Há uns meses o Desidério recomendou a leitura do livro de Simon Blackburn «Pense: Uma Introdução à Filosofia». O Desidério reproduzia um pequeno excerto do livro, que vale a pena (re)ler. Realço «Geralmente, estamos dispostos a pensar que os nossos hábitos, as nossas convicções, a nossa religião e os nossos políticos são melhores do que os deles, ou que os nossos direitos dados por Deus anulam os direitos deles, ou que os nossos interesses exigem ataques defensivos ou dissuasivos contra eles. (...) Quando estas convicções implicam o sono da razão, o despertar crítico é o antídoto».
O Rui Baptista, que nos tem oferecido reflexões inestimáveis em posts convidados no De Rerum Natura, nota nos comentários do «Será razoável acreditar em deuses sem provas?» que o elevadissimo número de comentários nos posts que tocam convicções como a religião (e misticismos New Age, acrescento eu) demonstra à saciedade o seu interesse.
Na realidade, quando o De Rerum Natura está prestes a contabilizar 200 000 visitas, é curioso fazer um balanço da participação dos leitores no nosso espaço de debate, normalmente estimulada apenas quando abordamos temas que têm a ver com convicções profundas dos nossos leitores, nomeadamente que tenham a ver com religião/crenças místicas.
A quase centena e meia de comentários nos posts recentes que tratam dos misticismos New Age, «Escravos da Superstição: os Inimigos da razão», «Message in a Bottle» e «Inimigos da Razão - O perímetro da Ignorância», assim como os protestos patentes em todos os posts que tratam de qualquer forma de criacionismo, indicam que há em Portugal quem considere ser a abordagem a certos temas um ataque disfarçado aos que acreditam no que quer que estejamos a analisar, seja criacionismo ou charlatanices New Age. A todos esses recomendo o post do Desidério, «Crítica, direito político e direito epistémico».
O Carlos no post «Coisas Estranhas», já referiu que essas crenças por muitos consideradas inofensivas «Podem, por exemplo, fazer mal à carteira». David Colquhoun, catedrático de Farmacologia na Universidade de Londres, elabora sobre o tema num artigo a não perder, na versão publicada no Guardian ou na versão mais completa na sua página sobre ciência.
O cientista considera que vivemos uma nova era de obscurantismo, que dura há aproximadamente 30 anos. Uma era em que «a verdade deixou de ser importante, e os dogmas e a irracionalidade passaram outra vez a ser respeitáveis». Uma era em que as pessoas são «iludidas a pensar que serão recompensadas com o paraíso por se suicidarem matando outros», em que bispos atribuem as recentes cheias em Inglaterra à vingança de uma divindade e em que «professores de ciências começam a acreditar que a Terra foi criada há 6000 anos».
Sobre o misticismo New Age o farmacólogo escreve: «Um aspecto menor do obscurantismo tem sido o ressurgimento de ideias mágicas e supersticiosas acerca de medicina. A existência de homeopatas normalmente não faz muito mal. Os seus placebos não contêm algo e não envenenarão o vosso corpo. O seu grande perigo é que envenenam a vossa mente.
É verdade que consultar um homeopata pode pôr a vossa vida em perigo se isso corresponder a um atraso de um diagnóstico a sério ou se eles recomendarem placebos para prevenir a malária, mas a objecção mais forte [a estas charlatanices] é cultural. Os homeopatas são a manifestação de uma cultura em que o «wishful thinking» é mais importante que a verdade, uma sociedade em que tudo o que se diga três vezes é verdade e não se olha para os factos».
Colquhoun continua com o diagnóstico sombrio da sociedade inglesa em que «O obscurantismo atinge as altas cúpulas dos media, governo e Universidade. Corrompe a própria ciência».
É curioso o Carlos ter escolhido falar sobre Carl Sagan hoje, já que PZ Myers, ao escrever sobre o caso americano, cita o último livro de Sagan quando preconiza a resposta a esta nova era de obscurantismo.
