quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Polícia da Palavra

The Language Police: How Pressure Groups Restrict What Students Learn
Diane Ravitch
New York: Alfred A. Knopf, 2003

Um trecho do livro de Diane Ravitch sobre escolas recomendado pelo Desidério, nomeadamente aquele que lê «Uma sociedade que tolera o anti-intelectualismo em suas escolas favorece ao surgimento de uma cultura idiotizada que cultua celebridades e sentimentalismos em vez de conhecimento e sabedoria», despertou-me a curiosidade sobre esta historiadora da educação que trabalhou com governos republicanos (Bush pai) e democratas (Bill Clinton).

Depois de alguma investigação, comprei o «Polícia da Linguagem» que recomendo vivamente. O livro conta como décadas de submissão às estridentes exigências de grupos de pressão sortidos, sobretudo dos extremos do espectro político, intimidaram as autoridades escolares a banir dos curricula e as editoras a censurar dos seus manuais todos os textos passíveis do epíteto «ofensivo» por parte de qualquer minoria organizada.

Nas palavras da autora: «Decidi escrever este livro como uma forma de resolver um mistério. Depois de muitos anos a estudar a história da educação e a escrever sobre políticas de educação, descobri algumas coisas que me chocaram. Quase por acidente, tropeçei num protocolo elaborado e bem estabelecido de censura «beneficiente», adoptada sem fanfarras por editoras de livros didácticos, estados e pelo governo federal. (...) Não tinha percebido que os materiais educativos eram governados por um conjunto intrincado de regras que excluem linguagem e tópicos que possam ser considerados controversos ou ofensivos. Parte desta censura é trivial, parte é absurda e parte é de tirar o fôlego pelo seu poder de imbecilizar (to dumb down no original) o que as crianças aprendem na escola.

Inicialmente estas práticas começaram com a intenção de identificar e excluir qualquer declaração consciente ou implicita de preconceitos em relação a negros (African Americans no original), outras minorias raciais ou étnicas e mulheres. Estes esforços eram completamente razoáveis e justificados. Contudo, o que começou com propósitos louváveis evoluiu para uma política de censura surpreendemente abrangente e crescentemente bizarra que ultrapassou largamente os propósitos originais e actualmente excisa de testes e manuais escolares palavras, imagens, passagens e ideias que nenhuma pessoa razoável consideraria preconceituosas na acepção habitual da palavra».

Esta censura traduz-se na «bowdlerização» dos clássicos que não são simplesmente banidos. A bowdlerização, termo usado por Ravitch e que tem origem em Thomas Bowdler que na edição em 1818 da obra de Shakespeare expurgou «tudo que o pudesse causar justa ofensa à mente religiosa e virtuosa», não segue um conjunto de regras único porque nos EUA não há um ministério da educação centralizado. O ensino americano é regulado por «school boards», conselhos de educação locais cujos membros são escolhidos por eleições gerais. O «school board» elabora directivas que garantem que os manuais escolares ou exames não são «ofensivos» para os grupos de pressão mais activos no respectivo estado. Muitas vezes os próprios membros dos boards fazem parte de grupos de pressão.

Por exemplo, o presidente do Conselho de Educação do Kansas, o religious right Steve Abrams que aprovou em 2005 a introdução do neo-criacionismo nos curricula de ciências do estado e rejeitou ser a ciência uma explicação natural de fenómenos observáveis - aprovando a redefinição de ciência proposta pelo templo do neo-criacionismo, o Discovery Institute - considerou que alguns directores de escolas do seu estado, curiosamente os mesmos que se recusaram a vender religião por ciência, promoviam «pornografia como literatura». Recordando que as minhas aulas de Português mais memoráveis, com um daqueles professores que nos marcam, passaram pela dissecação literária do «1900» de Bernardo Bertolucci, tenho alguma dificuldade em perceber como alguém minimamente razoável pode considerar que, por exemplo, o relato de uma epidemia de Ebola é pornográfico, não obstante o título The Hot Zone (A zona quente).

