nosso conhecimento de como a célula se protege de danos e regula a reparação das quebras de continuidade na cadeia de ADN?

TC – Quando uma célula se depara com uma quebra no meio da cadeia do ADN, o que produz duas pontas de ADN livres, pára o seu ciclo celular até que essa quebra seja reparada e as duas pontas sejam unidas. Isto é muito importante porque se a célula não reparar o ADN antes de se dividir as duas células, a que vai dar origem, vão acabar por não ter o mesmo conteúdo de ADN da célula mãe o que cria problemas ao organismo onde a célula se insere. Os telómeros por serem pontas também poderiam ser reconhecidos pelas células como quebras na cadeia de ADN. A função da estrutura telomérica é evitar que as pontas dos cromossomas sejam reconhecidas como quebras na cadeia do ADN o que seria perigosíssimo pois levaria a fusões entre cromossomas e a uma instabilidade genética que seria incomportável para a célula. O que nós descobrimos é que as pontas dos cromossomas activam as vias de reparação de quebras no ADN mas que não levam essa via até ao fim, que a cortam a meio para que as pontas dos cromossomas não sejam unidas. Com o nosso trabalho propomos também que a forma como a célula se “apercebe” das zonas do ADN que têm de ser contínuas, e portanto unidas quando quebradas, das pontas que não podem ser unidas é através de uma proteína que se liga por todo o ADN, que já era conhecida, mas que nós descobrimos que nos telómeros essa proteína tem uma forma diferente em relação ao resto de todo o genoma que tem de ser contínuo.

AP – Há alguma interacção, “diálogo”, entre a reparação de uma quebra no interior do cromossoma e a estabilidade telomérica?

TC – Essa é a parte engraçada e fascinante dos telómeros. Dado que ligar os telómeros uns aos outros seria catastrófico para as células seria de esperar que eles excluíssem de perto de si as proteínas envolvidas em reparar quebras e ligar pontas do ADN. A verdade é que não só não o fazem como precisam dessas proteínas para manter a sua estabilidade. Como já diz o ditado popular “Mantém os teus amigos perto e os teus inimigos ainda mais perto”.

AP – Nas suas experiências utilizou leveduras como modelo celular. Qual é o grau de transposição dos resultados obtidos com leveduras para a realidade das células animais?

TC – Neste caso específico, o complexo de proteínas que protege os telómeros da levedura de fissão é muito semelhante ao complexo que tem a mesma função nas células humanas. Uma grande diferença é que as leveduras conseguem compensar a diminuição do tamanho das pontas e nos humanos só uma pequena população de células o consegue fazer (as células estaminais e germinais). No entanto os mecanismos que evitam a fusão de telómeros entre si são muito parecidos. Como em qualquer outra área, as extrapolações são feitas com cuidado. Isto é, se em leveduras se sabe que determinado processo acontece de uma certa forma e que os intervenientes nesse processo são semelhantes aos intervenientes do mesmo processo em células humanas, então pode-se supor que o processo acontecerá de forma semelhante. Claro que depois isto tem de ser demonstrado mas é um ponto de partida que muitas vezes é essencial porque assim já se podem desenhar experiências muito mais focadas.

AP – O conhecimento agora produzido identifica novos alvos para controlo exógeno do ciclo e viabilidade celular?

TC – Como consequência do trabalho que nós realizamos sabemos um pouco mais sobre a forma como as pontas dos cromossomas se comportam. O conhecimento que nós obtivemos com o nosso trabalho é um ponto de partida. Agora que sabemos que existe uma marca diferencial entre as regiões que devem ser contínuas e não contínuas no ADN temos de perceber como é que a deposição dessa marca no ADN é regulada e como é que pode ser alterada. Claramente percebemos que se ao “brincarmos” e alterarmos de forma exógena essa marca podemos alterar a forma como a célula responde a quebras no seu ADN ou às pontas dos cromossomas e por consequência alterar a velocidade do ciclo celular.

AP - Qual é, na sua opinião, a potencial aplicação biotecnológica e no desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas para doenças como o cancro, que poderão estar a jusante deste seu trabalho?

TC - Perceber como é que os telómeros protegem os cromossomas de se fundirem é essencial porque essas fusões cromossómicas darão a instabilidade genómica que pode levar ao aparecimento do cancro. Assim sendo, perceber os mecanismos moleculares que evitam estas fusões é essencial. No fundo o que se espera é compreender a biologia dos telómeros para que quando a sua função está comprometida se possa actuar para a repor e evitar a instabilidade genómica e que poderá causar o cancro. Na mesma linha de pensamento esperamos compreender melhor o que se passa durante a instabilidade genómica para que se possa actuar também nesta fase e ter como alvo a destruição das células instáveis. Por fim, espera-se também conseguir controlar a divisão das células cancerígenas para poder impedir a sua proliferação. Para isto é essencial perceber a forma como as pontas dos cromossomas conferem estabilidade ao nosso genoma.

2 comentários:

Ana disse...

Obrigada! Já tenho um bom tema a abordar e divulgar junto dos meus alunos. :))

José Meireles Graça disse...

Ao ler o título, julguei que fosse uma entrevista àquele moço das Novas Oportunidades que entrou na Universidade sem ter concluído o Liceu, e com a nota mais alta do País. Afinal, era outro Tiago, e com um discurso sério sobre assuntos científicos. Ora sebo, a gente quer é Carnaval - para se distrair.

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