De facto, «O Mundo Infestado de Demónios: a ciência vista como uma vela na escuridão» é um manifesto contra as pseudociências. Sagan demonstra uma nítida preocupação com o espaço cada vez maior oferecido pelos meios de comunicação a explicações pseudo-científicas e místicas. Como antídoto apresenta-nos o método científico e encoraja os leitores a pensar critica e cepticamente, construindo e racionalizando argumentos, válidos e inválidos, que precisam ser provados de forma independente, racional e lógica. Esta seria para Sagan a única forma de combater a ignorância e desfazer mitos, fraudes, superstições e crendices.
Num mundo cada vez mais assombrado pelos demónios da razão adormecida, urge reacender as velas de Sagan e estimular o pensamento crítico! Continuaremos a desmontar todas as formas de pseudociência, não obstante os protestos de alguns dos nossos leitores, porque, como se inicia o livro de Sagan: «É melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão»...
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9 comentários:
Excelente ponto de ordem Palmira.
Quanto ao interesse desses posts, penso que tem duas vertentes: a primeira o facto de serem posts que versam e se debruçam sobre opiniões, como tal, em alguns pontos, podem ser sentidos como subjectivos, pedindo opinião (mesmo que muitas vezes não o sejam). Já os posts sobre ciência pura (vide o post "Matéria muito condensada" do Carlos) com vista à divulgação, são mais directos e difíceis de comentar pela maioria das pessoas, dado que caem nas áreas de especialidade dos autores.
Por outro lado, os posts que mais comentários atraem, iniciam frequentemente diálogos, os quais atraem ainda mais comentários e tornam as caixas de comentários deste blogue um dos melhores locais de discussão que encontrei desde que comecei a passear pela blogosfera.
Como tal, e também pelas 200.000 visitas, parabéns ao De Rerum Natura e seus autores e, especialmente, um obrigado pelo trabalho desenvolvido.
Foi importante o esclarecimento deste post, pelo efeito de "pôr água na fervura" sobre alguns comentários que optam por resistir ao julgamento crítico e, por esta razão, tangenciam a intolerância.
Aproveito também para dar os parabéns aos colaboradores deste blog pela gentileza incansável em partilhar as suas ideias e fazer com qualidade algo raro em Portugal no tocante à divulgação científica e filosófica.
Um parântesis:
(Estimo este tipo de blogs pela capacidade de suscitarem o debate e pela "vocação pedagógica" que assumem os seus moderadores, que não se veria anulada se aparecesse nas bancas o seu formato em papel!)
O interesse pelas pseudociências e a discussão da sua legitimidade é um desafio bem difícil e acredito que este espaço muito pode contribuir para a avaliação de algumas posições mais cerradas e resistentes à crítica.
Partilho da opinião do leitor jsa, ao considerar que este blog é um dos melhores lugares para a discusão da blogosfera. Ainda que existam blogs com muita qualidade, os posts são invariavelmente redigidos sob a égide de um "onanismo intelectual", legítimo, mas pouco formador da cultura científia, filósofica, ou outras, dos portugueses. Este blog está a tornar-se num verdadeiro "espaço público", num país que, a confiar nas teses de José Gil, não há "espaços públicos".
Em relação às velas para a escuridão (ou luz ao fundo do túnel), penso que se está a referir às catástrofes cíclicas civilizacionais. Infelizmente para os que viveram, vivem e viverão situações de catástrofe civilizacional, o “wishful thinking” acerca do “não será nada conosco”, adiantará pouco, mas acredito que anime a sobrevivência. Isto leva à pergunta: Palmira, receia que esteja perto uma catástrofe civilizacional do género do “fim” dos Gregos, dos Romanos, dos Maias, etc., ou não? Se sim, esse receio é escorado com optimismo ou pessimismo?
