segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O MAGNETISMO DA TERRA


Texto que entrou no meu livro "Física Divertida":

Gabriel Garcia Marquez conta em "Cem anos de solidão" a chegada dos ciganos terra de Macondo. Entre os vários truques de mágica que os ciganos mostram, encontram-se o gelo e o íman. Hoje sabe-se que o fenómeno da congelação da água e da passagem de um metal a magnete são exemplos de transições de fase, da passagem de um estado desordenado a um estado ordenado da matéria. Enquanto tal facto não foi conhecido, esses materiais fizeram os espantos tanto das feiras da Idade Média europeia como da fantástica América. Escreve Marquez:

"Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o íman. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia. Foi de casa em casa arrastando dois ligotes metálicos e todo a gente se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam desencravar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades".

Os gelos e os ímanes são tão antigos como o planeta Terra. Os gelos cobrem, desde há muito, as regiões polares da Terra, enquanto os ímanes se encontram em minerais como os que foram pela primeira vez recolhidos na Ásia Menor - a magnetite.

A palavra íman significa "pedra que ama". Em francês, íman diz-se mesmo "aimant", o que traduzido dá "amante". Trata-se, sem dúvida, de um nome adequado: um íman atrai pequenos pedaços de metal. A Terra é ela própria um gigantesco íman, uma descomunal "pedra que ama". O nosso planeta tem um pólo norte magnético e um pólo sul magnético, que se situam respectivamente perto dos pólos sul e norte geográficos, na Antárctida e na Gronelândia. Não é gralha: o pólo sul magnético da Terra encontra-se perto do pólo norte e dos esquimós e o pólo norte magnético acha-se perto do pólo sul e dos pinguins. Um pequeno íman tem também dois pólos que se chamam norte e sul, numa nomenclatura análoga dos pólos da Terra. Deve-se, contudo, notar que a Terra nem sempre teve o seu pólo norte magnético perto do sul e o pólo sul magnético perto do norte. O pólo sul magnético já esteve várias vezes no sul, estando então a nomenclatura geográfica e magnética de acordo. Este um dos grandes mistérios da história da Terra: porque é que o norte e o sul magnéticos, de vez em quando (o "de vez em quando" aqui refere-se a tempos de milhões de anos), trocam de posição entre si? Essas mudanças, parece que irregulares, da polaridade do campo magnético da Terra foram verificadas no registo geológico, no fundo dos oceanos e noutros locais da crusta terrestre. Só serão, enfim, compreendidas quando se souber, em pormenor, a origem do magnetismo terrestre.

Se se colocar uma pequena agulha magnética a flutuar num líquido, tem-se uma bússola. A bússola foi inventada pelos chineses no século XII e usada mais tarde pelos navegadores europeus, incluindo os portugueses. Esses navegadores usaram uma agulha magnética para se orientarem na superfície do gigantesco íman que é a Terra toda. Como o pólo norte da agulha aponta obedientemente para o pólo norte da Terra (para a direcção da estrela polar), pode saber-se para onde vai o barco, mesmo no meio do nevoeiro ou da tempestade. O que teria sido, porém, se os pólos norte e sul da Terra se tivessem subitamente trocado enquanto as descobertas se faziam? Os navegantes ter-se-iam decerto perdido e as descobertas teriam ficado por fazer!

Uma bússola ainda hoje um objecto de mistério e encantamento: pode-se brincar com ela das mais variadas maneiras. Com uma segunda bússola, pode-se, por exemplo, r a primeira doida e fazer com que não aponte para onde deve. Em condições normais, o pólo norte da agulha aponta para o pólo sul magnético da Terra porque pólos do mesmo nome se atraem e pólos de nome contrário se repelem. Se um pólo de uma outra agulha se sobrepuser ao efeito do pólo terrestre, a primeira fica portanto desnorteada: não sabe para que norte se há-de virar. Há outras coisas interessantes que se podem fazer com uma agulha magnética. Se uma criança, em momento de mau humor, quebrar o vidro da bússola e partir a agulha, criam-se imediatamente, dir-se-ia que por milagre, dois novos pólos norte e sul na zona partida. Faz-se o milagre da multiplicação dos pólos. Em vez de uma, fica-se então com duas bússolas, embora mais pequenas. A parte reproduz o todo e faz as vezes do todo. Einstein confessou um dia que um dos factos que mais o marcaram, ainda ele era criança, e que contribuíram para a escolha da sua carreira foi a brincadeira com uma bússola. A bússola indicou o rumo da sua vida.

Existe pois um fenómeno chamado magnetismo que tão antigo como a Terra e cuja utilidade é tão antiga quanto o engenho dos homens. Repare-se que desde cedo se ficou a saber que a Terra atrai as pedras, assim como desde cedo se ficou a saber que a Terra faz girar um magnete. O campo gravítico e o campo magnético do planeta que habitamos são suficientemente fortes para que tenha sido possível, relativamente cedo, a descoberta de importantes leis da física como a da gravidade e do magnetismo. Se vivêssemos noutro planeta, talvez a ordem da descoberta das leis da física tivesse sido outra. Mas vivemos neste.

