sábado, 4 de setembro de 2010

Em defesa de Carlos Queiroz

"Tal futebol, tal País" (Luís Filipe Menezes).

Pelos inúmeros posts que aqui publiquei sobre o actual Seleccionador Nacional de Futebol, Carlos Queiroz, e, para mais, numa altura que este caso tem mobilizado os media desportivos (e não só), merecendo a atenção apaixonada do “mundo do futebol”, transcrevo um artigo publicado hoje no "Diário de Notícias", da autoria de Luís Filipe Menezes:

“Em dia de leitura da sentença do processo Casa Pia, vou fugir à torrente informativa que vai surgir à volta deste tema e vou falar de futebol. Mais precisamente do processo Carlos Queiroz.

Porque gosto de futebol, porque sou fã incondicional da selecção nacional, porque compreendo que o futebol/desporto/espectáculo é hoje uma actividade económica importante de dimensão planetária.

Vou ainda abordar este assunto porque ele reflecte o essencial do quotidiano da nossa vida colectiva. Como na justiça, na economia, no funcionamento do Estado, no caso Carlos Queiroz coexistem, em simultâneo, a má gestão da coisa pública, as perseguições político-partidárias, os compadrios obscuros, a incompetência, o desrespeito pela dignidade de cada um, a trapalhada colectiva institucionalizada. Tal futebol, tal País.

Comecemos pelo princípio.

Carlos Queiroz é um dos pensadores/organizadores mais bem preparados e considerados no mundo do futebol mundial. É verdade que coleccionou alguns insucessos como treinador principal, mas o trabalho de base conseguido com as selecções juniores na década de 90 e o trabalho de retaguarda no Manchester United falam por si. (É preciso também recordar que foi treinador principal do mais importante e complexo clube do século XX, o Real Madrid.) Assim, a sua contratação para substituir Scolari pareceu-me natural e defensável.

Concluído o ciclo desportivo do Mundial 2010 e considerando os resultados da selecção, não haveria razão suficiente para uma avaliação irremediavelmente negativa. A qualificação para a África do Sul foi sofrida, mas nada que não tenha acontecido várias vezes, incluindo com o próprio Scolari. A prestação no torneio foi mediana, mas chegámos aos oitavos-de-final e caímos perante o campeão do mundo. Para além de que Queiroz tomou conta da selecção numa mudança de ciclo, em que estavam a terminar a carreira os talentos da última década. Nada que justificasse, pois, um despedimento coercivo.

É verdade que, com ou sem razão, com mais ou menos verdade, vieram a público vários factos controversos da caminhada dos últimos dois anos: as quezílias públicas com alguns agentes desportivos, a separação entre jogadores e outros elementos da equipa nas refeições quotidianas, os "casos" Nani e Deco, o excesso de protagonismo e confiança de Cristiano Ronaldo nas relações com a equipa técnica - não é aconselhável um jogador tratar publicamente por tu cá tu lá o treinador principal -, as opções técnicas nos jogos com o Brasil e com a Espanha.

Todavia, todos eles em conjunto, o máximo a que poderiam dar origem seria a uma conversa ponderada com o seleccionador sobre a bondade da sua continuidade à frente do próximo projecto. Com elevação e bom senso. Mas não foi nada disso que aconteceu. Ao contrário, sucedeu-se um conjunto de peripécias que envergonham o futebol português e o País.

A primeira delas foi o inquérito a Carlos Queiroz ser aparentemente desencadeado por uma declaração anunciadora do senhor secretário de Estado do Desporto. A partir daí, com ou sem razão, ficou o anátema de que o ataque a Carlos Queiroz tem motivações político-partidárias.

Depois, conhecidos os factos, ainda mais se avolumaram as suspeitas. Queiroz teria sido deselegante quando manifestou o seu descontentamento em relação ao horário excessivamente matutino escolhido para realizar um controlo antidoping. Teria insultado Luís Horta, responsável máximo da ADOP, e com isso teria perturbado a boa recolha de urina para análise! Ridículo!!! Por pior que fosse o insulto - que apesar de condenável não terá sido tão violento quanto isso -, não é inteligível que as flores de estufa que foram à Covilhã ficassem tão atarantadas que pudessem confundir urina com sumo de laranja!!! Esta atitude só reforça a ideia de que alguém queria sanear o seleccionador a qualquer preço.

