terça-feira, 28 de agosto de 2007

Religião, filosofia e argumentação

Sempre que, em qualquer post, há algo que tem a ver com a religião, chovem os comentários. É um tema popular. E é bom que as pessoas estejam dispostas a discutir abertamente a religião. Contudo, sinto-me sempre algo incomodado com isso.

Porquê? Porque uma das regras centrais da argumentação é a igualdade entre quem argumenta. Não pode haver verdadeira argumentação sobre a matemática dos fluidos entre um especialista na área e eu porque eu nada sei sobre tal coisa. Para eu poder discutir o que quer que seja com tal especialista, tenho primeiro de dominar a matemática dos fluidos, o que implica um estudo de alguns anos. Caso contrário, o tal matemático pode até ser um sacana que me está a enganar e eu não posso saber.

É por isso que nunca me sinto bem a discutir temas religiosos com as pessoas que desconhecem a filosofia: eu estou numa posição de vantagem porque conheço os argumentos a favor da existência de Deus, e respectivas objecções; conheço os pensadores que fazem desse tema o ponto central da sua investigação; e por isso, mesmo não sendo a filosofia da religião a minha especialidade em filosofia, estou numa situação de vantagem ilegítima relativamente aos crentes que procuram demolir as minhas ideias ateias e justificar as suas ideias religiosas. Por essa razão, irei abster-me de discutir aqui temas religiosos. Irei apenas oferecer indicações objectivas sobre as dificuldades deste ou daquele argumento, e falarei de questões metodológicas. Indicarei também bibliografia — se bem que tenho sempre a desagradável sensação de que a maior parte das pessoas quer apenas conversa de café amena sobre estes temas, e não estudar cuidadosamente nem que seja um livrito ou dois.

Para encerrar, vou responder ao leitor Bernardo Motta, que respondeu ao meu postSerá Razoável Acreditar em Deuses sem Provas?”, abandonando muito amavelmente o anonimato (a conversa até sabe melhor assim). Note-se também que o meu post não procurava argumentar directamente a favor do ateísmo, mas apenas apresentar uma questão metodológica geral, sobre a irrazoabilidade de acreditar em algo sem provas, mas a sua relativa inevitabilidade (porque somos humanos, demasiado humanos).

O Bernardo fala do seu axioma (a origem divina da revelação), mas a questão é precisamente saber se esse axioma é razoável ou verdadeiro. É irracional aceitar axiomas à balda, ou porque dão jeito, ou porque são verdes, apesar de ser uma cor bonita. Que razões há para pensar que há deuses, capazes de se revelarem? Serão boas? Melhores do que as razões para pensar que não há deuses capazes de tal coisa?

Protestou o Bernardo contra a ideia de haver muitos deuses e argumentou que não pode haver mais de um infinito. Isto não é estritamente verdade (há, de facto, mais de um infinito, e infinitos maiores uns do que outros), mas o mais incrível é a sua identificação do infinito com o seu Deus — ora, há muitas concepções de deuses, e nem todas proclamam que tais deuses são infinitos. Ao longo da história da humanidade a esmagadora maioria das comunidades era politeísta — e não estamos apenas a falar de comunidades pouco sofisticadas, mas de algumas das civilizações mais sofisticadas. Na verdade, todos os crentes são ateus em relação a uma imensidão de deuses — Vixnu, Zeus, Apolo, Ámon, Rá, Mitra, Baal, Tor, Wotan, etc. Só não são ateus em relação ao seu deus ou deuses.

Finalmente, serão os filósofos crentes tolos? Note-se que, ao contrário do que o Bernardo afirma, não são apenas os filósofos pré-cartesianos que eram crentes. Há filósofos crentes depois de Descartes (como Leibniz — e o próprio Descartes era católico); e há filósofos contemporâneos crentes, como Swinburne ou Plantinga, que desenvolveram argumentos extremamente sofisticados, hoje muito estudados.

Serão então tolos? Não. Penso apenas que estão enganados. Penso que os argumentos deles não funcionam e é por isso que sou ateu. Há muitos filósofos que dizem isso mesmo. Por isso não podemos limitar-nos a escolher as autoridades que nos apetecer, para basear nelas o nosso juízo; dado que as autoridades na matéria discordam, temos de pensar por nós próprios. Não podemos fazer como o Bernardo: escolhe os filósofos crentes, como Tomás de Aquino, e ignora tranquilamente os outros.

Escolher as autoridades que concordam connosco e ignorar as outras é um dos piores vícios intelectuais: é o mesmo que a supressão de provas. Se embarcarmos nesta prática, conseguimos provar tudo, incluindo que há Zeus e fadas e o Pai Natal. E este é o grande problema dos argumentos do Bernardo: limitam-se a escolher os dados favoráveis à sua crença, ignorando tudo o resto. Por exemplo, o Bernardo fala da autoridade das palavras de Jesus; mas todas as religiões tiveram os seus profetas, alguns tão historicamente reais como Jesus, como é o caso de Buda. Além disso, uma religião pode pura e simplesmente recusar como herética a ideia de que os seus deuses possam ter manifestações corpóreas, encarando tal exigência como um sinal de falta de fé da parte do crente. Na religião vale tudo porque estamos no domínio da arbitrariedade: é como escrever um romance; cada qual inventa o que lhe apetecer.

Por isso, insisto: não vejo mal em acreditar no deus cristão tal e qual como uma pessoa usa um microondas: desconhece os seus fundamentos e não sabe se não haverá uma maneira melhor de aquecer o leite. Apenas vai na onda, se me for permitido o trocadilho. Afinal, não podemos ser todos físicos, para saber mesmo como funcionam os microondas, nem podemos ser todos filósofos da religião, para saber como funcionam os argumentos a favor da existência de deuses e respectivas objecções. E do mesmo modo que eu não vou declarar que sei tudo sobre microondas, é avisado da parte dos crentes fazer o mesmo em relação à sua religião, e aceitar que acreditam nela unicamente porque lhes dá jeito, emocionalmente falando, porque foram educados dessa maneira, e porque escolheram arbitrariamente aceitar a autoridade uma dada seita cristã em vez de outra, cristã ou não. É razoável? Não. Mas os seres humanos nem sempre são tão razoáveis quanto é desejável que fossem.

Claro que há pessoas como o Bernardo que, com mais diligência intelectual do que a esmagadora maioria dos crentes, procura informar-se, estudando os filósofos especialistas na matéria. Isso é saudável.

Mas há algo de estranho na ideia de que o Bernardo estaria disposto a abandonar a crença em Deus caso verificasse que a balança da argumentação não pende a seu favor; isto porque é estranho pensar que uma pessoa é crente por ter boas razões para tal coisa. O próprio Bernardo, como a generalidade dos crentes, recusa desde logo esta ideia; e de facto a epistemologia da crença religiosa é bizarra precisamente por causa disso. O facto é que os crentes não são crentes por terem razões, mas antes porque tiveram experiências emocionais que os levam a ser crentes, ou porque nunca pensaram muito nisso e foram educados assim, ou por pura superstição. É por isso que tantos crentes declaram, e com alguma razão, que é inútil “esgrimir” argumentos sobre a existência de Deus. Esta perspectiva parece-me mais honesta e mais próxima do fenómeno religioso real; não acredito que o Bernardo seja crente por causa dos argumentos de Tomás de Aquino ou por causa de quaisquer outros argumentos históricos relativos à revelação divina ou a divindade de Jesus. Acho que ele primeiro é crente e só depois, por ser crente, aceita a divindade de Jesus, e a revelação e os argumentos de Tomás de Aquino.

Outra coisa diferente é a discussão filosófica sobre a existência de Deus. Mas isso é uma discussão académica como qualquer outra. Não me parece é que tenha o poder para fazer muitos crentes mudar de ideias, porque as pessoas acreditam geralmente em deuses por outros motivos que não as razões a favor ou contra. Se isso não fosse assim, o Bernardo não iria estudar apenas os filósofos que já sabe à partida que aceitam a existência de Deus. Quando uma pessoa quer saber se realmente é melhor mudar o óleo do carro quando o motor está quente, não vai procurar apenas quem afirma que realmente é melhor fazer isso — terá até tendência para procurar mais intensamente quem defende que não é bom fazer tal coisa. Procurar falsificar ideias faz parte da metodologia natural da procura da verdade. Quando procuramos apenas os filósofos que já concordam connosco quanto à existência de deuses, isso significa que não estamos realmente à procura da verdade, mas apenas a tentar racionalizar uma crença que nada tem originalmente de razoável.

Daí que o Bernardo baseie o seu comentário na ideia falsa de que os ateus são ateus porque são empiristas ou positivistas lógicos, mais ou menos como os cientistas têm tendência para ser. Se tivesse estudado algo da filosofia da religião contemporânea, ou da metafísica, saberia que isto é falso. Dificilmente se encontra hoje filósofos positivistas, e eu não sou um deles, mas no entanto muitos são ateus e apresentam os seus argumentos e ideias nas revistas académicas da especialidade. Nem eu nem a maior parte dos filósofos actuais recusa a metafísica — na verdade, eu dou aulas de metafísica, e a metafísica da modalidade é a minha área de especialização. Mas aceitar que nem tudo o que há tem localização espácio-temporal, como eu ou Russell ou tantos outros filósofos aceitam, não implica de modo algum aceitar que há deuses.

