Este é um post convidado. A autora, Mónica Vieira, é licenciada em Ciências da Educação e doutoranda da Universidade de Coimbra, na área da Educação Científica.
A educação científica é, na actualidade, apontada como uma área fundamental para o desenvolvimento integral dos alunos, tanto ao nível de funções cognitivas, como da preparação para a cidadania. É apontada também com uma das mais importantes vias de progresso tecnológico e económico das sociedades.
Longe de ser uma preocupação de início de século, tem ocupado nas últimas décadas uma importância central nas políticas educativas dos diversos países ocidentais. Não fugindo à regra, no nosso país constitui-se como um dos aspectos mais propagados das últimas legislaturas, sendo apresentada na legislatura vigente como área prioritária de aprendizagem desde o 1.º Ciclo do Ensino Básico, com acentuado destaque para este. Isto mesmo está plasmado no Programa do XVII Governo Constitucional (2005) que torna obrigatório o ensino experimental das ciências nos quatro anos que o constituem.
Reconhecida a importância da área, não será descabido analisar a corrente teórica que lhe anda associada nos documentos curriculares.
No currículo e programas do dito Ciclo afirma-se explicitamente uma orientação sócio-construtivista que coloca em primeiro plano a actividade interpretativa e culturalmente contextualizada dos alunos, como elemento central para organizar as aprendizagens. Vejamos, ainda que resumidamente o que é que isto significa.
O sócio-construtivismo desloca o centro do processo de ensino-aprendizagem do professor para o aluno, passando aquele a ser um facilitador dos significados que este estrutura. Mais concretamente, considera que o aluno aborda novas experiências com um conjunto de crenças pré-estabelecidas e teorias ingénuas, ocorrendo uma mudança apenas e só quando não consegue conciliar os novos dados com as concepções que possui no presente – dissonância cognitiva (Koch, 2006) –, aspecto a que o professor deve estar atento e potenciar. Esta ideia, se levada às últimas consequências, leva o professor a rejeitar qualquer atitude mais directiva para ensinar o que quer que seja ao aluno, pois tem de ser este a aprender.
Por outro lado, afirma-se neste quadro teórico que toda e qualquer aprendizagem não se pode fazer num vazio histórico e cultural dado que este duplo contexto influencia a forma como o indivíduo constrói o conhecimento (Koch, 2006). Tal suposto leva a uma valorização do papel da linguagem (Sousa, 2005) e do modo como esta permite estruturar os conceitos; do trabalho colaborativo, que sobrepõe as abordagens grupais às individuais (Lourenço, 2005); e das aprendizagens situadas, que implicam a confrontação com problemas reais do quotidiano.
Nesta lógica, no ensino das Ciências, têm-se privilegiado as actividades manipulativas, desencadeando a proliferação de indicações de experiências e de materiais de aprendizagem nos currículos escolares (Koch, 2006), acreditando-se que “o ponto de partida para qualquer actividade em ciência é o encontro entre a criança e um determinado fenómeno que ela vai tentar compreender e com o qual vai interactuar. O estudo da ciência envolve a descoberta de algo, através das suas próprias acções e a sistematização das observações através do pensamento” (Mata, Bettencourt, Lino & Paiva, 2004, 171).
A questão que, no plano científico, se deve pôr é se esta teorização, que tanto tem entusiasmado educadores e decisores, encontra fundamentação na investigação empírica. Devemos dizer que, a este nível, os resultados têm sido menos animadores do que seria de esperar (Anderson, Reder & Simon, s/d). Não podendo, aqui, discutir esta afirmação até aos mais ínfimos pormenores, limitamo-nos a um exemplo relativo ao uso do método experimental.
Segundo Roden & Ward (2005) existe uma forte ligação entre tal método e o desenvolvimento da compreensão de conceitos científicos, uma vez que estes são sustentados em provas e na discussão que proporcionam. No entanto, a maneira como o método experimental se implementa deve ser repensada.