Finalmente, após um processo em que os órgãos de justiça da federação minimizaram a culpa, mais uma vez após um comentário do responsável governativo pelo desporto, o tal organismo justiceiro ligado ao controle antidopagem vem multiplicar a pena por seis e assim dar mais uma vez a impressão de que a decisão já estava tomada noutras instâncias (que raio de País que vive com estes entorses! Aplicação de penas por entidades não jurisdicionais! Penas aplicadas sem audição dos alegados culpados! Não recorríveis! Enfim…). Procedimento fatalmente suspeito.

Mas o principal é que tudo isto seria evitável. Com outras opções de política contratual com outras pessoas, com outros organismos e outro funcionamento das instituições.

Um seleccionador tão bem pago devia ser contratado ciclo a ciclo. Ciclo do Mundial, avaliação, ciclo do Europeu, avaliação. Uma equipa federativa devia ser periodicamente renovada e a limitação de mandatos não devia ser um "privilégio" exclusivo dos políticos. Há responsáveis federativos que estiveram em Saltillo?!

O controlo antidoping não é um processo de insensato policiamento e os seus responsáveis não podem movimentar-se com a arrogância com que o fazem (um controlo tanto pode ser feito às 07.00, como às 10.00 ou como no final de um treino, para já não falar das barragens a camionetas de atletas e outras que têm acontecido por aí). Finalmente, aconteça o que acontecer, prescindir de Queiroz como seleccionador pode ser discutível, mas prescindir de Queiroz como organizador e promotor do futebol é um desperdício.

Enxovalhar o seu presente e o seu passado é um acto de ingratidão e repugnante falta de vergonha e falta de auto-estima colectiva. Quem dizima assim os seus melhores diminui-se como povo".

Luís Filipe Meneses

4 comentários:

Unknown disse...

Caro Luís

Expuseste aqui todas as verdades que contornam este caso. Para além disso, a retrospectiva sobre a sua carreira está perfeita, bem como todos os adjectivos que utilizaste. Concordo que ele a nível teórico seja dos melhores do mundo. No entanto está mais do que provado que ele não nasceu para ser treinador principal. As opções tácticas nos jogos do mundial foram um pouco infelizes. O melhor comentador de futebol que existe, Luís Freitas Lobo, também partilha desta opinião. O que aconteceu também dentro do balneário demonstra que ele não tem estofo para lidar com os jogadores enquanto humanos.

De uma coisa não tenho dúvidas: o melhor lugar para ele é trabalhar com jovens! Esses sim dão-lhe a devida atenção e evoluem bastante com ele. Com homens feitos que já percebem um pouco mais das coisas e que já pensam pela sua própria cabeça ele não tem a mínima hipótese. Ainda por cima agora depois de estar a fazer estas fitas todas tipo menino mimado que não quer sair, mesmo sabendo que ninguém o quer.

Não entendo.

joão boaventura disse...

O que se passa no caso Queiroz é um processo kafkiano que consiste em substituir a presunção de inocência pela de culpa, ou seja, procurar a todo o transe a culpa com a finalidade de fechar todas as vias de reintegração e permitir a exclusão do seleccionador. Se se quiser saber, quais os passos que Queiroz está a dar, a leitura das páginas 227, 228 e 229 d’ “O Processo” de Kafka (a minha edição é da Colecção Mil Folhas, Público, 2004, Lisboa) é elucidativa:

“Diante da Lei há um porteiro. Um homem do campo chega junto deste porteiro e pede para entrar. Mas o porteiro declara que por agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem reflecte, depois pergunta se então poderá entrar mais tarde. «É possível», diz o porteiro,«Mas não agora». Como a porta da Lei estava como sempre aberta, o porteiro afasta-se e o homem debruça-se para olhar para o interior, através da porta. Ao ver isto, o porteiro começa a rir e diz: «Se te atrai assim tanto, experimenta entrar apesar da minha proibição. Mas cuidado: eu sou poderoso. E não passo do último de todos os porteiros. Porque de sala para sala, há porteiros, cada um mais poderoso que o anterior.”

