quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Matizes Outonais

Nova crónica de António Piedade, desta vez saída no sítio "Boas Notícias" (a ilustração é de Inês Massano):

Maria rodopia numa dança de folhas bailarinas. Em pausas coreografadas pela sua paciência, aguarda a queda de cada folha, desde o seu ramo pendente, lá do alto daquela árvore que deu sombra amena no Verão. Ondulada pelo vento que traz notícias outonais, a copa da árvore despe-se agora do traje primaveril e os ramos afinam-se para resistirem às agruras das estações menos luminosas que já se anunciam.

Maria dança o movimento da queda de cada folha até ao solo com gestos suaves, aparentes intuições de um conhecimento antigo e íntimo com a natureza. A arquitectura da folha, evolutivamente optimizada para uma máxima exposição solar, funciona agora como um amparo contra a queda gravítica. A sua forma espalmada permite que paire e flanqueie sucessivas colunas de ar como se deslizasse por um parque de diversões. E Maria parece sublinhar o percurso da queda como se estivesse a despedir-se do verde e a saudar os matizes da paleta outonal.

A partitura do vento traz a Maria uma folha e uma folha companheira vem num passo de dança até mim. Sentado neste banco, recebo com espanto a pergunta que ela transporta num sussurro: “Como é que o arco-íris se mete dentro das folhas? Onde é que se escondeu o azul, que não o encontro na minha dança?”

A cor das folhas resulta da interacção do espectro visível da luz solar com uma matriz submicroscópica de pigmentos. Os que “dão” cor verde às folhas, as clorofilas, são fotossintéticos. Estas moléculas estão acopladas a centros designados por fotossistemas, presentes nessas centrais solares intracelulares que são os cloroplastos.

A folha que te acompanha nessa dança é de facto uma fábrica de nutrientes. A energia radiante do sol é captada e fixada em moléculas de que os açúcares, como a glicose, são exemplo maior. Sabias que num centímetro quadrado de folha verde, mais ou menos a área de uma impressão digital tua, existem cerca de 500 milhões de cloroplastos cheios de clorofila?

Acrescentando metais à tarde, o sino da torre badala as quatro. Reparo que o astro-rei, entediado com o Verão boreal, já não “sobe” tão alto no horizonte. E a árvore sabe disso. A menor irradiação solar reduz a fotossíntese. Com os dias cada vez mais pequenos e iguais às noites, anúncio de equinócio, as folhas começam a desmontar o seu arsenal fabril. Hormonas vegetais orquestram esta mudança: a folha altera-se, desalojam-se as clorofilas. E o verde intenso da Primavera vai desbotando à medida que a Terra avança para equinócio de Outono.
Que cores sobejam? As que resultam da nova condição clorofilina. As que resultam da interacção da luz com outras moléculas estruturais. E velhos tons, até então discretos, sobressaem agora num requiem cromático de despedida foliar.

Maria rodopia e revolta o tapete cromático que foi sombra estival. E rodopia num planeta que avança com uma velocidade média angular menor do que aquela com que encontrou a Primavera, há 186 dias atrás. É como se o hemisfério Norte quisesse hibernar e retardar o renascer primaveril antípoda no planeta austral.

E a cada segundo o planeta avança 30 quilómetros, num rodopio incansável sobre o seu eixo inclinado, em 23 graus, sob o plano do seu caminho cósmico. Nessa dança à roda do Sol, aproxima-se de uma posição na sua órbita elíptica em que as noites crescentes igualam os dias minguantes. Isto ocorrerá no próximo dia 23 de Setembro, às 3 h 09 m da madrugada, hora universal.

Maria dança e rodopia enquanto o planeta avança.

11 comentários:

Anónimo disse...

Que lindo poema em prosa! Contraiamente ao que eu às vezes penso, também os homens de ciência possuem coração... aberto à poesia. Nem todos o têm de palha! JCN

António Piedade disse...

Caro amigo JCN
Se o coração fosse de palha, não resistiria a muitos ciclos de contracções por minuto (batimentos cardíacos). As fibras da palha fibrilhariam e partir-se-iam irreversivelmente. Nenhum INEM conseguiria desfibrilhar esse coração de palha que, muito provavelmente, arderia com a descarga eléctrica ressuscitante, deixando cinzas no lugar da bomba de sangue.
Por isso, quem estuda ciências não pode ter coração de palha. Porque muita é a agitação que a concentração obriga e muito é o bater do coração.
António Piedade

Anónimo disse...

Embora metaforicamente falando, caro Doutor António Piedade, é fácil, do ponto de vista vocabular, encontrar remédio para as suas judiciosas reflexões: em vez palha, seja de pedra. Com certs excepções, que me escuso de pontualizar para além da sua. Valeu? JCN

Anónimo disse...

Corrijo as gralhas "em vez pedra" por "em vez de pedra" e "certs" por "certas". JCN

Anónimo disse...

Corrijo novamente a gralha "em vez de pedra" por "em vez de palha": tremenda confusão! Refaço a frase por inteiro: "em vez de palha, seja de pedra". Assim é que está certo. Desculpem. JCN

Anónimo disse...

"é seco como a palha"

Caro Doutor Piedade:
de pau, de pedra ou de palha,
ou qualquer coisa que o valha,
eu lhe digo, à puridade,
que não fiz a afirmação
de assim ser o coração
dos científicos sábios
que a vida passam virados
para os velhos alfarrábios
a sete chaves fechados!

Eu só fiz comparação,
à laia de conjectura,
não com a palha, isso não,
mas com a sua secura!

Na minha boca não ponha
essa espécie de peçonha!

E viva a literatura
que é um bichinho sem cura!

JCN

António Piedade disse...

Caro Professor JCN,
Obrigado pelo estímulo com que me poetiza.
Estas coisas mostram que a cultura é una se humana e livre.

Abraço

António Piedade

Anónimo disse...

Gostei muito. Seria uma muito interessante proposta de texto a incluir nos manuais escolares.
HR

António Piedade disse...

Agradeço o comentário de HR.
Como saberá, o meu livro "Iris Científica", já velhinho de 2005, está no Plano Nacional de Leitura.
Mas se os Senhores e Senhoras que fazem os manuais escolares me quiserem contactar, terei todo o gosto em elaborar textos neste estilo e que possam contribuir para uma melhor adesão dos alunos à matéria a aprender.
António Piedade

Anónimo disse...

António Piedade, não conheço os senhores e as senhoras responsáveis pelos manuais escolares mas, avaliando grosso modo o panorama, duvido que tais senhores e senhoras estivessem interessados na sua contribuição, os seus textos são inteligentes, não cabem naquilo que se pretende.
HR

António Piedade disse...

Por razões de rigor científico, queiram os leitores por favor ter em atenção o seguinte:

Neste meu texto, onde se lê "A cor das folhas resulta da interacção do espectro visível da luz solar com uma matriz sub-microscópica de pigmentos.";

deverá ler-se: A cor das folhas é o resultado da interacção da radiação da luz solar, na janela visível do espectro, com uma matriz sub-microscópica de pigmentos.

De facto é a radiação electromagnética que interage e excita as moléculas pigmentos fotossintéticos e não o "espectro".

António Piedade

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...