quinta-feira, 9 de setembro de 2010

CIÊNCIA E TEATRO EM BRECHT E ARISTÓFANES 2


Continuação do post anterior:

É muito interessante que a retórica ao servoço da discussão do papel de Deus no mundo se encontre no teatro grego, muitos séculos antes de Brecht. Para os gregos tratava-se obviamente não de discutir o papel de Deus, mas dos deuses. Na comédia “As Nuvens” de Aristófanes (447 a.C.-385 a.C, sendo as duas datas aproximadas), representada pela primeira vez no ano de 423 a.C., no Teatro de Dionísio, na Acrópole, em Atenas, surgem em cena algumas nuvens, portanto fenómenos atmosféricos, em substituição dos deuses tradicionais. Apesar de se tratar de uma comédia e não de uma tragédia, como a peça de Brecht, é notório o paralelismo entre os dois textos. Brecht era aliás um grande conhecedor do teatro grego.

O livro de Aristófanes “Comédias I” [9], publicado pela Imprensa Nacional, contém uma excelente tradução portuguesa da peça que aqui nos interessa. O volume tem uma introdução geral de Maria de Fátima Silva, professora de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra, que foi também responsável pela introdução, tradução e notas de duas outras das peças do livro, e é de resto autora de outras obras sobre Aristófanes [10]. A terceira e última peça incluída é precisamente “As Nuvens”. Tem introdução, tradução e notas de Custódio Magueijo, professor de Grego da Universidade de Lisboa que já antes tinha sido autor de uma tradução da mesma peça publicada pela Editorial Inquérito em 1984 [11] (nas notas encontram-se notícias sobre a representação da peça em Portugal).

A acção de “As Nuvens” é bastante simples. Um abastado proprietário rural, Estrepsíades, procura educar o seu filho, Fidípedes, que era o que hoje poderíamos chamar um playboy, delapidando os proventos do pai em cavalos de luxo e carros de corrida. O velho pretende que o filho aprenda com Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), o “sofista” (os sofistas, entre os quais Protágoras e Górgias, eram mestres que viajavam em busca de discípulos, que lhes pagavam bem; de facto, só o Sócrates dos primeiros tempos é que poderá merecer essa designação), e, perante a resistência do filho, vai ele próprio ver como é essa escola, intitulada Frontistério ou Pensatório, e que constitui uma espécie de faculdade de todas as áreas. Estrepsíades não tem sucesso no Pensatório, mas o filho acaba por lá entrar. Sócrates apresenta então ao aluno duas personagens, o Raciocínio Justo e o Raciocínio Injusto, que retratam afinal os métodos pedagógicos antigo e moderno. Da luta entre os dois sai vencedor o Raciocínio Injusto (o que é afinal uma maneira de o conservador Aristófanes ridicularizar as novas pedagogias). O filho não só acaba por bater no pai como justifica essa acção usando tudo o que aprendeu com o Raciocínio Injusto. O pai, desesperado, acaba no final por deitar fogo ao Pensatório. A peça é bastante divertida, mas é injusta para com Sócrates, que não é particularmente bem retratado. Ele não passa, na pena de Aristófanes, de um mestre de retórica, que se faz pagar pelos seus serviços e que, mais do que defender a causa da ciência, se põe ao serviço de qualquer causa. Este Sócrates não é lá muito amigo da verdade...

A peça, que hoje é um clássico entre os clássicos de Aristófanes, não conheceu grande sucesso quando foi estreada. Ficou até em terceiro lugar nas Grandes Dionísiacas, a seguir a duas obras de autores menores cujos textos não chegaram até nós. O autor reescreveu depois a peça – o texto que hoje conhecemos resultou desse processo – não se inibindo, no meio do texto (a chamada parábase), de censurar os espectadores por causa da má recepção da peça...

Aristófanes goza bastante com os astrónomos. Por exemplo, encontramos este saboroso diálogo entre Estrepsíades e um discípulo da escola:

Discípulo - Uma noite, estava ele a estudar a órbita da Lua e as suas revoluções, assim, de nariz espetado no ar e de boca aberta, quando um lagarto pintado cagou lá de cima do telhado.
Estrepsíades: Que gozo, um lagarto pintado cagar em cima destes.”


E, mais adiante:

“Estrepsíades - E porque diabo está o olho do cu virado para o céu?