Para saber mais:

The Miracle of Theism: Arguments for and Against the Existence of God, de J. L. Mackie (introdução à filosofia da religião, muito claro mas sofisticado, por um filósofo ateu que discutiu muito, academicamente, com cristão Swinburne)

Será Que Deus Existe?, de Richard Swinburne (obra mais introdutória de um dos maiores filósofos da religião contemporâneos)

Philosophy of Religion: An Anthology, org. de Louis P. Pojman (excelente antologia que abrange praticamente todas as áreas de estudo da filosofia da religião clássica e contemporânea)

Diálogos sobre a Religião Natural, de David Hume (Edições 70, é um texto clássico mas que não perdeu actualidade e as notas e introdução de Álvaro Nunes são muito informativas)

64 comentários:

João Vasco disse...

«É por isso que nunca me sinto bem a discutir temas religiosos com as pessoas que desconhecem a filosofia: eu estou numa posição de vantagem porque conheço os argumentos a favor da existência de Deus, e respectivas objecções; conheço os pensadores que fazem desse tema o ponto central da sua investigação; e por isso, mesmo não sendo a filosofia da religião a minha especialidade em filosofia, estou numa situação de vantagem ilegítima relativamente aos crentes que procuram demolir as minhas ideias ateias e justificar as suas ideias religiosas. Por essa razão, irei abster-me de discutir aqui temas religiosos.»

Que pena :(


No entanto isso abafaria a discussão a respeito de qualquer tema filosófico.
Se o Desidério escrevesse sobre outro tema filosófico qualquer e os leitores não concordassem consigo, o Desidério - a ser coerente - não iria escrever mais sobre esse tema.

E isso iria empobrecer bastante este blogue.

Anónimo disse...

Nao me parece que a analogia com a mecanica dos fluidos (ou a fisica em geral) seja muito feliz.

A discussao de fisica requer conhecimentos tecnicos muito mais afastados da experiencia comum que so' sao possiveis de apreender apos um periodo de treino adequado.

Ao contrario, duvido que os argumentos a favor ou contra a existencia de Deus estejam fora do alcance do 'leigo' em filosofia ou que, de facto, exijam uma bagagem conceptual ou historico/filosofica. Mas pode ser que eu esteja a ser ingenuo...

A definicao do Deus cristao, criador omnipotente e fonte de todo o Bem e' incoerente. Muito rapidamente....

Observemos a Natureza e verifiquemos que existem as cadeias alimentares; observando a relacao de predador e presa verificamos que a vida natural (supostamente criacao de Deus) implica intrinsecamente a existencia de enorme sofrimento. Isto contradiz a ideia de um Deus bom e fonte de todo o Bem. Pelo contrario, implica um Deus que teria criado um mundo no qual o sofrimento mais cruel e' constitutivo e inevitavel. Note-se que isto e' totalmente independente da questao do livre arbitrio.


Para quem considera a separacao absoluta entre humanos e outros seres vivos como necessaria na avaliacao das questoes da existencia do sofrimento (com que argumenta justificar tal distincao?): resta a oservacao evidente de que um Deus omnisciente e bom poderia ter criado um universo em que logicamente o livre arbitrio e o bem nao seriam incompativeis; desse modo evitaria o sofrimento resultante de guerras e outras violencias. Se isso nao e' possivel, entao e' porque existem constrangimentos (seja de que tipo forem) que contradizem a omnipotencia de Deus. Se e' possivel por omnisciencia, entao nao e' 'Bom'.

E' necessario um argumento mais sofisticado do que este?

Anónimo disse...

ERRATA: se e' possivel por OMNIPOTENCIA, entao e' 'Bom'.

Anónimo disse...

ERRATA: se e' possivel por OMNIPOTENCIA, entao nao e' 'Bom'.

(as minhas desculpas por esta dupla errata; a errata das 15:32 fica sem efeito)

Anónimo disse...

Meu Caro Desidério
E que tal se eu lhe disser que também estudei filosofia das religiões? E a história das religiões mais importantes? E a Bíblia? E teologia e teodiceia? E que também tenho cabeça para pensar? (Penso eu...)

Anónimo disse...

Caro Professor:
agora que gostei de discutir consigo não quero outra coisa!

É importante esclarecer as pessoas que a filosofia da religão é um tema para ser discutido é necessário ter-se adquirido conhecimentos de metafísica.
Torna-se ridículo discutir um tema quando se ignora a terminologia e as teorias clássicas, julgando-se que como é um tema que interessa a toda a gente, qualquer trivialidade é suficiente.

Há um passo metodológico fundamental para se discutir filosofia da religião: suspender as nossas crenças. Se discuto religião com um padre, dou por mim a discutir problemas internos da Igreja, os dogmas do cristianismo e estou a fugir ao tema fundamental da filosofia da religão. Parece-me que os posts do Professor têm sido incompreendidos porque alguns crentes se vêem ameaçados, quando reflectir sobre o que quer que seja pressupõe essa suspensão temporaria das crenças, um distanciamento em relação às nossas convicções.

O meu percurso pessoal:
Incrivelmente não fui levado a interessar-me por filosofia da religião pelo "Unum Argumentum" de S. Anselmo, mas pelo argumento de Tertuliano.
O argumento de Tertuliano diz que "Creio em Deus, porque é absurdo". Isto é, tenho fé, sou crente, porque é logicamente impossível justificar a minha fé e a minha crença. Foi a partir desta constatação (corrija-me se a interpretação estiver errada) que comecei a interessar-me pelo problema de Deus, sobretudo para mostrar que Tertuliano não tem razão. Se creio em Deus e não estiver interessado em saber se a minha crença pode ser justificada, então o Paraíso que me salve. Mas se creio em Deus e quero perceber se a minha crença é justificável, então estou a querer tomar uma atitude racional perante as crenças que constituem a minha vida prática, compromentendo-me com a verdade. Qualquer argumento a favor ou contra a existência de Deus é legítimo desde que o seu autor tenha suspendido a sua crença, para avaliá-la criticamente.

Por todas estas razões, não quis intervir nas discussões levantadas pelos posts sobre a religão, quando muitos participantes partem confundem a discussão teorética sobre existência de Deus e um ataque às suas convicções. Por isso, defendo o seguinte: alguém que se sente melindrado com alguns argumentos, julgando que estão a colidir com as suas crenças, não quer saber de discussao teorética sobre Deus para nada.

Uma história em jeito de provocação:
Há uns anos foi convidado para um programa televisivo, "Travessa do Cotovelo" um filósofo chamado Orlando Vitorino. Nesse programa havia uma tia de Cascais que achava que podia discutir tudo e mais alguma coisa, até mesmo os problemas filosóficos trazidos à discussão eram de fácil resolução para ela. Ora, foi confrontada com a constatação feita pelo filosofo de que não pensava. Ela ficou chocada e eu como formado em Filosofia ficou igualmente chocado. Pensei, pensei e voltei a pensar no que aquele arrogante queria dizer com isso. E a verdade é que começo a dar-lhe razão. Todos nós pensamos, isso é indiscutivel, mas nem todos pensamos da mesma maneira. A matemática e a filosofia ensinam-nos a usar correctamente o nosso pensamento. POr isso, eu que não sou matemático nem filosofo, admiro os matematicos e os filosofos. E não caio na tentação de que, pelo facto de me interessar pelos mesmos temas que eles, poderei ser tão bom quanto eles. Isso é que é arrogância, pensarmos que estamos ao nível dos especialistas num dado problema.

Wittgenstein tinha razão: aquilo sobre o qual não se pode dizer, temos de nos calar (citação livre). Onde a linguagem falha, falhará também a realidade enunciada. Assim, quem não tem argumentos, não conhece a realidade e a unica solução é ouvir quem domina a linguagem, porque este domina a realidade.

Um abraço a todos
João Vieira

Fernando Dias disse...

Caro Desidério,

Partindo do princípio que é impossível termos um fundamento último de seja o que for, inclusivé da razão, não será que o não funcionamento de certos argumentos à luz da nossa razão, não passam de mera subjectividade, mesmo tratando-se da razão? Da mesma maneira que eu digo que não gosto de morangos e ningém me poderá rebater, a não ser que devo estar parvo.

O Pai Natal como realidade linguística existe e é logicamente coerente a sua existência mesmo para dizer que é falso no mundo concreto.

Deus ou Deuses como entidade poética também existe não só em Homero mas nos poemas de muitos poetas que dizem ser ateus. A existência de Deus no domínio de muitos poemas não só faz sentido como é coerente.

Se não houver fundamentos ou fundações (quem poderá desempatar isto?), fará sentido traçar fronteiras entre metafísica e poesia acerca de questões como divino, sagrado, deus e coisas do género?

