quinta-feira, 9 de setembro de 2010
CIÊNCIA E TEATRO EM BRECHT E ARISTÓFANES 1
Já aqui tenho falado de ciência e teatro. Acaba de sair na Editora da Universidade do Porto o livro "Retórica e teatro" (Belmiro Fernandes Pereira e Marta Várzeas, orgs.), que contém este meu texto, resultado de edição de escritos anteriores. Como é algo maior do que aqui é costume divido-o em duas partes:
Mostrar a ciência em palco constitui uma das melhores formas de fazer cultura científica, isto é, de levar a ciência à sociedade [1,2]. Nas peças do chamado “teatro científico” (teatro sobre temas de ciência, entenda-se, pois o teatro é uma forma de arte e, por isso, pouco tem de científico) encontram-se boas ilustrações tanto do discurso científico como do discurso contrário. Esse teatro, que inclui peças como “Copenhagen” [3] do inglês Michael Frayn, ou “Oxigénio” [4] dos norte-americanos Carl Djerassi e Roald Hoffmann, tem conhecido ultimamente um grande interesse em todo o mundo e também Portugal.
Mas esse tipo de teatro é mais antigo. A peça “Vida de Galileu” do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) é perfeita para recolher exemplos da relação entre retórica teatral e retórica científica. “Vida de Galileu”, como o próprio nome indica, mostra o percurso biográfico do matemático e físico Galileu Galileu (1564-1642) desde os seus tempos de jovem professor de Matemática na Universidade de Pádua até aos tempos de reclusão domiciliária em Arcetri, perto de Florença, depois de ter sido condenado pela Inquisição em 1633 e de ter abjurado publicamente as suas teses mais polémicas. A acção situa-se no início do séc. XVII, precisamente no tempo de Revolução Científica. Brecht, baseado em factos reais mas não se inibindo de tomar as suas liberdades literárias, põe na boca do sábio pisano (nasceu e estudou em Pisa) algumas das afirmações que abalaram verdades estabelecidas na época, nomeadamente ao advogar a mudança do sistema de Ptolomeu para o sistema de Copérnico, o que significa uma mudança de uma visão estritamente religiosa do mundo natural, baseada numa leitura literal da Bíblia, para uma visão científica, baseada na observação e na experimentação. O papel de Deus passou a ser diferente; num certo sentido, pode dizer-se que se esvaziou.
Na cena 3, que se passa na cidade de Pádua em 10 de Janeiro de 1610 (lembre-se que em 2009 se celebra o quarto centenário das primeiras observações celestes com o telescópio, realizadas nos últimos dois meses de 1609), Galileu declara ao seu amigo Sagredo, depois de ter espreitado o céu com o telescópio, instrumento que ele aperfeiçou e que foi o primeiro a utilizar para observações astronómicas, e de ter descoberto as luas de Júpiter, que eram astros que de certa forma confirmavam o sistema de Copérnico (não giravam em redor da Terra):
“Não pare de olhar, Sagredo. O que você vê é que não há diferença entre céu e terra. Hoje, 10 de Janeiro de 1610, a humanidade regista em seu diário: aboliu-se o céu.”
Uso na citação a edição brasileira [5], uma vez que se aguarda a publicação entre nós de uma tradução recente de “Leben des Galilei” na colecção de obras quase completas de “Teatro” de Brecht que está em curso na Cotovia (há uma tradução portuguesa de 1970, feita por Yvette Centeno [6], e há traduções de alguns excertos feitas por esse grande germanista que foi Paulo Quintela [7]). A versão original da peça foi escrita em 1937-1939, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, mas há mais duas, escritas uma imediatamente após a a guerra (1945-1947) e a outra no pós-guerra (1956-1957), sendo muito interessante notar a evolução do texto da peça em paralelo com a evolução dos acontecimentos históricos a meio do século XX, nomeadamente a explosão da primeira bomba atómica que põe fim à guerra e o período de paz na chamada “guerra fria”. Esta evolução encontra-se bem descrita e comentada no livro “Do Pobre B.B. em Portugal” [8], que resultou de trabalhos de investigação efectuados pelo Centro de Estudos Germanísticos da Universidade de Coimbra, que também faz a história das várias representações da peça em Portugal. Recentemente, a peça foi representada no Teatro Aberto, de Lisboa, em versão de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos e encenação de João Lourenço.
Mais adiante, na mesma cena, há um diálogo entre Galileu e Sagredo (este amigo existiu mesmo, sendo também o nome do leigo inteligente que surge nos “Diálogos sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo”), que é bem elucidativo das dificuldades de ordem teológica que a “nova ciência” vinha trazer:
“Sagredo - Mas você não tem um pouco de juízo? Não percebe a situação em que fica se for verdade o que está vendo? Se você andar por aí gritando pelas feiras que a Terra é uma estrela [sic] e que não é o centro do universo?”
