Vergílio António Ferreira, professor; Vergílio Ferreira, escritor. O ofício do primeiro em frequente litígio com o do segundo, ou o contrário. Nada a fazer, pois professor e escritor são neste, como em muitos outros casos, uma e mesma pessoa.
Uma brevíssima nota biográfica da pessoa, para que se perceba como, durante uma vida, conviveu com os dois ofícios. Foi em 1916 que nasceu e em 1996 faleceu. Entrou no seminário do Fundão com dez anos e saiu pelos dezasseis, terminou o curso liceal no Liceu da Guarda e passados quatro anos entrou no curso de Filologia Clássica da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Nesta mesma cidade, com vinte e quatro anos, iniciou-se na profissão de professor, no Liceu D. João III (actualmente Escola Secundária de José Falcão), onde fez o estágio, depois passou por Faro e Bragança, deteve-se em Évora (na fotografia) e, mesmo a finalizar a década de cinquenta, assentou em Lisboa, no liceu Luís de Camões.
O seu outro ofício, a escrita, acompanhou estes lugares e as circunstâncias que lhe proporcionaram, quem o diz é Eduardo Lourenço: se o aluno e, depois, o professor, não tivesse deambulado por onde deambulou, das mãos do escritor teria, certamente, saído outra poesia (como muito escritores, também Vergílio se iniciou neste género) e outra prosa.
Esta íntima ligação entre os dois ofícios faria, talvez, prever que o escritor, pelo facto de conviver com as palavras, gostasse “naturalmente” de as ensinar, desejasse contribuir para que outros rejubilassem como elas; que fosse um entusiasta do convívio com aqueles que se iniciam nos livros. Não é bem assim em Vergílio:
“– As aulas, como procurou você essa vida? Ensina por vocação?
– Não, se por vocação subentende prazer. Rumei para aqui, realmente, obedecendo apenas ao que julguei ‘conveniências’ (…). Ensinar implica, além de outros, o clássico suplício de Sísifo, na interminável repetição das matérias, o regresso ao início depois de terminado o curso. Mas esclareça-se: o escrúpulo e até a eficácia não dependem estritamente do prazer (…)
Mas, a priori, a profissão julgo-a um entrave à minha actividade literária. Não será ela igualmente um ‘derivativo’, uma pausa útil nessa actividade? De qualquer modo, o que julgo indubitável é que em nada tal profissão me favoreceu directamente (em temas, problemática) a minha realização literária (…) E no que se refere globalmente a uma formação humana de nós próprios, estou convencido que a profissão de professor retarda ou impede uma certa qualidade de ‘adulto’ pelo contacto quase exclusivo com jovens. De modo que, num balanço geral, é provável que o saldo seja negativo.
– Nas suas andanças como professor de liceu, o que guarda de melhor dessa experiência?
– Pouco de ‘melhor’, quase tudo de ‘pior’. Proponho-lhe este ‘jogo’. Você escolhe a sua música favorita e eu condeno-o a ouvi-la centenas de vezes seguidas…Com a diferença de que não é bem uma bela música a que eu tenho de ouvir ou de ouvir-me.”
Há nesta reflexão de Vergílio três aspectos que, na vertente da pedagogia, interessam salientar.
O primeiro, é que essa entidade mítica que é a “vocação”, entendida como um chamamento interior de ordem superior, como se de uma revelação divina se tratasse, tem gerado inúmeros equívocos: um deles é estabelecer-se uma relação directa e linear entre a qualidade do desempenho profissional e esse sentimento inicial de que se foi “escolhido” para a desempenhar. Na verdade, nem todas as pessoas que sentem ter vocação para ensinar são bons professores (este conceito de “bom professor” é bastante discutível, mas entendamo-lo como aquele que provoca mudanças positivas nos alunos) e o contrário também é verdade. Certamente que haverá professores que sentem ter vocação para o ensino e serão bons professores…
O segundo, é a frequente associação entre a noção de vocação e um certo tipo de arte que se conjectura que o ensino, como profissão, será. Num tom acentuadamente romântico faz-se, por vezes, crer que todo o trabalho do professor decorre de uma certa espontaneidade, e se exerce com leveza, sem dificuldades ou contrariedades, sempre com prazer e boa-vontade. E, contudo, não é bem assim: o ensino, tal como muitas profissões, tem as suas asprezas, implica responsabilidades várias, dilemas e dificuldades frequentes, momentos de insegurança e… esforço.