Estudos empíricos indicam que muitos professores, quando entrevistados, não conseguem explicar claramente quais as intenções ao nível conceptual e de desenvolvimento cognitivo que perseguem ao implementarem as experiências recomendadas junto dos seus alunos. Por outro lado, foram encontradas discrepâncias entre as intenções dos professores, quando elas estão bem estabelecidas, e o envolvimento real dos alunos. Por outro lado, ainda, mesmo quando este envolvimento existe, foram encontradas discrepâncias entre a acção e a compreensão dos alunos, ou seja, quando se observaram as interacções verbais de crianças e, de seguida, se entrevistaram no sentido de tentar perceber o que apreenderam verificou-se que não entenderam os objectivos da actividade nem o desenho experimental, limitando-se a seguir instruções, não conseguindo, correlativamente interpretar os resultados e muito menos transferi-los para situações novas (v.g. Osborne & Freyberg, 1991; Tasker & Freyberg, 1991).
Assim, parece ser pequena a probabilidade de a criança que experimenta livre e espontaneamente, sem orientações concretas do professor, conseguir atingir e consolidar processos de compreensão. Charpak (1996) e Koch (2006), entre outros, salientam que os alunos não compreendem os conceitos e procedimentos apenas porque manipulam directamente os materiais, sendo de extrema importância que o professor planei cuidadosamente o ensino e o guie, exponha e explique o que é necessário e eficaz, que questione e responda a questões.
A aprendizagem em Ciência, ao implicar a memorização, a interpretação, a síntese, a criatividade, a aplicação de conceitos e procedimentos a novas situações, não pode confundir-se com a vaga aquisição de ideias, devendo, portanto, apelar a outras abordagens teóricas, além da sócio-construtivista.
Uma das abordagens que, neste âmbito educativo, deveria ser encarada com a seriedade que merece é a cognitivista, pelo facto de pôr a tónica na estrutura e na actividade intelectual dos alunos. Anderson, Reder & Simon (s/d), consideram, aliás, que a introdução de uma nova abordagem, não implica negar todos os aspectos de outra ou outras, havendo, no entanto, necessidade de uma conciliação e ajustamentos das diversas contribuições teóricas em função do conhecimento pedagógico disponível.
Com base nestas considerações e tendo em atenção que o ensino da(s) Ciência(s) em Portugal, se tivermos em conta os resultados de estudos internacionais, é francamente preocupante, concluímos pela urgência duma séria reflexão sobre a “militância” numa só teoria de ensino-aprendizagem. Este é, na nossa opinião, um desafio que, mais cedo ou mais tarde, o Ministério da Educação terá de enfrentar.
Imagem retirada de: abyss.uoregon.edu/~js/21st_century_science/
Referências bibliográficas:
Anderson, J. R.; Reder, L. M. & Simon, H. A. (s/d). Applications and Misapplications of Cognitive Psychology to Mathematics.
Charpak, G. (1996). As Ciências na escola primária: Uma proposta de acção. Mem-Martins: Editorial Inquérito.
Koch, J. (2006). Relating Learning Theories to Pedagogy for Preservice Elementary Science Education. In K. Appleton (Ed.). Elementary Science Teacher Education: International Perspectives on Contemporary Issues and Practice. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.
Lourenço, M. H. (1998). Contexto regulador e ensino das ciências: Um estudo com crianças dos estratos sociais mais baixos. Tese de doutoramento em Educação (Didáctica das Ciências), apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Ciências.
Mata, P.; Bettencourt, C.; Lino, M. J. & Paiva, M. S. (2004). Cientistas de palmo e meio: Uma brincadeira muito séria. Análise Psicológica, 1 (XXII), 169-174.
Osborne, R. & Freyberg, P. (1991). Learning in science: The implications of children’s science (8th ed.). Hong Kong: Heinemann.
Ministério da Educação (2007). Programa do Programa do XVII Governo Constitucional. Disponível em http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Governos/Governos_Constitucionais/GC17/Programa/programa_p007.htm consultado em 2 de Março.
Roden, J. & Ward, H. (2005). What is Science (pp.1-14). In H. Ward; J. Roden; C. Hewlett & J. Foreman. Teaching Science in the Primary Classroom: A pratical guide. London: Paul Chapman Publishing.
Sousa, C. (2005). A teoria sociocultural de Vygotksy. In G. L. Miranda & S. Bahia. Psicologia da Educação: Temas de Desenvolvimento, Aprendizagem e Ensino. Lisboa: Relógio D’ Água Editores.
Tasker, R. & Freyberg, P. (1991). Facing the Mismatches in the Classroom. In Osborne, Roger & Freyberg. Learning in science: The implications of children’s science (8th ed.). Hong Kong: Heinemann.