Aproveito a almofada de Wittgenstein, que foi citada pelo comentador precedente “sobre aquilo que não temos palavras para falar temos que calar” para sublinhar a minha ideia : sobre aquele domínio, se não quisermos ser fundamentalistas, só podemos ter opiniões, porque não há argumentos lógicos que possam ter alguma razoabilidade à luz da razão.

Anónimo disse...

Caro F. Dias:

«O Pai Natal como realidade linguística existe e é logicamente coerente a sua existência mesmo para dizer que é falso no mundo concreto.»

A citação livre de Wittgenstein pode dar-lhe razão se não for feito o seguinte esclarecimento.
Witt. refere-se às proposições. Pai Natal existe enquanto realidade linguística, mas se afirmar que: "O Pai Natal comeu morangos e gostou." Esta proposição não ter qualquer relação com a realidade. Logo, é falsa.

E já agora outra colherada, embora não tenha sido endereçada a mim. A um fundamentalista basta-lhe as opiniões, sem as sujeitar a uma análise crítica. Os argumentos não são eivados de subjectividade, porque se estivessem deixariam de ser argumentos. Num poema não há argumentos, apenas impressões, e um poeta não necessita de provar a verdade de um verso onde diz "O mito é o nada que é tudo". POr isso é que a filosofia pode ser fascinante, lermos argumentos a favor ou contra a existencia de Deus e a paciência de um filósofo para evitar, ao apresentar os seus argumentos, entrar em contradição e resolver os seus problemas de emotivismo.
Daí que a filosofia é como a matemática e precisa da matemática. Lembremo-nos do célebre dístico à entrada da escola de Platão: "Não entre aqui quem não for geometra".

Confiando na poesia, não posso enfrentar o mundo em função da verdade, mesmo que ache brilhantes os versos de Torga. O termo "Deus" num poema ou num argumento são usados com intenções diferentes. Os poetas também falam do infinito, mas terão de se prostrar diante das provas matemáticas.

Fernando Dias disse...

Em relação aos fundamentos queria dizer que é baseado em algumas coisas que tenho lido opinando não fazer sentido a existência de fundamentos nem fundações da razão pura, a partir de Kant. Confesso que simpatizei com esta ideia. Outra coisa é o niilismo.

O equívoco dos niilistas foi o niilismo ter sido a alternativa ao subjectivismo e ao objectivismo pela negativa. Ora, o niilismo é filho do objectivismo. Quando o objectivismo deixou de ter fundamento, surgiram os niilistas que entraram e pânico e cairam no erro de criar outro fundamento, o fundamento do nada. Foi um fundamento como abismo do objectivismo e não outra coisa por direito próprio. E é nisso que muitos vivem hoje, na angústia do abismo.

Pensando bem, parece não haver sentido para um fundamento último ou um absoluto. Não faz sentido a perda de algo que nunca se teve. Portanto, a cura, não deve consistir nem na procura de um novo fundamento, nem no regresso às crenças antigas, mas sim num desapego total a qualquer verdade última e definitiva.

Esta terapêutica parece-me boa, não só para desapego ao nosso ego-self e a qualquer idolatria, mas parece também um bom remédio para a arrogância intelectual (não me lembra de a ver hoje), que afinal não serve para nada.

Assim, o que dizemos é colocado à consciência dos outros, e venha a porrada se tiver de vir, de preferência da boa. Alguns são capazes de concordar, outros de modo nenhum, e outros talvez sim e talvez não. Claro que tenho de me esforçar para não ficar fixado a nenhuma ideia fundamentalista. É a vida!

Marco Oliveira disse...

Desidério,
Deus é matéria de fé; não é um objecto de estudo da ciência. Já a religião, essa sim, pode e deve ser objecto de estudo da ciência.

Se quiser que Deus seja matéria de análise científica, não se queixe dos criacionistas que exigem que a ciência seja objecto de validação religiosa.
:-)

Desidério Murcho disse...

Caríssimos leitores

Obrigado pelos vossos comentários. Eu não queria dizer que deixarei de escrever sobre X ou Y, mas apenas que deixarei de discutir nas caixas de comentários sobre tais temas quando obviamente eu sei mais do que essas pessoas. Isso coloca-as em desvantagem e não é justo.

O que farei é apresentar, na medida do possível, orientações que ajudem as pessoas a formar a sua própria opinião informada. E terei sempre gosto em ajudar no que for possível, dando indicações bibliográficas ou esclarecendo as coisas.

A propósito: o leitor MP-S apresenta um argumento interessante sobre aquilo a que se chama na bibliografia "o problema do mal". As leituras que indiquei no post incluem, todas, este problema.

O que não faz grande sentido é eu pôr-me agora a discutir as ideias do MP-S, pelas razões que expus no post. Acho que os meus leitores devem discutir entre si, e os argumentos do MP-S são interessantes e merecem ser discutidos calmamente aqui. Eu poderei fazer uma ou outra intervenção se achar que pode ser objectivamente esclarecedora. Mas a minha intervenção a qualquer outro nível seria injusta. Por exemplo, apesar de eu defender que o argumento do mal é um argumento definitivo contra a existência do deus teísta, consigo derrotar o argumento de MP-S, pois tal como está é vulnerável a muitas objecções.

O MP-S afirma que a minha analogia não é boa porque os argumentos da área não podem ser assim tão complexos quanto os da física. Esta afirmação significa que desconhece obviamente a bibliografia da área. Não fique melindrado! Todos somos ignorantes em muitas coisas.

Posso garantir-lhe que os argumentos modais de Plantinga a favor da existência de Deus, por exemplo, são insusceptíveis de serem compreendidos sem dominar a lógica modal, o que por sua vez implica dominar primeiro a lógica clássica (a lógica proposicional e de predicados), coisa que a generalidade da população ignora.

Repare-se: não estou a dizer que as pessoas só devem discutir estes assuntos depois de terem estudado a bibliografia relevante. Pelo contrário, acho que devem começar a discuti-los antes, pois tal discussão é um excelente estímulo para depois conhecer tal bibliografia. Tudo o que eu estou a dizer é que não é justo uma pessoa que conhece melhor a área pôr-se a discutir um tema com alguém que o desconhece quase completamente. A atitude correcta é a de ajudar e esclarecer as pessoas, para que elas formem a sua própria opinião. Depois de terem estudado, poderemos então discutir de igual para igual, quando eu não estiver já em vantagem.

Uma última palavra de agradecimento ao João e ao Daniel, e este esclarecimento: não pretendi afirmar que só eu conheço a bibliografia relevante da área. Apenas quis dizer que é injusto eu discutir com quem obviamente não a conhece. O meu papel aqui é divulgar a filosofia, e não encetar discussões filosóficas profissionais; há lugares adequados para tais discussões, que são as revistas da especialidade.

Anónimo disse...

Posso estar enganado, mas parece-me que o Desidério também tem uma visão muito restrita do que é, ou deve ser, a discussão filosófica acerca de Deus ou da crença religiosa. Parece-me que todo o seu discurso ateu anda à volta das provas e dos argumentos àcerca da existência de Deus, quando a abordagem do fenómeno religioso não se reduz a esse tipo de análise. Aliás, desde Kant que este tipo de discussão está esgotada. Querer provar a existência ou a não existência de Deus é uma tarefa condenada ao fracasso, porque se Deus não existe então é impossivel provar essa inexistência, e se existe também é impossível apresentar qualquer prova dessa existência pois Deus não é, por definição, nenhum fenómeno físico ou natural. Daí que, depois da critica kantiana às provas da existência de Deus, a abordagem da crença religiosa tenha seguido outros caminhos. Caminhos esses que o Desidério parece (querer)ignorar. Sofrerá, também, o Desidério dos piores vícios intelectuais de que acusa outros? Do que eu estou a falar é das perspectivas de Feuerbach, Marx, Nietzsche ou Freud, que procuraram explicar as razões para a crença religiosa na história, cultura, na vida. Daí que a pergunta que o Desidério coloca acerca da razoabilidade ou não da crença religiosa seja uma pergunta que não atinge a essência do fenómeno religioso. Esquece-se do fundamental.
Penso que só através deste tipo de análises é que é possivel fundamentar uma posição ateísta, pois a via das provas apenas permite que se afirme uma posição agnóstica. Até porque o ateísmo mais do que uma posição teórica caracteriza-se por ser uma atitude, perante a vida e o sentido da vida. Isto mesmo verifica-se em Sartre, para quem só se é livre se Deus não existir. Assim, quem tem uma perspectiva meramente teórica da questão de Deus, e procura demonstrar a sua inexistência ou as falácias dos argumentos a favor da sua existência, nunca pode afirmar o seu ateísmo como algo de certo. Se os argumentos dos crentes não funcionam, isso não quer dizer que Deus não existe. Desta forma, o Desidério só se pode assumir como agnóstico. Porque ter-se-ia que remeter ao silêncio de quem não tem qualquer prova para mostrar que Deus não existe. É nessa medida que este tipo de ateísmo baseado na ausência de provas é, também, uma espécie de fé, pois não se sabe se Deus existe, mas apesar disso tem-se a certeza de que ele não existe.