Galileu - Sim senhor, e que não é o universo enorme, com todas as suas estrelas, que gira em torno de nossa Terra, que é ínfima – o que aliás era de imaginar.
Sagredo – E que, portanto, só existem estrelas! E Deus, onde é que fica?
Galileu – O que é que você quer dizer?
Sagredo – Deus, onde é que fica Deus?
Galileu em fúria – Lá não! Do mesmo jeito que ele não existe aqui na Terra, se houver habitantes de lá que queiram achá-lo aqui!
Sagredo - Então onde é que fica?
Galileu - Eu sou teólogo? Eu sou matemático.
Sagredo – Antes de tudo você é um homem, e eu pergunto: onde é que está Deus no sistema do mundo?
Galileu – Em nós, ou em lugar algum.
Sagredo gritando - A mesma fala do queimado-vivo!
Galileu - A mesma fala do queimado vivo!
Sagredo – Por causa dela ele foi queimado! Não faz dez anos!
Galileu - Porque ele não tinha como provar! Que ele só afirmava!”
O "queimado-vivo" era o filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600) que tinha sido condenado à morte por heresia pela Inquisição e executado na fogueira na cidade de Roma. Repare-se como Galileu expõe a diferença entre a retórica, ou “técnica ou arte de convencer”, baseada no conhecimento certo (“ele não tinha como provar”) e a retórica pura e simples (“ele só afirmava”). Mais adiante, na cena quatro, Galileu está na sua casa de Florença, cidade para onde entretanto se tinha mudado, e é visitado por professores da universidade local. No diálogo entre um filósofo e um matemático, que defendiam as posições da Igreja, e Galileu, o papel da observação, possibilitada pelo novo instrumento, é convenientemente enfatizado:
"O filósofo - ... Mas eu receio que isso tudo não seja tão simples. Senhor Galileu, antes de aplicarmos o seu famoso telescópio, gostaríamos de ter o prazer de uma disputa. Assunto: E possível que tais planetas existam?
O matemático - Uma disputa formal.
Galileu - Eu achava mais simples os senhores olharem pelo telescópio para terem a certeza”.
Neste curto diálogo está sumariada a posição científica que Galileu advogava e que acabou, como é sabido, por triunfar. Ainda mais adiante, na mesma cena, a supremacia da observação, baseada no novo instrumento, relativamente ao conhecimento puramente livresco, baseado em Aristóteles:
“Matemático - Meu caro Galileu, por mais antiquado que pareça ao senhor, eu ainda tenho o hábito de ler Aristóteles, e lhe garanto que acredito nos meus olhos quando leio.
Galileu - Eu me acostumei a ver como os senhores de todas as faculdades fecham os olhos a todos os factos, fazendo de conta que não houve nada. Eu mostro as minhas observações e eles sorriem, eu ofereço o meu telescópio para que vejam, e eles citam Aristóteles”.
Um exemplo final do diálogo brechtiano sobre o espírito científico, ou melhor, a falta dele, encontra-se na cena sete, passada em 5 de Março de 1616 quando a Inquisição coloca a obra de Galileu no Index. A cena passa-se em casa do cardeal Roberto Bellarmino (1542-1621), em Roma, curiosamente durante um baile de máscaras. Galileu encontra o dono da casa, no século XX nomeado santo e doutor da Igreja, e o cardeal Maffeo Barberini (1568-1644), mais tarde papa com o nome de Urbano VIII :
“Galileu, tomando impulso para uma explicação – Eu sou um filho devoto da Igreja...
Barberini – Pessoa incorrigível. Ele quer provar, com toda a candura, que, em matéria de astronomia, Deus escreve asneiras! Deus então não estudou astronomia como convinha, antes de redigir a Sagrada Escritura? Caro amigo!
Bellarmino - Mesmo ao senhor, não lhe parece provável que o Criador saiba mais que a sua criatura a respeito da criação?
Galileu - Mas, meus senhores, afinal, se o homem decifra mal o movimento das estrelas, poderá errar também quando decifra a Bíblia?
Bellarmino - Mas, meu senhor... afinal, decifrar a Bíblia é da competência dos teólogos da Santa Igreja, ou não?
Galileu não responde.”
Galileu é calado com um argumento de autoridade e, em seguida, Bellarmino ordena-lhe que abjure das suas posições heliocêntricas. Na sequência, Barberini remata: “Bem, vamos repor as nossas máscaras. Mas o pobre Galileu não tem nenhuma”. Há aqui um teatro dentro do teatro e só Galileu não tem fuga: está condenado a fazer o seu próprio papel.
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