Logo no primeiro ano do século XVII, um sábio inglês da corte da rainha Isabel, William Gilbert, reuniu num livro, intitulado "De Magnete", tudo o que se sabia na altura sobre a acção dos magnetes. Foi Gilbert quem considerou um pequeno magnete esférico, a que chamou "terrela" e disse que esse modelo era a cópia do grande magnete que era a Terra.

Gilbert cita várias vezes na sua obra pessoas e lugares portugueses, o que mostra que os portugueses tiveram um lugar decisivo para o estudo do magnetismo terrestre. Sobre a causa da agulha magnética apontar para o norte refere o "colégio de Coimbra". Cita Garcia da Orta, segundo o qual a pedra magnética faz bem saúde ("tomado em pequenas quantidades preserva a juventude"). Critica Pedro Nunes, a quem acusa de "ter pouco conhecimento ou experiência de coisas magnéticas" (Pedro Nunes inventou, no século XVI, um "instrumento de sombra", destinado a corrigir as leituras da bússola, mas ultimamente os historiadores de ciência têm referido a pouca ligação de Nunes com a prática da navegação). Fala de um navegador português "Roderigues de Lazos", a propósito da declinação, diferença entre a direcção do norte geográfico e norte magnético. Descreve a "bússola portuguesa" e discute as observações no Oceano Índico (Vasco da Gama deu o nome de Cabo das Agulhas a um sítio onde as agulhas magnéticas ficavam desnorteadas). Gilbert esquece-se, porém, de fazer justiça às cuidadosas "Observações Magnéticas" do português João de Castro, realizadas e publicadas a meio do século XVI.

Mas qual é a origem do campo magnético terrestre? Será que existe um gigantesco íman dentro da Terra?

A resposta moderna mas ela só foi permitida depois de se terem unido o magnetismo e a electricidade. Durante algum tempo o magnetismo e a electricidade, cujo nome vem da palavra grega "electron" (âmbar, uma resina de uma árvore fóssil que atraía pequenos objectos depois de esfregada), ignoraram-se mutuamente, apesar de tanto o magnete como o âmbar virem descritos no livro de Gilbert. Foi só no início do século XIX que o dinamarquês Hans-Christian Oersted descobriu uma relação entre a electricidade e o magnetismo. Foi o começo do electromagnetismo.

Oersted reparou que uma agulha magnética ficava "doida", isto é, desorientada, quando colocada perto de um circuito eléctrico, à semelhança do que acontecia quando estava perto de uma outra agulha. A corrente eléctrica produzia um efeito semelhante ao de um íman. Essa relação foi de início estabelecida apenas num sentido: a corrente eléctrica num fio produz um efeito sobre uma bússola, procurando a agulha magnética orientar-se perpendicularmente ao fio. Se o fio onde passava a corrente eléctrica estava orientado segundo a direcção norte-sul, a bússola em vez de apontar para norte, como devia, apontava, por exemplo, para ocidente. Ficava desnorteada.

No espaço volta do fio eléctrico, havia assim uma zona de influência, onde as agulhas magnéticas se mexiam. Essa zona é hoje conhecida por campo magnético. Em linguagem moderna, diz-se que o movimento dos electrões provoca um campo magnético. Esse campo magnético pode ser visualizado deitando limalha de ferro nas proximidades. A limalha obedece às ordens do campo, como que guiada por uma mão invisível.

O francês André-Marie Ampère estudou a forma desse campo. Concluiu que um circuito em forma de circunferência cria um campo que parecido com aquele que criado por um magnete em forma de disco. Assim, uma bobina, que um conjunto de espiras circulares, cria um campo que é semelhante ao de um cilindro magnético.

A Terra tem um campo magnético à volta, que se estende até longe em redor do planeta. Se um circuito eléctrico equivalente a um íman, talvez também se possa encontrar a! a origem do magnetismo terrestre. No século XVIII houve físicos que subiram em balão, com uma bússola, para descobrir que o campo magnético existia lá no alto. No século XX, quando se subiu mais acima, com os primeiros satélites artificiais, descobriu-se a forma completa do campo magnético terrestre, nomeadamente as chamadas cinturas de van Allen, que são, entre outras coisas, responsáveis pelas espectaculares auroras boreais das frias paisagens do Pólo Norte.

Talvez então, no interior da Terra, em vez de um grande pedaço de magnetite, exista uma circulação de cargas eléctricas que tenha o mesmo efeito que um íman...