Anónimo disse...

A maior autoridade sobre se Deus existe é o próprio Deus. Não existe qualquer autoridade acima d'Ele. Era o que faltava.

Onde estavam Socrates, Platão, Aristóles, Nietzsche ou Heidegger quando Deus criou o mundo?

Deus revela-se pela criação (que não pode ser explicada sem ele) e pela Sua palavra (que pode ser confirmada).

Não podem ser os filósofos a decidir uma questão tão importante como a de saber se Deus existe ou não.

Que sabem eles?

Eles são seres limitados e decaídos. Nascidos em pecado, como todos nós, têm a tendência humana de fugir de Deus e de tentar ignorá-lo.

A fé em Deus é um dom que Ele nos dá. No entanto, não é uma fé cega. Ela apoia-se em muitas evidências.

A Bíblia tem sido o livro mais sujeito à crítica ao longo da história e mais resistente a ela.

Os ateus têm que postular que o Universo surgiu por acaso a partir do nada, pela fé.

Eles têm que supor que a vida surgiu por acaso a partir de químicos inorgânicos, sem qualquer evidência nesse sentido.

Por outro lado, eles têm que supor que a linguagem e a consciência são o resultado de uma evolução aleatória, sem que exista qualquer prova disso mesmo.

Os ateus são levados a fazer muitas afirmações positivas de uma fé que simplesmente não conseguem corroborar.

Diferentemente, a Bíblia diz que o Universo e a Vida foram criados por Deus, o que é inteiramente consistente com a sintonia do Universo para a vida e com a extrema complexidade e miniaturização do DNA.

A fé dos ateus é cega.

Jesus disse: "Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará em trevas mas terá a luz da vida."

Anónimo disse...

Este último comentário faz-me recordar a refutação da ida daqueles moços norte-americanos à Lua pela Sociedade da Terra Plana. Como as fotos tiradas da Terra na Lua a apresentam esférica, o homem nunca esteve na Lua porque a Terra é plana (segundo a tal Socieadade), sendo tudo uma falsificação da NASA e do governo dos EUA. Genial não?

Cristina Melo disse...

O autor do post, Desidério Murcho faz proveito de "método etnológicos" do "relativismo cultural" e, ainda bem que há quem compreenda na profundidade e o aplique no dia a-dia e lhe seja útil.
Não seria incomum uma dada tribo, de povos "atrasados" ou ditos "primitivos" denominar-se a si próprios de "Nós os Homens" e, por vezes, os outros que não pertencem ao mesmo grupo de "ovos de piolho", por exemplo.
Os cientistas sociais brasileiros queixam-se que a igreja católica referir-se as outras "religiões" de "atrasadas" e eles próprios dizem que a própria religião católica está muito ligada aquilo que chamam "atrasado" (/magia).
Fiquei até a saber que os padres católicos fazem uso de ferramentas antropológicas como a leitura de Malinowski, designam a "sua" antropologia de "cristã" e, por muito simples que pareça, não conseguem atingir "abstração" suficiente que os leve a compreender os conceitos de relatividade, embora os enumerem ou referenciem, por exemplo um padre católico no fim de mencionar que os "outros" têm actualmente o direito à sua religião, contudo as caricaturas de Maomé seriam por exemplo "uma caricatura da caricatura", que diriam eles quando o papa João Paulo II foi caricaturado, uma "caricatura da caricatura " ?
Bem, os conceitos de "relatividade" podem causar uma revolução individual ou nem sempre, por vezes não são atingidos simplesmente, por muito que custe saber, não mexem uma palha na psicologia das pessoas.

Mas, fico feliz que alguém simplesmente os tome na sua acepção verdadeira e não faça uso abusivo deles.Já era suficientemente positivo, o resto é bastante esquisito, saber que, por muito simples que sejam, algumas pessoas não consigam chegar a abstrações tais, embora as nomeiem, o que ainda é mais esquisito para mim.

Anónimo disse...

Caro ANÓNIMO:

O sr. defende o seguinte:

«Eles [os filósofos] são seres limitados e decaídos. Nascidos em pecado, como todos nós, têm a tendência humana de fugir de Deus e de tentar ignorá-lo.»

Vou assumir que Deus criou o Mundo, o Homem e todas as coisas entre a terra e o céu. Assumo tambem que o ser humano é um ser decaído, expulso por Deus do Paraíso. Vamos assumir todos os dogmas e mais alguns da Revelação de Deus na Bíblia, ou seja, da Revelação de Deus ao Homem.

Agora explique-me, despindo-se do discurso formatado, por que razão haveria de Deus, que é por natureza uma substância com todos os atributos, é "ens realissimum", logo é, Perfeição, não conseguiu convencer as suas criaturas? Repare num quadro, nunca esse quadro vai duvidar do artista que o criou. Entao, por que razão Deus criou seres racionais, conscientes, problematizadores, ávidos de descodificar os enigmas em que estão mergulhados, sim os enigmas, ou o sr. não tem dúvidas, nunca se questiona?

Se Deus fosse perfeito (e não vou entrar no problema do mal), para quê dar-se ao trabalho de criar seres que iriam desconfiar da sua existência? Se Deus fosse perfeito, para quê tanto heterónimo seu nas diferentes religioes, havendo ate religioes que sao ateias (como o Budismo)?
Gostaria que me explicasse este ponto muito elementar, porque se mo explicar, então tem toda a legitimidade para defender o que afirmou e para eu pensar que é possível discutir consigo.

João Vieira

Anónimo disse...

Caro João Vieira

Não resisto a dizer-lhe que "os caminhos do Senhor são insondáveis"... porque há coisas que é mesmo de pescadinha de rabo na boca (tipo disco de vinil riscado).

Anónimo disse...

Caro Professor,

com esta atitude está a desiludir TAMBÉM todos os interessados em discutir filosoficamente estas questões, não lhe parece?
Quem for leitor assíduo dos seus posts, que certamente reconhece o seu valor filosófico, pensará que afinal o Professor fez da filosofia uma conversa sobre futebol. "Eu sou treinador, sei mais do que os adeptos, por isso, não comentar as suas declarações."

Saudações
João Vieira

Anónimo disse...

Kyriu, eu estava até para assumir esse princípio enquanto redigia o comentário, mas se o fizesse nunca mais poderia discutir.
Por isso sou ateu, o discurso religioso foi inteligentemente elaborado para evitar a discussão. Então, se nada pode ser discutido, a religão, enquanto fenómeno, deveria permanecer identica a si mesma e evitar a mudança. Os historiadores das religiões dizem que a primeira forma de religiosidade foi o totemismo, entao, se deus se revelou sob a forma de totem, deveriamos ainda ser totemistas.
Obrigado
João Vieira

Anónimo disse...

João

Eu não me fiz perceber (e a culpa é minha). O comentário tinha um tom irónico porque, infelizmente, o tipo de argumentos colocados pelo anónimo-anónimo são mesmo desse tipo, pescadinha de rabo na boca (doutra forma: é um dos argumentos que estou à espera que sejam apresentados, mais cedo ou mais tarde). E isso mina todo o desejo de discutir racionalmente com essas pessoas.

Resumindo-me, acho que se pode discutir tudo, não é é com todas as pessoas. Não porque não se possa de facto mas porque não há paciência. E sim, também não acredito em seres sobrenaturais. Não preciso disso para amparar o meu andar por um mundo cheio de factos (ainda) incompreensíveis.

Anónimo disse...

Kyriu, tem toda a razão, e é por isso que o Desiderio está a tomar esta atitude totalmente legítima. Embora eu a lamente, porque quem conhece, tem o direito de as divulgar a quem as queira conhecer. Se há pessoas que violam esse direito, então porque não se satisfazem com os livros de Walsh e as conversa com deus?

Desconheço as razões que fazem com que alguem que tenha certezas absolutas, queira discutir. Se eu tenho a certeza absoluta que o S.C.P vai ganhar o proximo jogo, não me vou dar ao trabalho de discutir! Posso é querer impor a minha certeza aos outros, mas isso não é discussao, nem é exemplo de tolerancia intelectual.

Saudações
João Vieira

Espectadores disse...

Caríssimo Desidério,

Fico muito grato pelo facto de dedicar tempo a responder-me. Eu sei o que tempo custa a mim, e imagino o que custará aos outros. Fico também satisfeito por notar que não estou aqui apenas para "conversa de café". Nos cafés, falo normalmente de outros temas mais mundanos.

Mas há algumas coisas que quero já protestar, coisas gerais, sendo certo que deixarei uma resposta cuidada a este seu post cuidado para mais tarde, no meu blogue.

Em primeiro lugar, não é justo afirmar que eu comentei inicialmente em anonimato. Quem me conhece destas andanças sabe bem que não uso disso. Assino sempre. A assinatura do meu comentário inicial era "Espectadores" só pela razão de que a ferramenta Blogger pede-nos o login google, e eu tenho um blogue chamado Espectadores, e é por isso que a assinatura era "Espectadores".