Segundo Diane Ravitch, os culpados por este deprimente estado do ensino não são apenas os fundamentalistas cristãos de direita, essencialmente preocupados em banir tópicos (e livros) considerados imorais ou atentórios dos valores cristãos - como sejam os satânicos livros de Harry Potter - ou que sugiram que o Universo não foi criado como vem na Bíblia - em muitos estados são proibidos livros que sequer falem em dinossáurios porque sugerem a execrada evolução. A esquerda pós-moderna, com as tentativas já referidas pela Helena de «articular os processos educativos com uma sociedade marcada pela pluralidade radical de modelos, de opções de vida individuais e grupais», que se traduz num controle apertado de linguagem e imagens, tem uma quota parte muito significativa desta absurda «purificação» de textos literários. Pessoalmente tenho dificuldade em decidir qual é mais perniciosa, se a censura moral e religiosa, que espartilha a liberdade de pensamento, ou esta censura de palavras e de conceitos que não mutila a liberdade de pensamento porque nem sequer permite que esta se desenvolva.

Assim, todas as editoras de livros didácticos têm equipas de censores com directivas próprias que analisam minuciosamente os conteúdos, de forma a evitar qualquer espécie de controvérsia. As directivas são formuladas através de uma «combinação do fundamentalismo religioso de direita e do politicamente correcto de esquerda» informa-nos Ravitch. Estes grupos «pretendem criar uma nova sociedade, completamente inofensiva para todos; para lá chegar, é preciso uma boa dose de censura».

Mesmo a Grande Maçã não está imune a esta caça às bruxas, pelo menos no que a enunciados de exames diz respeito, como descobriu em 2002 Jeanne Heifetz. Aparentemente, o departamento de educação nova-iorquino considera(va) perfeitamente meritório mutilar as obras do Nobel Isaac Bashevis Singer ou as de Anton Chekhov para que nenhum aluno se sinta desconfortável com os textos sobre os quais incide a avaliação. Considerando que todas as passagens são «purgadas» de tudo o que possa «ofender» alguém, incluindo, para além das expectáveis «imoralidades» como nudez ou sexo, qualquer menção a raça, religião ou etnicidade, não percebo porque razão não baniram completamente toda a obra de Singer.

No livro, a autora exemplifica este processo censório de conteúdos considerados controversos, ofensivos, discriminatórios ou simplesmente perturbadores para os cérebros das crianças e adolescentes norte-americanos, com experiências próprias, a maioria hilariante não fora ser tão deprimente. Nas 32 páginas do Apêndice 1, com o sugestivo título «A glossary of banned words, usages, stereotypes, and topics», somos mimoseados com uma lista rídicula de temas a evitar, livros banidos e palavras proibidas, nas quais se incluem Deus e Diabo - expulsas em virtude de poderem ser discriminatórias ou ofensivas para os não cristãos. Na minha qualidade de não cristã, mais concretamente de ateísta, considero ofensiva a censura e não as palavras censuradas e concordo em pleno com Ravitch quando esta compara a limitação linguística, com a qual se pretende criar uma sociedade asséptica e inofensiva, ao newspeak de Orwell: «Não vês que o objectivo do Newspeak é cercear a liberdade de pensamento?»

No Index Librorum Prohibitorum das escolas norte-americanas, que inclui Huckleberry Finn de Mark Twain; Não matem a cotovia de Harper Lee; Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley; Adeus às Armas de Ernest Hemingway; O Diário de Anne Frank, As vinhas da Ira de John Steinbeck, Voando Sobre um Ninho de Cucos de Ken Kesey para além dos livros de Harry Potter, é absolutamente irónico encontrar o clássico de Ray Bradbury, o intemporal Fahrenheit 451. Para os poucos que não tenham lido o livro ou visto a fabulosa adaptação para a tela de François Truffaut (e a sua primeira realização a cores), Fahrenheit 451, a temperatura de combustão dos livros, é uma crónica anunciada do mistério que Ravitch desvenda magistralmente neste livro indispensável.

Bradbury, que daqui a 15 dias completará 87 anos, imagina uma América democrática em que as pessoa se voltaram contra os livros porque todos os livros ofendiam alguma «minoria». De início, as editoras apenas excisavam as passagens ofensivas, praxis com que foram reduzindo os livros a pouco mais que uma colecção de notas de rodapé. Quando praticamente ninguém lia livros, o estado passou a empregar bombeiros para queimar livros.

Em simultâneo com esta transição gradual para a não leitura imposta pelo politicamente correcto, ocorre a transição de um regime democrático para um sistema totalitário, completamente controlado pela «Família». O sucesso desta transição sem sobressaltos deve-se, especialmente, ao cuidado que a «Família» tem com a educação. Nas escolas, as crianças aprendem a não questionar, a não ler e aprendem sobretudo que livros são para queimar. Como consequência, impera uma paz social de plástico em que as pessoas vivem uma felicidade movida a comprimidos e dominada pela televisão, a «Família» virtual.