Nesta linha de pensamento, surge o terceiro aspecto: que o professor constrói tacitamente os seus saberes na prática, à medida que eles vão sendo requeridos. Alguns dos saberes dos professores serão assim construídos, mas, tal como se espera que os médicos aprendam medicina para exercerem medicina, também se espera que os professores aprendam a ensinar para ensinarem. Tendo em conta a frequente omissão da palavra “ensino” convém aqui salientar que a tarefa dos professores é mesmo isso: ensinar. E convém também salientar que se aprende a ensinar.
Bom: quarenta anos de ensino requerem alguma reconciliação com a memória ou, então, a vida parecerá completamente inútil... Talvez por isso, Vergílio ameniza a sua reflexão:
“Mas então tudo ‘mau’? Decerto que não. Para lá do tempo livre que a profissão me permite, há a discreta e íntima satisfação de assistir, de ano para ano, à evolução dos rapazes e pensar que eu tive nisso a minha quota-parte. Ou encontrar um dia um antigo aluno, que passou no turbilhão dos milhares de alunos que passaram, e ouvir-lhe dizer espontaneamente que eu disse coisas para a sua formação. É uma bela recompensa. A gente acaba por admitir que afinal não foi de todo inútil.”
Obras referidas:
Ferreira, Vergílio (1991). Um escritor apresenta-se (Apresentação e prefácio de Maria da Glória Padrão). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Lourenço, Eduardo (1994). O canto do signo. Lisboa: Editorial Presença.
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8 comentários:
Fui aluno de Vergílio Ferreira, no Liceu Camões, no ano da APARIÇÃO, em que ele ganhou o prémio Camilo Castelo Branco.
VF Não tinha grande empatia connosco, nem se preocupava com isso.
Infelizmente, não guardo dele, como professor, recordações do género das que, num texto como este, estamos habituados a ler.
Não me esqueço da cena em que, face a uma resposta perfeitamente lógica de um aluno, ele preferiu ridicularizá-lo em vez de o eluciar...
Caro Carlos Medina Ribeiro
O caso que conta de VF ao ridicularizar o aluno, traz-me à memória o de um aluno de José Régio, no Liceu de Portalegre, que ao não saber a resposta, a determinado assunto posto pelo professor, e por ser um aluno muito alto, teve esta reacção de JR: "Homem grande, besta de pau". O aluno não se ficou e, considerando que JR era de baixa estatura, contestou: "Homem pequenino, ou velhaco ou dançarino". O professor queixou-se ao Reitor e este suspendeu o aluno por uma semana.
Cara Helena,
Na verdade o vocábulo vocação tem a origem latina “vocare” que significa “chamamento”. Mas chamamento não significa obrigatoriamente apelo interior ou inspiração divina. Essa coisa que vem de dentro, podemos identificá-la com um caminho, de discernimento que vamos fazendo ao longo da vida que nos vai permitindo conhecer e desenvolver as nossas aptidões para fazer ou desempenhar um ofício, uma profissão, ou para fazer coisas novas. Um caminho, ele próprio, nem sempre claro ou prazeroso, pois sabemos que são milhares de jovens que terminam os seus cursos superiores e nem nessa altura têm muito claro a profissão que querem desempenhar (isto não se prende com a dificuldade de arranjar emprego, prende-se com a complexidade do processo).
E voltando ao desempenho da profissão, digamos que prazer não sendo condição sine qua non para exercer uma profissão com competência, em abono da verdade será de todo conveniente que se trabalhe com agrado, pois, numa profissão como a nossa (ensinar) porque é isso que fazemos (e se o fizermos bem, cumprimos a nossa missão) temos que convencer os outros (alunos) de que aquilo que transmitimos é a verdade, é conhecimento importante para o desenvolvimento e progresso das sociedades, do país e, se possível, nos tornarmos pessoas melhores...
Com isto não quero dizer que só tem vocação para ensinar quem tem “paixão pelo ensino” (embora eu ache que isso é muito bom). Porém, será de notar que a vocação exige uma adesão plena, uma entrega total, mesmo quando as tarefas são árduas, pouco agradáveis ou até em situações dilemáticas. A título de exemplo recordemos Ladjali, a professora que ensina alunos dos subúrbios de Paris, aqueles que ninguém ambiciona ter como alunos (difíceis e desinteressados pela escola, pelos conteúdos…) … imagino que ela deva ter sentido muitas dificuldades e lhe tenha exigido muito esforço para pôr miúdos de rua a ler e a dramatizar livros eruditos… mas fê-lo por convicção de que «Os alunos merecem tudo, salvo a indiferença» (Steiner e Ladjali, 2005, 49). A isto eu chamo “vocação”!