A assinatura era também um link, pelo que seguindo o mesmo, constatava-se quem eu era.

Mas, tendo notado que me chamava de "Espectadores", decidi assinar explicitamente no segundo comentário.

Como imagina, procurando eu a seriedade, não considero que seja justa a relação entre a sua pessoa, que assina com nome real, com comentadores anónimos.

Dou sempre a cara por aquilo que digo e escrevo.

Adiante...

A certa altura, diz:

"Note-se que, ao contrário do que o Bernardo afirma, não são apenas os filósofos pré-cartesianos que eram crentes. Há filósofos crentes depois de Descartes (como Leibniz — e o próprio Descartes era católico);"

Isto perturba-me, porque creio não ter escrito tal asneira. Terei feito uma generalização? Tenho que regressar ao comentário. Mas não partilho de todo da ideia absurda de que nunca mais houve filósofos crentes depois de Descartes. Perturba-me que pudesse pensar que eu afirmaria tamanha asneira, mas enfim, não me conhece tão bem como eu o conheço, porque tenho a vantagem de ter lido mais textos seus do que o Desidério terá lido textos meus.

«e há filósofos contemporâneos crentes, como Swinburne ou Plantinga, que desenvolveram argumentos extremamente sofisticados, hoje muito estudados.»

Perturba-me também a presunção da ignorância do interlocutor. Calha que tenho, na minha mesa de cabeceia, umas dezenas de páginas impressas do site da Stanford, acerca dos Argumentos Ontológicos. Quando tenho algum tempo, gosto de os folhear. E já tinha lido os argumentos de Plantinga. Confesso que se trata de argumentação pesada, e não me presumo em condições de a considerar válida ou não. Mas é suficiente dizer que sei que existe.

Já ao ler o seu post fico com a noção (talvez também injusta) de que conhece mal as restantes religiões, bem como parece estar pouco familiarizado com o conceito metafísico de Infinito, como sendo aquilo que, realmente, não tem fim.

Ora um conceito definido, assim que se define, tem como limite essa mesma definição.

O infinito matemático tem como limite o facto de que pertence ao domínio da matemática.

E nem vale a pena falar dos transfinitos de Cantor, porque são realidades puramente matemáticas, e por isso mesmo, circunscritas a esse domínio.

Por essa razão, todos os "infinitos" de que fala são "pseudo-infinitos", um pouco como o "infinitum secundum quid" dos escolásticos.

Porque Infinito é aquilo que não tem qualquer qualificação. Em sânscrito, usa-se para Brahma (o Infinito) o adjectivo de "nirguna" (sem qualificação) ou "nirvishesha" (sem distinção).

Já a Ishvara, imagem de Brahma no domínio da Ontologia, ou seja, o Ser supremo (Brahma é o Ser e o Não-Ser), aplicam-se os adjectivos de "saguna" (qualificado) ou "savishesha" (distinto).

O hinduísmo, ao contrário do que é propagandeado pelos "estudiosos das religiões" no Ocidente, não é politeísta em termos de doutrina. Sê-lo-à nos meios populares. Mas qualquer brâmane pode confirmar-lhe o que eu disse.

Se o Infinito é aquilo que não tem qualquer qualificação, então só se pode aplicar tal termo a Brahma.

Aliás, note-se a espantosa coincidência de que grandes teólogos ocidentais como São Tomás chegam, a este aspecto, à mesma forma de definir o conceito de Deus usando "teologia negativa", que é usada por autoridades como Çankara.

Mas gostaria de comentar o seu post com mais tempo, e agora tenho que me ir embora. Peço-lhe apenas a paciência de aguardar por uma resposta, ponto a ponto ao seu texto.

Cumprimentos,

Bernardo Motta

João Vasco disse...

Meter um autocarro de dois andares frente à baliza é batota?

Quando alguém estiver a debater comigo, eu posso sempre ignorar os seus argumentos, que podem ser mais ou menos brilhantes, mais ou menos sensatos, e simplesmente repetir "ele não tem razão, ele não tem razão".

Se o fizer, posso não "perder" nenhuma discussão, mas não aprenderei nada. Seria simplesmente um estúpido.

Felizmente, ao contrário daquilo que alguns podem afirmar, nem todos os crentes são assim.
E alguns ficam mensmo a pensar nos argumentos que lhes são apresentados. Alguns deles questionam e acabam por abandonar a sua fé - eu fi-lo, e outras pessoas com quem já debati (entretanto já como ateu) também o fizeram.

Anónimo disse...

Ao crente basta ter paciência e saber esperar ?

Será porventura o caso dos católicos e protestantes franceses, porque o massacre da noite de São Bartolomeu foi só um "episódio" ?

Ou então os irlandeses ?

Anónimo disse...

Porque ambas as facções cristãs se degladiaram em nome da "fé" num mesmo "cristo" ...

Anónimo disse...

Caro Desiderio,

primeiro um esclarecimento: o meu argumento nao pretendia demonstrar a nao-existencia de Deus; apenas pretende demonstrar que nao e' possivel a existencia de um Deus com as seguintes duas qualidades 1) omnipotencia; 2) Bondade; mais a premissa 3) o mundo que experimentamos (em particular, o sofrimento e a dor) sao experiencias reais e nao sao uma ilusao.

E' a validade simultanea de 1), 2) e 3) que eu afirmo ser impossivel de satisfazer; nao exclui qualquer das possiveis combinacoes: 1) e 2); 2) e 3); ou 1) e 3).

A minha interpretacao 'psicologica' e' que os crentes geralmente prescindem da hipotese 3): encaram o mundo em que vivemos - a dor e o sofrimento, em particular - como sendo, pelo menos parcialmente, ilusoes. A partir dai', tudo e' possivel, entramos no reino da arbitrariedade e a discussao torna-se preaticamente impossivel.

Nao percebo nada de logica modal, nem tinha ouvido falar antes do PLantinga. Sem melindres, e' evidente! Consultei a pagina 'ontological argument' na Wikipedia onde se descreve sumariamente o argumento do Plantinga. Assumindo que a descricao esta' bem feita: o argumento assume que e' possivel a existencia de um ser com "maximal excellence" - um ser com omnipotencia, omnisciencia e totalmente bom. Julgo que o meu argumento implica que apenas assumindo que o sofrimento e a dor sao, no minimo, parcialmente ilusoes e' possivel aceitar esta premissa. E', por isso, uma premissa demasiado 'cara': tenho de abdicar de todo o meu conhecimento mais precioso para aceitar a premissa do argumento. Acho que a premissa de que a dor e o sofrimento sao reais e' mais plausivel do que a premissa da existencia do ser de maxima excelencia.

Argumento adicional: suspeito sempre de raciocinios que empregam definicoes nao construtivas; por exemplo, assumir a existencia de um ser de maxima excelencia sem explicitar a forma como pode ser 'construido'.

Anónimo disse...

Caro António Parente,

Se ao crente basta ter paciência e saber esperar [sic], a cidade de Constantinopla/Istambul talvez ainda volte a ser cristã ...

Anónimo disse...

A discussão nestes moldes é absolutamente caótica. Do problema de Deus em si, passou-se de imediato para o problema do Deus da religião. Outras perversões de conceitos são evidentes, tornando impossível um debate sério. O próprio Desidério parece laborar numa certa confusão entre infinito e ilimitado, entre essência e multiplicidade. (O pão tem uma essência como pão, mas são múltiplas as essências que o constituem: a farinha, o fermento, a água, o sal... E cada um destes constituintes tem igualmente essências várias, como o hidrogénio e o oxigénio, o cloro e o sódio, etc..) Numa discussão filosófica sobre a existência de Deus não cabe a teorização dos seus atributos. Tomás de Aquino distingue bem entre a “necessidade” de um primeiro motor, por exemplo, e a essência desse primeiro motor; isso fará parte do desenvolvimento teológico da “Suma”. Entrou-se também pelo menos na aproximação ao problema do livre arbítrio, o que levaria a uma longa especulação. Ter-se-ia de considerar não apenas o livre arbítrio em Deus mas na própria criação, o que é um problema que só pode resultar da aceitação da existência de Deus, que era o que aqui estava em causa.
No meio de tudo isto, surgem sempre os argumentos falaciosos, mais retóricos do que lógicos. E há essa outra confusão entre absurdo e ilógico, claro. Muita água para tão estreitas margens, como são as do blog.

Anónimo disse...

Caro Daniel

Teremos então dois problemas:

1 - Há Deus?
2 - Que tipo de Deus é?

No entanto... Como é que se decide se há algo se não se parte daquilo que é?

Anónimo disse...