No livro e no filme seguimos o percurso de Montag, um bombeiro que, como todos os bombeiros da história, tem como missão queimar livros, e perseguir, prender e executar as pessoas encontradas na posse de livros - aliás a única manifestação de repressão nesta sociedade apática e ignorante.


Montag começa a pensar autonomamente após ser questionado por uma jovem da resistência sobre se alguma vez lera um dos milhões de livros que incinerara. Montag aprende a ler, começa a roubar livros transformando-se num intelectual, isto é, num marginal.

Cada vez que ligo a televisão, as telenovelas, concursos imbecis e imbecilizantes, big-brothers e quejandos, Maya's e demais vendedores de banha da cobra, fazem-me pensar na sociedade retratada em Fahrenheit 451. A diferença essencial é que não é necessário queimar livros, estes colectam pó nas prateleiras das livrarias, com excepções que são muitas vezes instrumentos que cumprem a mesma função dos «bombeiros» do mundo de Bradbury: a construção de um mundo «ideal» onde ser acéfalo e ignorante constitui a mais prezada virtude...

10 comentários:

Anónimo disse...

Quando li Fahrenheit 451 tive a impressão de estar a ler sobre um futuro muito distante e apenas possível.

Há muito tempo que não o releio, mas lembro-me bem dele. Hoje afigura-se-me que trata dum futuro próximo e provável.

Joana disse...

Pois,o problema é que as pessoas razoáveis não fazem grupos de pressão. Só os fanáticos se sentem ofendidos por haver gente que não lê pela mesma cartilha e se atreverem a escrever de acordo com o que pensam.

Acho que as pessoas normais e tolerantes se deviam organizar e pressionar as editoras para acabarem com a censura de grupos de pressão intolerantes.

A Palmira logo nos primeiros posts do DRN já tinha avisado que a Comissão de Liberdade Religiosa quer bowdlerizar os manuais escolares em Portugal. Agora que escolheram um octagenário senil para dirigir a comissão vai ser lindo vai! Estou mesmo a ver o Mário Soares que queria negociar com terroristas a dizer que sim senhora, os alucinados religiosos que se sentem ofendidos com os conteúdos dos nossos manuais têm razão e lá vamos ter uma polícia da palavra em Portugal.

Outra sobre censura cristã na "libertária" Holanda.

Para os que acham que o criacionismo não é uma ameaça na Europa aqui vai mais uma prova em contrário: o canal evangélico holandês Evangelische Omroep (EO) comprou os direitos exclusivos da série de David Attenborough "The Life of Mammals".

As inevitáveis referências à evolução e aos milhões de ano da Terra ofenderam a sensibilidade evangélica que tratou de bowdlerizar a série. Na emissão televisiva e nos DVDs. Como o OE tem a exclusividade da série os holandeses não poderão nunca ver a série sem censuras no seu país!

Joana disse...

O post no DRN sobre a bowdlerização dos manuais escolares que os fanáticos cá do quadrado querem fazer é O insustentável peso da religião

Palmira F. da Silva disse...

Olá Joana:

Quando começei a escrever o post tinha pensado incluir essa referência mas esqueci-me. Obrigado por recordares que a bowdlerização não é uma idiossincrasia americana e que por cá também temos grupos de pressão que pretendem o mesmo que os seus congéneres americanos.

E obrigado igualmente pela informação em relação à série de David Attenborough que vi na íntegra - sem censuras, claro. Vou ser se descubro mais informação e quiçá traduza o que descobrir num post :-)

JSA disse...

Relativamente ao caso EO, estive agora a ler umas coisas sobre o assunto. Para tal, se souberem holandês ou não se importarem de ler traduções babelfishianas, têm aqui o blog da professora que denunciou o caso (com o adequado nome de "Evolução).

Há, contudo, que estabelecer aqui algumas precisões relativamente aos holandeses.

Primeiro ponto: é verdade que a EO tem os direitos da comercialização dos DVD's, mas não é verdade que tenha exclusividade sobre o The Life of Mammals. Não é muito melhor, mas a verdade é que canais como o National Geographic ou Animal Planet passam no original e com legendagem em sinal aberto no cabo. Também é um facto que nunca dei com nenhum canal da EO em lado nenhum, pelo que imagino que ou tenham canais mais específicos ou a pagar.