De facto, hoje sabe-se que o magnetismo terrestre provém de correntes circulares numa camada líquida condutora, no interior da Terra. O interior da Lua é todo sólido, pelo que não há campo magnético lunar. Por seu lado, o interior de Júpiter é líquido, pelo que existe aí um forte campo magnético, com o pólo norte para cima, ao contrário da Terra (as sondas Voyager I e II permitiram fazer medidas desse campo; a sonda Galileo lançada em 1989 e chegada a Júpiter em 1995 vai completar os registos magnéticos de que já dispomos sobre Júpiter). Mas ainda não se sabe a causa das alterações dessas correntes que provocam as inesperadas, caóticas, inversões de polaridade.

O magnetismo conserva ainda alguns mistérios. O íman que é a Terra causa ainda aos terrestres (incluindo os físicos da terra, os geofísicos) tanta admiração como os ímanes do cigano Melquíades aos habitantes da aldeia de Macondo.

9 comentários:

Anónimo disse...

MAGNETISMO

Assim como na bússola é constante
a orientação da agulha para o norte,
assim també, amor, da mesma sorte
de ti não me desvio um só intante.

Magnetizada tens minha atenção
que só te vejo a ti na minha frente,
polarizada estando a minha mente
sem oscilar na tua direcção.

Quando a primeira vez te vi surgir
entre as constelações do firmamento
não mais deixaste, amor, de me atrair.

Como haveria, pois, meu pensamento
de se apartar de ti, não te seguir
que fosse por um único momento!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Professor,

Gostava que comentasse o conteúdo de: www.quitsato.org

João moreira

Anónimo disse...

ABRIR O CORAÇÃO

Confrange-me deveras constatar,
não sei por que motivos ou razão,
que é seco como a palha ante o luar
dos homens de ciência o coração.

Embora existam casos de excepção,
o que é mais frequente, mais vulgar,
é não prestar-se a mínima atenção
a tudo o que não seja investigar.

O sábio é quem mais perde, indiferente
à poesia lírica e não só
que para Deus nos faz erguer a mente.

Dos velhos alfarrábios poeirentos
convém por vezes sacudir o pó
e o canto ouvir dos poetas ternurentos!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Está frase é dificil ao leigo de entender "Por seu lado, o interior de Júpiter é líquido, pelo que existe aí um forte campo magnético, com o pólo norte para cima, ao contrário da Terra"
Eu até comprendo que para uma bússola apontar para o norte na terra é porque o polo Sul do iman terreste se encontra no Polo Norte (geografico ou mais correctamente magnetico), mas creio que para o leigo a passagem precisava de outra explicação.
JCSilva

Sérgio O. Marques disse...

Mesmo na idade média se faziam experiências com ímanes. No século XIII alguém descreveu:

A magnetite tem uma propriedade semelhante aos céus. Aí sobressaem dois pontos relativamente a todos os outros sobre os quais revolvem as esferas celestes. Tais pontos recebem a designação de pólos norte e sul. Também na magnetite sobressaem dois pontos como é possível observar, seguindo um conjunto simples de preceitos. Recorrendo aos instrumentos usados para arredondar cristais, talha-se, numa pedra de magnetite, uma forma globular, a qual é polida. Coloca-se uma agulha sobre a pedra numa qualquer posição e deixa-se girar livremente. Traça-se uma linha ao longo da direcção da agulha. Repete-se o processo em outro ponto da pedra, resultando, do mesmo, uma outra linha. O processo é repetido tantas vezes quantas aprouver. Todas as linhas geradas intersectam-se em dois pontos do mesmo modo que os meridianos azimutais se encontram nos pólos. Para determinar qual dos pólos da pedra é o norte ou o sul, coloca-se a pedra num prato de madeira, flutuando num recipiente com água. Se deixarmos o prato girar livremente, ao fim de algum tempo, o pólo norte da pedra aponta no sentido do norte celeste, acontecendo o mesmo ao pólo sul.

Anónimo disse...

Consigo a ciência é realmente interessante mesmo para quem não é da área

Unknown disse...

Olá,

Uma pequena correcção de pormenor, mas que sempre dá confusão.

Por mais estranho que pareça o "Polo Norte Magnético" é o pólo sul do campo magnético da Terra e se situa próximo (actualmente) do pólo norte geográfico - ao contrário do que diz o texto.

O mesmo se aplica ao sul.

Anónimo disse...

Alguém me sabe dizer a origem da palavra íman? No dicionário etimológico que consultei (José Pedro Machado) não vem.
HR

Unknown disse...

Boa noite Carlos,

Fazendo uma busca sobre o assunto em diversos blogs sobre o tema, encontramos o seu e utilizamos para compor o artigo em nosso blog. Saiba que consideramos o texto presente aqui o melhor de todos os encontrados. Se sentir interesse dê uma olhada no nosso post e comente o que achou.
O link é https://culturamente.wordpress.com/2016/08/15/magnetismo-pela-internet/

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