Esse é o problema, meu Caro Kyriu. Para discutir a hipótese "Deus" tem de se partir do pressuposto "Deus", tal como, para tentar decifrar o mistério do Yeti, tem de se partir do conceito de Yeti. Não se deve é partir com o pressuposto de que existe(m) ou não existe(m), sob pena de o preconceito fazer falhar o sentido da busca. Se eu tomo uma posição a favor ou contra, terei tendência a valorizar os argumentos que sustentem a minha posição. Por isso, em Teodiceia, Deus fica do lado de fora da porta.
Quanto ao tipo de Deus, tudo se complica. Aí é campo absoluto da fé, seja ela qual for. Embora a filosofia ajude a chegar a uma aproximação, que provavelmente nunca terá muito que ver com a realidade ontológica.

Cristina Melo disse...

Já agora aproveito para fazer a pergunta que não posso fazer a Susan Neiman, uma vez que Desidério Murcho também possa talvez responder à minha pergunta, que é muito simples.

Não me recordo se foi na entrevista aSusan Neiman na Tsf, se foi no primeiro capítulo de "Evil in Modern Tought ", Susan Neiman disse/escreveu algo como Deus não é uma questão filosófica.
Que queria dizer Bertrand Russel com a metáfora do Bule a flutuar no espaço, o argumento que Richard Dawkins refere em "The God Delusion"


Da Wikipedia:

“ If I were to suggest that between the Earth and Mars there is a china teapot revolving about the sun in an elliptical orbit, nobody would be able to disprove my assertion provided I were careful to add that the teapot is too small to be revealed even by our most powerful telescopes. But if I were to go on to say that, since my assertion cannot be disproved, it is an intolerable presumption on the part of human reason to doubt it, I should rightly be thought to be talking nonsense. If, however, the existence of such a teapot were affirmed in ancient books, taught as the sacred truth every Sunday, and instilled into the minds of children at school, hesitation to believe in its existence would become a mark of eccentricity and entitle the doubter to the attentions of the psychiatrist in an enlightened age or of the Inquisitor in an earlier time. ”

In his book A Devil's Chaplain, Richard Dawkins developed the teapot theme a little further:

“ The reason organized religion merits outright hostility is that, unlike belief in Russell's teapot, religion is powerful, influential, tax-exempt and systematically passed on to children too young to defend themselves. Children are not compelled to spend their formative years memorizing loony books about teapots. Government-subsidized schools don't exclude children whose parents prefer the wrong shape of teapot. Teapot-believers don't stone teapot-unbelievers, teapot-apostates, teapot-heretics and teapot-blasphemers to death. Mothers don't warn their sons off marrying teapot-shiksas whose parents believe in three teapots rather than one. People who put the milk in first don't kneecap those who put the tea in first. ”

The concept of Russell's teapot has been extrapolated into humorous, more explicitly religion-parodying forms such as the Invisible Pink Unicorn[2] and the Flying Spaghetti Monster.[3]

(http://en.wikipedia.org/wiki/Russell's_teapot)
Da mesma maneira que Sartre não era considerado um filósofo, por uma filosofia realista racionalista ?

Não sei pôr a questão de outra maneira.
Existe já de si algo que não é "objectivo" na tentativa de provar a existência de Deus, por isso a ciência é ciência e a religião é religião, o pior é começar-se a confundir tudo ?

Unknown disse...

Esta torceu-me os neurónios:

. Para discutir a hipótese "Deus" tem de se partir do pressuposto "Deus", tal como, para tentar decifrar o mistério do Yeti, tem de se partir do conceito de Yeti. Não se deve é partir com o pressuposto de que existe(m) ou não existe(m), sob pena de o preconceito fazer falhar o sentido da busca.

Quer-se dizer, para discutir os Deathly Hallows, a fada sininho, unicórnios cor-de-rosa invísiveis, fadas dos dentes, duendes com potes de ouro, feijões mágicos, etc.. tenho de partir do princípio que existem? Se eu achar que não existem tenho um preconceito? Essa parece conversa da Luna Lovegood...

PS: Sim, li o último Harry Potter nas férias.

Unknown disse...

Eu nasci ateia, como toda a gente, permaneço ateia e há muito poucas hipóteses de começar a acreditar em duendes, fadas, gnomos, elfos ou deuses.

Argumentos de autoridade só me convencem quando reconheço autoridade a quem os usa. Não há nenhuma autoridade num livro que mais parece um calhamaço dos horrores, com assassínios em massa por dá cá aquela palha.

Argumentos ad populum também não, parece que há milhões de pessoas que engolem aquela treta do Segredo e isso não o torna menos ridículo (e falso).

Ou alguma figura mitológica decide deixar de ser mitológica e fala comigo e exemplifica os seus poderes (o que me parece altamente improvável) ou morro ateia!

E o bule de chá do Russel quer dizer que o ónus da prova é de quem diz que há um bule de chá em órbita não sei onde, indetectável a todos os instrumentos humanos. Quem diz que se se não o detectamos não existe não tem de provar nada. Mesmo que o Segredo do bule de chá tenha sido escrito há milhares de anos por uns alucinados neolíticos e biliões e biliões tenham sido condicionados a acreditar na existência do bule de chá...

Anónimo disse...

Rita, o que se disse é que se se quer discutir a existência ou não de Deus se tem de partir do zero, ie, suspendar qualquer _convicção_ de existência ou inexistência do fulano (conceito).

Unknown disse...

Caro Kyriu:

Desde que nasci que tenho suspensas as minhas convicções em relação a deuses e unicórnios cor de rosa invísiveis. Como não os vejo nem há manifestações da sua existência isso para mim é suficiente :)

Nunca vi um crente suspender as suas crenças para discutir Deus. Normalmente usem essas crenças para "provar" a existência de Deus.

Só li um bocadinho do Plantinga e de Swinburne, não percebi tudo (falta-me bagagem filosófica) mas pareceu-me que se aceitarmos os argumentos deles temos de deitar no lixo, para ser coerentes, o conceito de Deus cristão.

Unknown disse...

O deus cristão e os restantes dos "livros", esqueci-me de acrescentar.

Os "livros" vão também recambiados para o caixote do lixo, mais trindades e o JC divino.

Em suma, argumentação filosófica à séria sobre Deus parece que põe no lixo as religiões.

Eu não tenho problemas com deuses, nem com unicórnios cor-de-rosa, só com as seitas dos seguidores de unicórnios cor-de-rosa invísiveis que acham que as "revelações" unicornianas são o supra sumo da batata e da verdade.

Os crentes não são sinceros quando dizem que só querem discutir a existência de deus. Eles querem é provar que a sua religião, com todos os condimentos, é a "verdadeira".

Depois de arranjarem um argumento filosófico para justificar a existência de deus acham que já é quanto baste para provar que o calhamaço dos horrores e os embustes das religiões em que acreditam são todas verdade.

Não há filosofia para justificar a que o calhamaço é a palavra de deus nem há filosofia que justifique a quantidade de dogmas e proibições que condimentam as religiões.

Por isso, esta discussão não leva a nada. Uma coisa são as religiões e outra deuses. Os crentes confundem as duas.

Anónimo disse...

Sobre os "relatos" do calhamaço dos embustes bíblicos

Historia Mensuel nº.698 : La Bible à l'épreuve de l' Histoire [dossier, com links para os artigos que o compõem]

Anónimo disse...

The Skeptic’s Annotated Bible refere, de forma estruturada, centenas de contradições no texto bíblico.

Links para análise dos versículos, por temas:

- Highlights
- Absurdity
- Injustice
- Cruelty and Violence
- Intolerance
- Contradictions
- Family Values
- Women
- Science and History
- Interpretation
- Good Stuff
- Prophecy
- Sex
- Language
- Homosexuality

O deus do AT e do NT, sendo o mesmo [salvo opinião em contrário de Marcion de Sinope, discípulo de Paulo], não passa de um "acto falhado" dos crentes: a distinção entre o Bem eo mal não necessita de qualquer "altíssimo ausente" .

Cristina Melo disse...

Quando alguns cientistas, entre os quais Richard Dawkins,face ao criacionismo, declararam que a igreja católica até aceitava a evolução, o Cardeal Schonborn, com autorização do papa Bento XVI,escreveu um artigo no New York Times a 7 de Junho de 2005.

url:http://www.millerandlevine.com/km/evol/catholic/schonborn-NYTimes.html


Com uma certa arrogância e até dando a entender que "Deus" era a causa/efeito sem a qual as coisas não existiam e, portanto, os outros até deviam ser burros face a tal princípio lógico do pensamento.
(Isto é a minha leitura.)


Entre outras coisas escreveu que
, de acordo com a Super Interessante que traduziu a frase:

«Qualquer sistema de pensamento que negue ou prescinda da evidência esmagadora da Criação na biologia é ideologia, não é ciência»


Só para lembrar aos que dizem que a discussão não leva a lado nenhum:

Discutir isto no Séc. XXI, em que um simples estudante comum é capaz de refutar facilmente os argumentos de uma autoridade como a um doutor da igreja ( daqueles cientistas cujo telescópio do Vaticano talvez lhe tivesse saído na farinha amparo).