Um abraço. Fátima
Confesso que faço minhas as palavras de VF. Só que a minha luta foi sempre entre leccionar e fazer investigação. Não é fácil a quem vai progredindo no saber confrontar-se, diariamente, com o cada vez mais baixo nível dos alunos... Até já a Worten (num anúncio da TV) faz uma caricatura do caso, ao mostrar um professor desalentado com o que lê nos testes dos alunos...
Virgílio Ferreira foi um escritor completamente absorvido com a sua obra e a sua missão nas letras. Percebe-se isso, sobretudo, nas suas Contas-Correntes.
Talvez tenha sido o nosso escritor-romancista-filósofo mais típico, mais que Eça, O.Martins, Antero, Raul Brandão ou qualquer outro, ouso dizer. De resto, estes mesmos seus companheiros de ofício muito entraram nas suas reflexões.
Com este perfil, eminentemente reflexivo, pensador, filosófico, natural seria que encarasse a profissão como algo que lhe roubava o precioso tempo para se dedicar em exclusivo à escrita, à sua obra. Tudo isto se retira dos seus Diários.
Como Professor não se lhe deve exigir que tenha sido exemplar e poderia, muitas vezes, não ter a paciência suficiente para aturar a variedade humana, de muitos alunos, moços irrequietos, muitos deles pouco interessados em aprender, mais voltados para outras ocupações do espírito típicas da adolescência, enfim, acho perfeitamente admissível que tenha tido as suas explosões de mau génio, como aquela que Medina Ribeiro relata.
Nada disso diminui a sua grandeza como escritor-pensador por excelência, a que deveria ser dada mais atenção no tempo presente, demasiado hedonista e fútil, que foge de pensar, como de uma maldição.
Trazê-lo, hoje, à lembrança dos portugueses, já é qualquer coisa, procurando despertar na mocidade o interesse pela sua obra e também pelo seu perfil cívico. Daí saudar este oportuno texto.
Não fui aluno de VF, mas, modestamente, como muitos outros, também o «adoptei» como Mestre, que é sempre mais que Professor.
Caros leitores, agradeço as vossas opiniões e informações. Gostaria de acrescentar a seguinte nota: vários escritores brilhantes foram professores a contra gosto e tiveram nas suas aulas atitudes relacionais que podemos não considerar muito correctas. No caso dos escritores referidos - Vergílio Ferreira e José Régio - diversos ex-alunos seus testemunham uma postura de distanciamento e incidentes como os que Carlos Medina Ribeiro e João Boaventura contam. No pólo oposto é geralmente recordado Sebastião da Gama, professor por opção, próximo dos alunos e, ao que sei, sempre amável. Se só considerarmos estes casos, ficamos com a ideia (errada) que a opção pelo ensino dita um certo tipo de relação pedagógica. Por outro, é bom não esquecer que estes dois factores são mais ou menos independentes da competência em termos de saber e de eficácia didáctica. Ou seja, entre outros cenários, podemos imaginar um professor que está na profissão por necessidade, mantém algum afastamento dos alunos, mas ensina de modo que os alunos aprendem o que se pretende que aprendam.
Eu subscrevo o comentário da Fátima. Considerar que todas as pessoas estão igualmente aptas a ensinar desde que tenham o conhecimento adequado da matéria e apliquem um conjunto de procedimentos (leia-se expor a matéria, aplicar TPC e testes) é de um reducionismo igualitarista inqualificável. É o maior erro do "modelo" de ensino "clássico" nascido da revolução industrial, cuja mentalidade pretendia que as pessoas são meras peças de uma engrenagem, ou pior ainda, produtos de uma linha de montagem, dos quais se espera um elevado nível de conformidade.
E vivam as "pseudo-ciências" como a psicologia, a pedagogia e a sociologia. Se não são feitas de teorias demonstráveis por fórmulas matemáticas e afins, pelo menos são o sinal que há quem se preocupe em perceber e manter uma discussão séria e produtiva sobre temas fundamentais para o desenvolvimento humano.
Houvera ter solução ao professor sem vocação?!
Nas minas de ouro, fora rico os que tem tesouro...
São crianças de atenção, para os que agem, coração.
Paraíso é levadoiro, o monjolo da tradição!
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