Discípulo: Bem... esse... estuda Astronomia por sua conta.”

Quando Estrepsíades chega à fala com o próprio Sócrates, este repreendo-o quando o ouve jurar pelos deuses:

“Sócrates - Juras pelos deuses?!... Quais deuses?... Para já, deuses é moeda que não usamos cá na casa.

Estrepsíades - Então por quem é que vocês juram? Será porventura pelo pilim, como em Bizâncio? Sócrates, desviando a conversa - Queres conhecer as coisas divinas, claramente, de ciência certa?
Estrepsíades- ... Se isso é possível...

Sócrates - Queres conviver e conversar com as Nuvens, as nossas divindades?

Estrepsíades – Claro que quero.”


O paralelismo com a “ausência de Deus” brechtiana é aqui claro, mas surge ainda mais claro num diálogo entre Estrepsíades e Sócrates, que é um magnífico exemplo do uso da retórica em palco:

“Estrepsíades - Mas... Então e Zeus?... Vejamos pela Terra!... Então Zeus Olímpico não é deus?
Sócrates - Qual Zeus nem meio Zeus!... Não digas asneiras: Zeus... não existe!

Estrepsíades - Que é que estás dizendo? Então quem é que chove? Sim, antes de mais nada, explica-me lá essa coisa.

Sócrates - São elas [as nuvens] que chovem, obviamente. E é isso mesmo que te vou demonstrar com provas irrefutáveis. Ora bem: onde é que já alguma vez viste chover sem haver nuvens? Em boa verdade, ele, Zeus, deveria chover com céu limpo, na ausência de nuvens.

Estrepsíades - Por Apolo! Com tal argumento provaste muito bem essa teoria... E eu que dantes cuidava que era mesmo Zeus a mijar por um regador!... Mas... Explica-me mais uma coisa: quem é que troveja, que até me põe todo a tremelicar?

Sócrates - São elas que, ao rebolarem-se, provocam, os trovões.
Estrepsíades - Mas como é isso, criatura tão desmedida?
Sócrates - Ao encherem-se abundantemente de água, são forçadas, por via disso, a deslocar-se. Ora, assim cheias de chuva, forçosamente ficam penduradas para baixo... Vai daí, mais pesadas, caem uma sobre as outras, rebentam e estalam.

Estrepsíades - E quem é que as força a mover-se? Não é Zeus?

Sócrates - Nada disso... É o Tornado etéreo.

Estrepsíades - O Tornado? Eis uma ideia que nunca me tinha passado pela cabeça, que Zeus não existe, e que agora, em vez dele, quem reina é o Tornado..."


O Tornado, elevado à categoria de divindade, é escrito assim mesmo, com maiúscula. Mais à frente, Sócrates pergunta a Estrepsíades:

"Sócrates - Ora bem: estás disposto, de agora em diante, a não aceitar qualquer outra divindade, que não sejam as nossas, ou seja o caos, as nuvens e a língua, essas e só estas?
Estrepsíades - A essas, pura e simplesmente, nem sequer lhes dirigiria a palavra, ainda que desse de caras com elas, nem lhes ofereceria sacrifícios, nem libações, nem incenso.”

Repare-se como a língua é também uma “divindade”. Nesse tempo, muito antes da Revolução Científica, a retórica pura, exercida pelo domínio da língua, era essencial na ciência. Os destinatários do culto e da liturgia vão passar a ser outros. E para isso é preciso, sem muitas discussões, substituir uma fé por outra, substituir a fé nos deuses pela fé na ciência. Sócrates intima Estrepsíades:

“Sócrates - Ora vejamos. Quando eu te mandar para a frente um conceito científico sobre coisas celestes, faz por abocanhá-lo imediatamente.
Estrepsíades - É o quê? Quer dizer que vou comer ciência assim como um cão a roer um osso?”

Mais tarde, Estrepsíades encontra-se com o seu filho Fidípedes e procura transmitir-lhe a lição que tinha aprendido com Sócrates:

“Estrepsíades – Tás vendo como é bom saber? Zeus - toma nota, Fidípedes – Zeus não existe!
Fidípedes - Então quem é que...?
Estrepsíades- Quem reina agora é o Tornado, depois de ter expulsado Zeus.
Filípedes - Eh lá! Tás doido ou quê?