Digo isto, porque, pelo menos no meu tempo de estudante Piaget, Gaston Bachelard, Galileu, Marx, Hegel eram obrigatórios no programa, por vezes também se referenciava Francis Bacon eram o suficente para mim para dizer que nem sequer Deus já é uma questão filosófica/científica, nem me interessa ir procurar Zeus no Olimpo, ou noutro lado qualquer.
Estes filósofos são o suficiente para mim para eu dizer que para mim Deus não é uma questão filosófica e, como Francis Bacon queria, ninguém pode escapar ao desenvolvimento nem da ciência, nem da filosofia e as palavras do cardeal mostram que está a precisar de ir à escola e reciclar-se.
Os tempos mudam, tinha uma professora que costumava dizer que eramos mais sortudos que no tempo de Napoleão, em que as pessoas não tinham tantas camisas limpas para vestir.


Ao contrário do Yeti, que se sabe onde procurar , "Deus" não me parece comparável. Acho infeliz a comparação com um Yeti.

Anónimo disse...

Corrigenda: o Bem e o mal

Anónimo disse...

SOBRE A MISOGÍNIA : da Grécia Antiga aos fundamentalistas religiosos

« Les femmes dans l’histoire »

L’Histoire a organisé un grand débat intitulé « Qui veut enfermer les femmes ? Du gynécée au voile islamique. », présidé par Michel Winock, avec Laurence Moulinier-Brogi, Michèle Perrot, Maurice Sartre et Lucette Valensi.

I - La Grèce antique

II - Le Moyen Age chrétien

III - L’islam

IV - L’apprentissage de la mixité

Cristina Melo disse...

Parece que o objectivo da discussão é que ninguém está a falar sózinho, nem a Rita, mesmo para os que não conhecem a Rita.
A "ciência" não me parece uma bengala comparada com o dogmatismo das crenças religiosas, parece antes um bom paliativo.
Suponho que é para isto que se ensina filosofia nas escolas, para as pessoas não poderem pensar por elas próprias, sem ir "comprar" os argumentos, inválidos de filósofos "mortos". Pelo menos, a Rita parece estar viva, assim como todos os que fizerem comentários, seja quais forem.

Anónimo disse...

Caro António Parente:

Existe uma certa dose de arrogância em acharmos que ninguém nos entende, quanto já toda a gente entendeu, e deu um passo em frente na discussão. As suas afirmações são inqualificáveis, como o "ter paciência e saber esperar", ou passar de tragédias históricas até à Costa da Caparica. Mas, por serem tão abjectas, tornam-se perfeitamente claras, se não quanto ao teor geral dos seus posts, pelo menos quanto à sua intenção. Já todos entendemos onde quer chegar.

E por falar em entendimento... Daniel de Sá: num post que fala precisamente da distinção entre um tratamento filosófico da problemática da religião, assimétrico com a discussão tipo "conversa de café", parece-lhe sensato atirar-nos à cara supostas confusões entre "infinito e ilimitado", "essência e multiplicidade", argumentos retóricos e lógicos, ou "absurdo e ilógico"? Penso que a inteção do post original, mas posso estar enganado, é precisamente que cegar pessoas sem qualquer formação filosófica com conceitos e argumentos desenhados a régua e esquadro não conduz a uma discussão frutífera. Portanto perdoe-me, mas parece-me que ou a sua participação é totalmente despropositada, ou é muita água para as margens estreitas do meu intelecto. Quem ler que ajuíze...

Depois destes semi-protestos, fica uma questão. Será que a existência de deus, enquanto entidade abstracta e desligada de qualquer religião, é um tema importante? Se admitirmos, como me parece de elementar bom senso, que a crença num deus concreto e associado a uma religião é matéria estrita de fé, então ficamos unicamente com a hipótese (ouso dizer, científica) da existência de um ou mais seres com características não necessariamente sobrenaturais, mas sim sobrehumanas, que se encontram relacionados com a génese do universo. E se esse existisse, a evolução normal do percurso da ciência não nos conduziria a ele, não se trataria de um deus "natural"? Sim, o papel da filosofia é também fazer-nos ponderar a razoabilidade de hipóteses, portanto admito que faz sentido reflectir sobre esta questão. Mas que influência directa na nossa vida tem esta discussão abstracta (repito, que não se relaciona com a veracidade de nenhuma religião concreta, essa sim com profundas implicações sociais)? Então, repito: será que a existência de uma entidade que identifiquemos com deus merece toda a importância que lhe conferimos?

RT

Anónimo disse...

Meu Caro RT
Respeito a sua opinião. Mas uma coisa que convinha que ficasse clara é a de que não se pode discutir simultaneamente, em termos filosóficos, a ideia de Deus em si mesmo considerado e a ideia do Deus da religião. Dou um exemplo. A dor é a maior das dificuldades para a aceitação de Deus como ser infinitamente bom. Isto já aqui foi dito várias vezes, e não há que escondê-lo. No entanto, a dor é uma prova mais da omnisciência do criador da vida. Faça-se um pequeno esforço de compreensão, e logo se perceberá que a dor e o medo são essenciais para a permanência da vida na Terra. Sem eles, os seres vivos alegremente se destruiriam a si mesmos ou deixariam destruir. Portanto, até aqui, o mais aflitivo da nossa condição humana não é problema filosófico para a aceitação da ideia de Deus. Estou convencido de que há muitos ateus que o são porque fazem uma inferência filosoficamente insustentável: há dor, logo Deus não existe. Este é um salto que não cabe na linha de um pensamento lógico. À filosofia compete deixar o problema para a religião, e não transformá-lo em argumento válido para a negação de Deus.
Ao contrário de Sartre, eu penso que a essência terá precedido a existência. Ou seja, Deus não criou um mundo porque lhe deu na gana que fosse assim, mas porque havia uma lógica na sua construção que ele respeitou. Mas isto demoraria muito tempo a explicar. No entanto, lembro algo que já por aqui disse: a filosofia não serve para resolver os problemas dos outros, mas para dar a ilusão a nós mesmos de que os resolvemos em parte.
Um abraço.
Daniel

Anónimo disse...

Caro Daniel:

Muito obrigado pelo seu comentário, que de facto primou pela clareza. Assim sim, podemos entender-nos e discutir civilizadamente.

A razão porque não concordo com a sua argumentação é a seguinte. Sim, a dor é essencial à vida. Mas se assumirmos a existência de um deus planeador (não se insulte por utilizar minúscula na palavra deus; acontece que sou ateu), então podemos pressupor que esse deus "escreveu a história" da vida a seu bel-prazer. Imagine que o Daniel era um escritor, mas não de um romance de papel e prateleira. Imagine que o Daniel, ao escrever, sabia que as suas personagens ganhavam vida. O Daniel, como ser humano que é, por certo não pretenderia ver as suas personagens passarem por dores e tormentas. Só poderia querê-lo se quisesse moldá-las à sua imagem e semelhança, pois é essa a sua experiência de vida e não saberia como desenhar um universo de plena felicidade. Mas ao fazê-lo estaria apenas a recriar as suas próprias características. Não seria propriamente "omnipotente", pois as regras do seu romance seriam as da sua vida, e tudo quanto assim não fosse daria um romance incoerente. Ou seja, o Daniel não estaria a ser um escritor "bom", apenas um escritor humano.

O que com isto quero dizer é que o problema da dor, e é nisto que divergimos, é difícil sim, pois um deus verdadeiramente omnipotente poderia ter desenhado o Mundo de outra forma, evitando a dor e mantendo as vantagens que a dor nos traz. Isso parece-nos inconcebível, mas se deus tudo pode, que dificuldade teria em fazer "sol na eira e chuva no nabal"? Pode argumentar que "isso tiraria a piada à vida", como já escutei antes. Mas se deus é Deus, não poderia ele ter concebido as leis do universo para que todos fossemos totalmente bondosos, e a "piada" se mantivesse?

São apenas algumas interrogações que deixo, caso tenham alguma validade. Mais uma vez cumprimento-o pela educação e elevação do debate.

RT

Anónimo disse...

Cristina Melo,

ainda me há-de explicar como é possível alguém pensar sobre si mesmo,em torno de problemas de natureza filosófica, sem conhecer os argumentos dos filósofos mortos, como disse?

Acaso a sra. poderá discutir seriamente a beleza de um quadro de Velasquez sem conhecer um pouco da tradição onde ele se inscreve?

Se leccionasse filosofia sem uma abordagem reflectinte sobre os argumentos clássicos, minha cara amiga, então eu não estava a leccionar filosofia nem a preparar jovens que adquiram instrumentos para pensar sobre si mesmos. Alguma vez um praticante de judo desenvolveu a técnica sozinho? Na filosofia é a mesma coisa, pensar sobre si mesmo é uma tarefa dificil que segundo os psicologos muitos adultos jamais chegarão a fazê-lo.

João Vieira

Anónimo disse...

Errata:
Onde se lê pensar sobre si mesmo, leia-se pensar por si mesmo.

Pensar sobre si mesmo, não faz sentido nenhum, neste contexto. Foi um lapso.

João Vieira

Anónimo disse...