Temos sem dúvida, pelo menos nos últimos 40/30 anos, vivido uma crise da racionalidade. Mas eu não acredito que a crise da razão seja intrínseca e inelutável, ou que seja responsável pela catástrofe, se ela vier?? A racionalidade, respeitando obviamente a autolimitação que lhe impõe a finitude humana, funciona sobre bases extremamente sólidas e a tecnologia atingida está aí para o demonstrar.
Mas o facto de a racionalidade ser sólida, não ser responsável por catástrofes civilizacionais, não quer dizer que as possa evitar, como aconteceu com as do passado. Em todo caso, penso que a luz ao fundo do túnel, que nos tornaria certamente mais optimistas, surgiria se a racionalidade, tendo dado o primado às verdades, o equlibrasse com a internalização (mais ainda) de valores éticos, sociais, políticos e jurídicos, e com um pouco mais de racionalismo crítico. Claro está que esta internalização terá de ser endógena e não exógena.
Fernando Gil chamava a isto “pensamento soberano com razão de esperança”, imbricando saber científico com convicção moral.
Parbéns ao DE RERUM NATURA pelas 200 000 visitas, e que tem sido para mim um blog de referência.
Nunca é demais desmidtificar os monstro do fundo da garagem e o obscurantismo que nos governa.
Um abraço
Não conhecia o trabalho de Colquhoun e fiquei impressionado. Há muito que observo que infelizmente vivemos numa sociedade mais obscurantista do que nos anos 70 do passado século. Basta ver, por exemplo, o tipo de humor que os Monthy Python faziam no final dos anos 60 e princípios dos 70 na Inglaterra: hoje, aquele humor, com críticas violentas aos juízes, polícias, igreja, militares, só para nomear algumas instituições, seria impossível. No pós-guerra, as inquitações de Orwell relativamente à falta de liberdade pareciam felizmente fantasiosas; hoje, parecem-me premonitórias.
Penso que há pelo menos dois factores no recrudescimento do obscurantismo.
O primeiro é o pensamento religioso de extrema direita que "saíu do armário" com Reagan e depois foi exportado para o resto do mundo.
O segundo é o pensamento pós-moderno, também exportado pelos norte-americanos, que introduziu a sanha relativista, pondo a par qualquer mito de uma tribo índia com o que hoje sabemos cientificamente sobre a origem do universo.
Muitas pessoas falam do "politicamente correcto" como um dos factores do obscurantismo actual, mas o "politicamente correcto", com o seu policiamento da linguagem, resulta do relativismo pós-modernaço. Caso resultado de um genuíno apreço pela liberdade e pela tolerância, nunca se teria tornado a polícia do pensamento que é hoje. Por exemplo, não podemos dizer que as mitologias índias são pura e simplesmente falsas, pois os relativistas pensam logo que dizer que um povo tem ideias falsas sobre a origem do universo significa que esse povo não pode ser tolerado -- isto acontece porque os relativistas são incapazes de compreender o conceito de tolerância.
Prezada Palmira: Muito grato pela sua referência às minhas intervenções in "De Rerum Natura", blogue recheado de excepcionais colaboradores sempre abertos ao diálogo até com alguns comentaristas/fanáticos explicando, de maneira acessível "quantum satis", conceitos complexos. O fanatismo, seja ele em Ciência,Filosofia e Religião, é um obstáculo só superado com muita benevolência da vossa parte. Aquela benevolência capaz de arrostar até com opiniões contra factos. Aliás, os anglo-saxões têm um conceito que julgo bem poder apropriar-se a um costume bem português de convivermos em santa paz com os nossos "saberes" arreigados numa vida sem reflectir sobre questões que nos possam incomodar por irem contra as nossas convicções ou até meras opiniões: "My mind is made-up; don't confuse it with facts"!
Carissimos:
Muito obrigado pelas palavras simpáticas que cá deixaram.
Em relação às manifestações de preocupação, nomeadamente do f.dias, em relação a uma possível catástrofe civilizacional, sinceramente acho que estamos em plena crise de racionalidade, como saíremos dela, não sei.