Segundo: isto tem muito a ver com a personalidade holandesa e pouco a ver com qualquer ofensiva evengélica no país. Os holandeses têm das comunidades religiosas mais conservadoras do mundo (a mentalidade calvinista está ainda muito entranhada) e tais censuras não são estranhas. Por outro lado, de acordo com a wikipedia, a EO tem menos de 500 mil membros (o que num país de 16 milhões não é assim tanto).

Claro que é preocupante, mas embora seja um exemplo perfeito da bowdlerização, não será dos maiores problemas, uma vez que é dirigido essencialmente a uma fatia de pessoas que já cantam por aquela cartilha.

Palmira, se for precisa alguma ajuda na procura ou tradução de alguma coisa em holandês estou disponível para dar uma ajuda.

Oscar Maximo disse...

Mesmo sem censura nenhuma, existem assuntos tabu, para jornalistas e não só. Por exemplo:
Os ecologistas falam de "pegada humana" e dizem por exemplo que a "pegada humana" dos portugueses é DUAS Terras: ora, não era melhor simplesmente dizer, por outras palavras, que Portugal devia ter METADE da população ? (e a América 10x menos ?).
Ou supõem que numa sociedade consumista como a nossa há outra forma de diminuir a pegada? talvez o "green consumerism" (Georges Monbiot).

Pois é, o tema da população já é tabu, excepto para quem pensa que ela deve aumentar (economistas) !

JSA disse...

Caro oscar, o tema não é tabu. Ainda na semana passada a Economist (pouco suspeita de simpatias anti-economistas, como se imagina) escrevia sobre o assunto. O que muitas vezes está presente são dois factores: um é a própria ignorância científica dos jornalistas, de tal forma gritante que até dá pena ler algumas notícias. O outro é a ignorância e desinteresse científico da população em geral, que prefere ler uma qualquer notícia inócua sobre um qualquer assunto desinteressante (ou ler a programação televisiva) do que ler a página de ciências de um jornal. Por alguma razão até o público acabou com a secção de Ciência.

Quanto à questão da pegada humana, há aí essencialmente o problema de como a calcular. Há muitas pessoas que entendem que é maior e outras que entendem que é menor. Tudo por causa dos desquilíbrios locais. os americanos têm (isto sim, é consensual) a maior pegada humana do mundo. E vivem numa zona de enormes recursos naturais, oq ue significam que os gastam. Já os japoneses têm uma pegada também enorme, mas vivem numa zona de parcos recursos naturais. Para não falar nas populações que têm uma pegada pequena mas que vivem em abundância de recursos. Claro que a comercialização dos recursos redistribui isto tudo, mas também complica os cálculos.

Por outro lado há a questão tecnológica, que vai sempre permitindo que se consuma mais e ir gastando menos. É um pouco como a questão malthusiana aplicada ao ambiente. Não vamos no bom caminho, mas há tanta falta de consenso sobre o assunto que se torna escrever uma linha que seja a explicar tudo isto. Especialmente por parte de jornalistas que mal compreendem aquilo que escrevem.

McManager disse...

Um outro caso de politicamente correcto é a EuroNews.

Oscar Maximo disse...

A tecnologia vai sempre permitindo que se consuma menos ...

Exacto, ainda que haja limites. O problema est� em saber se fazemos uso dessa permiss�o.
Exemplo: muitos autom�veis actuais consomem mais que o Ford T (o 1* carro de produ�o em s�rie). Usamos o aumento de rendimento ( termodin�mico e mec�nico ) para aumentar a pot�ncia, permitido maiores velocidades e carros mais pesados. At� aos limites de velocidade actuais bastam 40CV (se a velocidade diminuir um pouco nas subidas, n�o � grande o preju�zo),
g�nero motor de Smart mas sem o turbo.

Certo, certo � que apesar da t�cnologia o consumo de energia vai sempre aumentando (ainda que desde 1980 tenha vindo a descer p/capita), nums porque querem passar a desenvolvidos, noutros porque, uma vez j� desenvolvidos,
os tais acr�scimos de tecnologia
n�o contribuem assim tanto, nem todos os dias.

Oscar Maximo disse...

Ainda sobre técnologia:
Quando aplicada ás chamadas energias alternativas, os resultados têm sido fraquinhos:

As alternativas encontradas, além de muitas dependerem de petróleo (só são alternativas enquanto não forem precisas), são tão alternativas como 5 é alternativa de 100.

Outras são autêntico barrete, patrocinado não sei por quem:
Biomassa, hidrogénio, células de combustivel...

Não há forma de substituir as enormes quantidades de energia fóssil presentemente usadas.

Sociedade Civil

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