Meu Caro RT
Não faço ideia de o que o meu caro amigo sabe a meu respeito, mas acertou em cheio nas suas suposições. Já tenho mais de uma dúzia de livros publicados, e nem imagina quanto me custa, no caso da ficção, fazer que as minhas personagens sofram. Um dos meus livros, por exmplo, tem como cenário Auschwitz. Muitas das cenas que lá narrei foram horrorosamente reais. Sofri mesmo ao escrever aquilo. Mas evitei, por exemplo, uma cena que para mim é o símbolo máximo da barbárie do século XX. Um dos guardas do campo encontrou uma criança judia com uma maçã na mão. Tirou-lhe a maçã, que guardou na algibeira, pegou na criança pelos pés, e desfez-lhe a cabeça atirando o miúdo contra o chão. Duas horas depois comeu a maçã calmamente.
Não tentarei dar explicações que ninguém tem. No entanto, posso apenas dizer como Guerra Junqueiro:
"Sim, creio que depois do derradeiro sono/ Há-de haver uma treva e há-de haver uma luz:/ Para o vício que expira ovante sobre um trono,/ Para o mártir que morre inerme numa cruz."
Creio que isto sempre será melhor do que nada.
Um abraço.
Daniel

Anónimo disse...

"A dor é a maior das dificuldades para a aceitação de Deus como ser infinitamente bom. Isto já aqui foi dito várias vezes, e não há que escondê-lo. No entanto, a dor é uma prova mais da omnisciência do criador da vida. Faça-se um pequeno esforço de compreensão, e logo se perceberá que a dor e o medo são essenciais para a permanência da vida na Terra. Sem eles, os seres vivos alegremente se destruiriam a si mesmos ou deixariam destruir."

A dor e o medo funcionam na Natureza como "sinais" de que algo podera' destruir ou afeectar negativamente o nosso organismo. A dor implica sofrimento. Deus, como ser omnipotente e absolutamente bom, deveria (por uma questao de logica) ter criado mecanismos eficientes e indolores que nos informassem desses perigos.

(alem disso, por que razao teria criado um universo onde existem perigos? e umm universo onde a sobrevivencia se baseia necessariamente em cadeias alimentares em que uns sao predadores e outros presas?).

Cristina Melo disse...

Primeiramente, teria de me explicar se foi isso que eu terei dado a entender, porque nem de perto nem de longe acertou.

Cristina Melo disse...

Primeiramente, teria de me explicar se foi isso que eu terei dado a entender, porque nem de perto nem de longe acertou.

Cristina Melo disse...

Todas as pessoas pensam, mesmo sem saber ler ou conhecer argumentos filosóficos, porque pelo que endendo da conversa daqueles que querem apenas discutir Deus com os que são profissionais em filosofia, aquilo que entende por filosofia é apenas teológico.
Mesmo assim,nem todas as pessoas têm de partir de argumentos existentes, aqueles que já existem não existem em linha evolutiva recta.

Anónimo disse...

Cara Cristina,

«Todas as pessoas pensam, mesmo sem saber ler ou conhecer argumentos filosóficos,"

Então e o que significa pensar? Eu também sei martelar numa pedra - fará de mim um escultor?

Naturalmente que as pessoas têm de partir de argumentos existentes. E é claro que os argumentos existem em linha evolutiva. Eu vejo que a Cristina é uma "progressista", acredita que o desenvolvimento científico obedece ao tempo histórico. E se a sua tese é verdadeira, então temos de aceitar que também os argumentos filosóficos de hoje revelam um progresso em relação aos clássicos. No entanto, há um problema, é que os argumentos desenvolvidos pelos filósofos actuais traduzem-se ou no aperfeiçoamento ou na rejeição dos argumentos clássicos.


João Vieira

Anónimo disse...

Esclarecimento:

"Todas as pessoas pensam, mesmo sem saber ler ou conhecer argumentos filosóficos,"

Este seu argumento é perigoso, além de insustentado.
Perigoso porque dele se extrairão as seguintes consequências:
1. todas as pessoas se auto-medicam, logo, todas são médicas.
2. todas as pessoas conhecem leis, logo, todas são advogadas.
3. todas as pessoas fazem cálculos, logo todas são matemáticas.

Insustentado porque é forçoso haver de antemao um esclarecimento do que é pensar. A Cristina está a referir-se ao pensamento calculador, lógico, abstracto, meditativo?

João Vieira

Anónimo disse...

"Todas as pessoas pensam, mesmo sem saber ler ou conhecer argumentos filosóficos,"

Porque é que isto é perigoso? Isto não acontece! As pessoas preferem que outros pensem por elas e isso também é válido para muitas que sabem ler e que conhecem argumentos filosóficos...

guida martins

Anónimo disse...

Este post é bem capaz de dar ideias a alguns crentes. Dar por exemplo a ideia de que uma pessoa sem formação filosófica não tem como rebater os argumentos religiosos, embora a questão só se ponha para algumas crenças: se eu (que não tenho formação) quiser rebater os argumentos das crenças New Age, "Uau", etc., não me são exigidas tantas credenciais, dando a ideia de que há crenças de 1ª e de 2ª.

guida martins

Cristina Melo disse...

Com respeito a tanta indignação,

A argumentação "lógica" que criou o Sr. João Vieira não tem lógica nenhuma para mim, quase como os argumentos teológicos, ou melhor têm uma lógica própria, por isso é que são teológicos.
Sobre as "ferramentas" que diz que está a usar para pôr os alunos as pensar, dos conhecimentos que lhes está a transmitir ou do modo como o faz, só os seus alunos poderão pensar e julgar por eles próprios, talvez até daqui a aguns anos; talvez nem lhes tenha sido útil.
A minha a afirmação citada não tem nada de perigoso, nem palavras são capazes de provocar "invernos atómicos" ( quase apenas só uma tempestade num copo de água), mas o que disse está certo, não é negociável.
Para mim Piaget , Bachelard , Marx e Hegel e Francis Bacon, por exemplo, foram úteis para toda a vida, e continuei a ouvir falar deles a a ler sobre eles .
Piaget e Bachelard como eu os "julgo", são tão úteis que merecem vidas a estuda-los.

Cristina Melo disse...

Cont.

E, só por si quem os estuda- a Piaget e Bachelard- e o modo como o faz tem também muita importância, ou a profundidade como o faz, o que eu tive muita sorte em ter um bom professor (e citando um provérbio chinês: "é tão difícil a um professor encontrar um bom aluno, como a um aluno encontrar um bom professor").

Cristina Melo disse...

um comentário isolado:

"a pessoa que vive só ou é um deus ou é uma besta, mas não é um homem " Aristóteles

Anónimo disse...

Cara Cristina, a sua argumentação peca por excesso. Entrou numa circularidade mórbida, não chegando, por isso, a responder às minhas perguntas que faziam todo o sentido no contecto da sua frase: "Todas as pessoas pensam, mesmo sem saber ler ou conhecer argumentos filosóficos,". Vir-me falar de Piaget e Bachelard não ajudaram a ficar convencido sobre o seu pensamento. Ainda bem que considera importante o estudo dos filósofos (Piaget não é um filósofo clássico, mas leccionava-se em filosofia pelo impacto que a sua epistemologia genética teve), ainda que teve um bom professor que ajudou a pensar por si mesma. Mas as minhas dúvidas permaneceram, se todos os seres humanos pensam, isso faz com que todos tenham legitimidade para considerarem os seus pontos de vista correctos?
À luz do relativismo epistemológico, todas as posições são válidas, desde que sejam logicamente aceitáveis e convincentes.

João Vieira

Anónimo disse...

Cristina, um pequeno presente:

«Para viver só, há que ser um animal ou um deus - diz Aristóteles. Falta o terceiro caso: importa ser um e outro ao mesmo tempo - filósofo.»
(Nietzsche, "Crepúsculo dos Ídolos)

E este , hein? :)

João Vieira

Cristina Melo disse...

A minha afirmação não tem nada de mórbido, o que é pensar ?

Bem, a minha resposta não o interessaria.
Se tivesse algum interesse na resposta já tinha procurado e saberia que é verdadeira.
Não gosto de vender banha da cobra a ninguém , isto é: acredite no que quiser.

Anónimo disse...

Elohim: nós, o deus majestático, sabendo o bem e o mal ...

[Gén, 1:26]

26 - E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; ...

[Gén, 3:22]

22 - Então, disse o SENHOR Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente,


Mas quantos deuses existem no ... CALHAMAÇO DOS EMBUSTES ?

Anónimo disse...

Nota sobre os "relatos" do calhamaço dos embustes bíblicos

Em 5 de Setembro de 2007, o site da revista francesa
Historia foi totalmente reestruturado.

Deixou de ser possível aceder aos índices completos de cada revista e aos textos dos dossiers temáticos .

Como sucedeu, nomeadamente, com a Historia Mensuel nº.698 : La Bible à l'épreuve de l' Histoire .

Resta o recurso ao motor de pesquisa .

Sugestão de temas: Bible, Jésus, reliques, etc.

La multiplication des reliques : un miracle !

Quatre vierges et d'illustres rejetons

Sociedade Civil

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