Isto é, quando leio posts como o da Helena ou o artigo de David Colquhoun, que confirmam que esta crise de racionalidade chegou às Universidades, quando penso na Polícia da Palavra, quando vejo as loucuras de fanatismos religiosos sortidos, tenho alguns momentos de pessimismo.
Mas quando vejo um pouco por todo mundo tanta gente tão empenhada em trazer para a ribalta um pouco de lucidez e racionalidade, em acender as velas do espírito crítico, em denunciar a irracionalidade, esse pessimismo passa :-)
Em Portugal, como alguns dos nossos leitores e seus comentários demonstram, não ficámos imunes a essa crise da racionalidade. Também por cá se fazem sentir os efeitos dos denunciam os Torquemadas da razão. Aqueles que o Rui Baptista descreve tão bem como "My mind is made-up; don't confuse it with facts".
Mas graças ao nosso atraso constitucional, o anti-intelectualismo que, como diz Diane Ravitch, propicia o surgimento de uma cultura idiotizada, é algo recente. E só é explorado por grupos restritos das religiões cá do burgo, não é explorado pela religião main stream, felizmente. Posso ser crítica em relação à actuação do cardeal Policarpo noutros assuntos, mas estou muito grata por não ter embarcado no apelo ao obscurantismo que se verifica noutras paragens. Aliás, nos últimos tempos estive em alguns debates com vários padres, nomeadamente com o padre Carreira das Neves, e parece-me que partilham as minhas preocupações em relação a esta crise da razão.
Assim, se não nos deixarmos ir na onda mais tempo, o antídoto da razão crítica ministrado nas nossas escolas far-nos-á acordar deste sono da razão.
A questão é arranjar forma de ministrar o antídoto...
René Maheu, que presidiu à UNESCO, dizia, a propósito dos que denegriam o desporto, como fonte de muitos males, que "Devemos olhar para o Desporto, como o historiador Mialaret olhava para a Revolução Francesa, de uma forma global". Portanto, a minha opinião é a de devemos viver entre um optimismo didáctico e um pessimismo pedagógico; um optimismo para encontrar as soluções aos novos problemas que suscitam novas respostas, um pessimismo que nos obrigue aprofundar os temas que parecem irresolúveis; um optimismo que nos permita tornar possível o impossível, um pessimismo que nos aguce a inteligência para alcançar o topo da montanha. As grandes civilizações nasceram em meio adverso, com muitos obstáculos e grandes dificuldades que tiveram de vencer e derrubar, porque entre o pessimismo inculcado pela desistência ao enfrentamento do difícil, e o optimismo ínsito na resposta aos grandes desafios, optaram pelo segundo. Tudo é feito de avanços e recuos para sair do alfa e alcançar o omega, como preconizava Teilhard de Chardin, o homem que se considerava "filho da terra, e filho do céu", um homem dos dois reinos. Nós também vivemos em dois reinos: o do optimismo e o do pessimismo, em permanente colisão. Por isso, devemos seguir o conselho de Mialaret: olhar para o optimismo e o pessimismo, globalmente.
Desidério disse:
"isto acontece porque os relativistas são incapazes de compreender o conceito de tolerância"
Parece-me que o Desidério estará muito enganado. É precisamente compreenderem o conceito de tolerância é que os relativistas se poderão sentir incomodados por uma afirmação como a do seu exemplo.
Os relativistas entendem é que a comunicação entre pessoas não é uma mera troca de preposições de lógica do segundo grau, redutíveis a um valor verdadeiro ou falso...
Eles provavelmente compreendem que por detrás de uma afirmação existem contextos, sentimentos e intenções que estão para além da lógica booleana. E pela sua tolerância, preocupam-se com os efeitos sociais e humanos do que se diz, para além do conteúdo lógico da questão.
Aliás, os "objectivistas" tendem a ser muito mais intolerantes, como se pode observar pela consulta dos posts deste blogue e dos comentários anexos...
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