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4 comentários:
Qualquer aprendizagem produz mais frutos quanto mais cedo for iniciada. A criança aceita facilmente a novidade e raramente a questiona. Por isso é necessária uma grande honestidade intelectual e um cuidado extremo quando se lida com crianças. E podemos ter agradáveis surpresas a respeito da sua capacidade de percepção. É mais fácil convencer uma criança de que o tempo e o espaço são relativos do que um adulto com ideias feitas. No entanto não será isto, obviamente, que deverá ser ensinado no 1º ciclo. Há outras coisas mais simples e de importância mais imediata, que não requerem sequer materiais que, infelizmente, faltam nas escolas, onde só abundam, ao que parece, computadores e banda larga. Por exemplo a respeito da evaporação, do vapor de água e da formação das nuvens, conceitos de que a maior parte dos adultos nem sequer faz ideia, confundindo o vapor com aquele “fuminho” branco da condensação. Ou, no caso de ilhas como as minhas, quanto à formação do solo, bastando para tal pôr algumas sementes em areia ou cascalho molhados e explicar, a partir do crescimento e morte das plantas, o que é o húmus e o solo arável. (Coisa importante? Parece que não, mas há por cá um livro, escrito por alguém de formação superior, embora não em Ciências, em que se afirma que a rocha foi formada pelos vulcões – até aqui muito bem – e a terra veio trazida pelo ar e pelo mar. Para que não restem dúvidas, a tradução inglesa diz que “the soil was brought by air and sea”.)
...And so on... digo eu, mas quanto a pequenas coisas de ciência que deveriam ser ensinadas às crianças.
Em Portugal o método de ensino no 1º ciclo é o do "sócio-construtivismo"? Onde? Viram isso? E é por causa dessa "realidade" que nós estamos mal colocados internacionalmente? É por causa do programa de Governo de 2005? De certeza? Nem os programas oficiais do 1º ciclo, de 1991, são sequer mencionados? Acho que falta fazer muita investigação, de preferência mais perto da realidade das nossas salas de aula.
Concordando em boa parte com o que diz o texto, convém não esquecer, e como bem sabemos, uma coisa é o espírito da lei e outra a prática que depois o corporiza. É por isso que me parece que certos normativos, entre eles a própria LBSE, deveriam ser mais explícitos nos termos que utilizam, para não gerarem tantos equívocos a nível conceptual.Talvez na prática, não seja assim tão visível essa dicotomia, não lhe parece? Eu ando a tentar ver isso...
Fátima
Cara colega, meu nome é Joaquim Sá, Professor Associado da Universidade do Minho. Estudo a problemática da educação científica nos primeiros anos de escolaridade desde 1990, utilizando as salas de aula do 1º ciclo como "laboratório" de construção do conhecimento acerca dos processos de ensino e de aprendizagem (tese de Doutoramento on line, em http://hdl.handle.net/1822/8165). Tenho a dizer que a discussão teórica, sem metermos a mão na massa (testar teorias na forma de um saber-fazer, ensinando crianças)é estéril, não nos leva a nada: redunda num jogo de palavras mais ou menos erudito, mas totalmente inconsequente do ponto de vista da realidade que supostamente analisa. O problema não está na adopção da teoria sócio-construtivista... tomara que nas nossas escolas lá tivesse chegado. O problema está em que isso são apenas palvras que não significam nada em termos de uma prática de ensino, um saber fazer que seja a expressão dessa teoria. Por muito que bem que se conheçam todos os enunciados de uma teoria de ensino, estaremos sempre muito longe de uma prática que seja a expressão dessa teoria. Esse é o principal drama do nosso ensino: ficamo-nos pelos enunciados teóricos esquecendo que ensinar é um saber-fazer. É preciso uma boa teoria, mas temos que desenvolver as competências de uma prática consequente e ainda, saber desenvolver nos professores essas competências para o exercício da docência. Mas como na tradição escolástica da nossa formação só se debitam enunciados teóricos, os porfessores ficam sem nada e vão ensinar como se ensina há 40 anos, aprendendo com os que já lá estão. Tenho um blog de ciências para crianças em http://geniociencia.blogspot.com, em que o último post situa num plano muito básico as nossas dificuldades. Para os interssados deixo também a indicação do artigo PODER E ESTAGANÇÃO EDUCACIONAL em http://www.portaldacrianca.com.pt/artigosa.php?id=74
Cumprmentos.
Joaquim Sá
considerações teóricas como a que acabade fazer há
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