Estrepsíades - Pois fica sabendo que é mesmo assim. Filípedes - E quem é que diz tal coisa?
Estrepsíades - Sócrates... de Melos, mais o Querofonte, que percebe de saltadelas de pulgas [Querofonte é um amigo de Sócrates].”

Repare-se que a mentira faz parte da “arte de convencer”: apesar de Sócrates ser natural de Atenas, Aristófanes liga-o à ilha de Melos, a terra do filósofo sofista Diágoras do séc. V a.C., um ateu confesso que foi por isso forçado a abandonar a cidade de Atenas. Assim, transmite-se a ideia, por um subentendido, que Sócrates é ateu.

Foi assim que, pelo menos em palco, os deuses começaram a cair na Antiga Grécia. Muito antes de Galileu ter posto as estrelas a ocupar o lugar de Deus, já Sócrates punha os fenómenos meteorológicos naturais a ocupar o lugar dos deuses, colocando em particular o Tornado no lugar do maior de todos, o poderoso Zeus. A fúria de Zeus é substituída pela fúria dos elementos naturais.

Foi preciso, porém, esperar muitos séculos para que, no Norte da Itália, aparecesse a ciência experimental como uma nova maneira de ver o mundo e se passassem a submeter as convicções sobre o mundo ao escrutínio e um escrutínio o mais rigoroso possível da observação e da experimentação. Aristófanes e Brecht representam duas maneiras de ver o mundo que, apesar das óbvias diferenças (Aristófanes não nutre respeito pela ciência, procurando ridicularizá-la, ao passo que Brecht é um grande admirador dela a ponto de ter dito: “não me é possível subsistir como artista sem me servir da ciência”), têm evidentes afinidades. Dada a distância temporal de quase 2500 anos entre Aristófanes e Brecht o que mais impressiona é decerto a actualidade do primeiro.

BIBLIOGRAFIA:
[1] Carlos Fiolhais, “Ciência em Palco”, in “Partilha de Cena”, nº 0, Coimbra: Mafia – Federação Cultural de Coimbra, 2007.
[2] Mário Montenegro, “Texto dramático sobre tema científico: o caso particular de Carl Djerassi”, Tese de mestrado, Porto: Universidade do Porto, 2007.
[3] Michael Frayn, “Copenhagen”, New York: Anchor, 2000.
[4] Carl Djerassi e Roald Hoffmann, “Oxigénio”, Porto: Editora da Universidade, prefácio de José Ferreira Gomes e trad. de Manuel João Monte.
[5] Bertold Brecht, “Teatro Completo”, vol. 6, “Os fuzis da Senhora Carrar, Vida de Galileu e Mãe Coragem e os seus filhos”, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 3ª ed., 1991, trad. de Roberto Schwartz da versão original da "Vida de Galileu".
[6] Bertold Brecht, “Vida de Galileu”, Lisboa: Portugália, 1970, trad. de Yvette Centeno.
[7] Paulo Quintela, “Obra Completa”, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5 vols., 1996-2001, Ludwig Scheidl, António Sousa Ribeiro, Carlos Guimarães e Maria Helena Simões (orgs.).
[8] Maria M. Gouveia Delille (coord.), “Do Pobre B. B. Em Portugal: a recepção dos dramas Mutter Courage und ihre Kinder e Leben des Galilei”, Coimbra: Minerva, 1998, estudos de M. Antónia Teixeira e M. Fátima Gil.

2 comentários:

platero disse...

interessante - que não consta do diálogo - é que Estrepsíades estava interessado em despachar o filho, Fidípedes, para a prestigiada escola de Sócrates
1º - para se ver livre dele em casa, apostado que estava em estoirar-lhe por completo a fortuna nas corridas de cavalos e na estroinice com mulheres
2º - porque a escola de Sócrates ganhara fama pela pedagogia prática que levava, mais do que à aquisição de curiosidades da ciência, à fórmula mágica de escapar ao assédio de CREDORES.
que era o que sobretudo afligia o insolvente, por via do filho, Estrepsíades.

propinas pagas sem qualquer retorno, já que Fidípedes não conseguiu entender-se com as teorias filosóficas do Mestre

(dedicaria este breve comentário ao meu velho "rival" - Vosso comentador de serviço - JCN)
Brinco, porque continuo a estimá-lo, claro

ana disse...

Muito interessante a analogia entre a ciência e os deuses.

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