Para não alongar a transcrição, apresento a parte final na p. 229:

“O porteiro é obrigado a inclinar-se para ele, porque as diferenças de altura modificaram-se muito em detrimento do velho: «Que queres tu saber ainda?», pergunta o porteiro, «tu és insaciável». «Toda a gente se esforça por alcançar a lei», diz o homem, «como é que ninguém, excepto eu, solicitou a entrada todos estes anos?». O porteiro apercebe-se que o fim do homem está próximo, e como é quase surdo, berra-lhe ao ouvido para se fazer ouvir: «Ninguém mais podia obter a autorização de entrar, porque esta entrada se destinava só a ti. Agora, vou-me embora e fecho-a».” (fim da transcrição)

Kafka, como homem do Direito, limita-se a retratar, n' “O Processo” o absurdo, pelo qual o cidadão é obrigado a submeter-se a uma regra viciada do jogo jurídico cuja dinâmica pende para o lado do mais forte.

(continua)

joão boaventura disse...

(conclusão)

O que se passa com o Processo Queiroz passou-se com os Processos do actual Primeiro Ministro, ao qual foi sempre negada a Lei, perdão, o ser ouvido, o que levou o actual Bastonário do Direito a declarar, para quem o quisesse ler e ouvir:

- Estamos a assistir a uma vergonhosa actuação da justiça que parece mais preocupada em culpabilizar o Primeiro Ministro, em vez de partir da presunção de inocência.

Este é o retrato do Processo Queiroz, em boa companhia do Primeiro Ministro, porque ao primeiro foi negada qualquer audição pela autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), e ao segundo, ou deixaram prescrever o prazo, ou deixaram esgotar o tempo e a paciência para o ouvir.

Para Cândida Almeida não valia a pena ouvir o Primeiro Ministro porque não vinha aduzir matéria nova; e para o Instituto do Desporto de Portugal (IDP), não valia a pena ouvir Queiroz porque a audição feita pelo Conselho Disciplinar da FPF era suficiente, e porque, ouvi-lo, também não vinha aduzir matéria nova.

O Kafkianismo do processo sinuoso reside neste facto que o tempo não apaga. A ADop foi, no dia 16.05.2010, à Covilhã fazer o controlo antidoping à selecção, que foi perturbado pelos impropérios do seleccionador, o que não impediu a recolha, e o Governo silenciou, possivelmente para apagar o incidente se a selecção chegasse às meias finais ou às finais. Como os desejos não se concretizaram, passados dois meses e meio, é que o secretário de Estado revela que se passaram “factos muito graves”, no controlo antidoping. A paciência de Job não tem melhor representante.

Portugal não chegou aos quartos de final mas no cômputo geral ficou em 11.º lugar (Inglaterra 13.º - Dinamarca 24.º - Grécia 25.º - Itália 26.º - França 29.º). Os três primeiros são os únicos europeus (Esp., Hol, Ale.), 5 da América Latina, 1 africano (gana) e um asiático (Japão). E a representação portuguesa foi vergonhosa ?

Isto para dizer que há muitas maneiras limpas para dispensar um seleccionador. A escolhida pelo governo não tem classificação.

Anónimo disse...

O meu comentário é antes um testemunho de alguém que foi filha de jogador não profissional de futebol e basquetebol. Conheceu aos 14 anos em Nampula Carlos Queiroz e sua família, enquanto lá estudava. Carlos era uma pessoa cordial, afectuosa, bastante sociável, muito trabalhador, sempre ligado ao desporto, todos os dias treinava muitas horas, responsável e justo sempre disponínel para ajudar um amigo e para se bater por ele. Foi e será sempre das pessoas que mais me marcou durante a vida. Acho que ele merece pela maneira de ser e curricullum internacional ser tratado apenas com as armas da justica. Julgo que tudo o resto só contribui para rebaixar o nosso país: Portugal. Já nos vêem com tão maus olhos no exterior. Eu faço aqui um apelo às pessoas de boa vontade e a todos que gostam de futebol para sermos serenos, aos médicos também é suposto pedir serenidade, para bem do nosso desporto. Não se trata de perdão. Diria antes apenas bom senso.

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