terça-feira, 7 de agosto de 2007

Entrevista a Pierre-Gilles de Gennes


Parte da entrevista feita em 2004 por Patrícia Faísca e Pedro Patrício ao Prémio Nobel da Física Francês recentemente falecido. A "Gazeta de Física" publicou-a na íntegra.

O físico Pierre-Gilles de Gennes nasceu em Paris em 1932 e morreu em Orsay em 2007. Estudou na École Normale de Paris e doutorou-se em 1957; trabalhou no Centre de Energie Atomique (CEA) em Saclay, e na Universidade da California, Berkeley. Depois do serviço militar na Marinha Francesa, voltou a fazer investigação no CNRS, em Orsay, onde formou um grupo de supercondutores. Em 1971 tornou-se Professor no Collège de France. A partir de 1968, a sua investigação centrou-se sobretudo na matéria mole, tendo estudado os cristais líquidos. Trabalhou em física de polímeros e em problemas de molhagem e de adesão. Depois de receber o Prémio Nobel em 1991, muitas escolas e clubes de ciência em todo o mundo convidaram-no para falar sobre o seu trabalho de investigação e o papel da ciência.
Por ocasião de uma visita a Lisboa, a 18 de Junho de 2004, a convite do Centro de Física Teórica e Computacional da Universidade de Lisboa, tivemos oportunidade de o entrevistar.

Porque é que escolheu a física?


Tinha um problema de escolha entre ciências e letras. Gostava muito das duas. Mas tinha a impressão que nas letras na altura em que tive que escolher – depois da guerra – havia um laxismo um pouco estranho. Tal como nas artes havia quem atirasse um balde de tinta à parede e dissesse: “eu fiz uma obra de arte”, na literatura passava-se algo semelhante. Em ciências tinha a impressão de que, mesmo que alguém tivesse ideias delirantes – como “atirar um balde de tinta” –, dois ou três anos mais tarde saberíamos se tinha sido uma boa ou uma má ideia. Estamos num terreno onde existem certezas mais fortes e onde se vê melhor o que nós próprios fazemos. De alguma maneira, isso dá-nos uma maior segurança. Tenho uma filha que é escultora, e vejo que ela fica muito ansiosa porque, mesmo quando tem sucesso, ela não sabe se esse sucesso corresponde a uma moda ou se foi porque fez algo de verdadeiramente importante, que permanecerá. Nós em geral não fazemos coisas extraordinariamente importantes, mas ao menos sabemos bem em que medida essas coisas são úteis. Creio que foi isso que me empurrou para as ciências. Agora, porquê a física em vez de outra ciência? Na altura eu aprendia biologia, química, física... Estou a falar dos anos 50, que era um período em que a física conhecia uma explosão extraordinária. A física quântica começava a ficar compreendida, a física do estado sólido desenvolvia-se bem, a óptica estava muito sofisticada. Aparecia uma grande quantidade de coisas na física. Portanto, muito naturalmente, era a via a seguir nesse momento. Agora provavelmente teria sido diferente. Tenho ainda um filho de 26 anos que estuda física, mas tenho uma filha de 27 que estuda biologia.

Na Universidade aprendemos a beleza dos conceitos e aplicações formidáveis da ciência, mas o processo de aprendizagem parece ser diferente do da investigação. Um filósofo dizia que “antes da descoberta das coisas, existe a revelação da própria questão”...

Isso é provavelmente verdade. Com muita frequência, quando trabalhamos, não colocamos a boa questão e só depois de termos lutado com o problema durante algum tempo é que nos apercebemos que em vez dessa questão, deveríamos ter colocado uma questão mais simples, e depois uma questão ainda mais simples e finalmente chegamos à boa questão. A ideia de que a investigação consiste em colocar a boa pergunta é importante. Este é o meu ponto de vista pessoal, mas há ainda uma observação: vemos à nossa volta pessoas muito capazes, que se debruçam sobre problemas banais. E que por vezes desperdiçam as suas vidas com um problema sem interesse. A questão de decidir se uma pergunta é verdadeiramente boa passa também por saber se o assunto está maduro, se temos possibilidades de chegar a bom termo uma vez que 10 anos antes isso teria sido impossível e 10 anos depois o problema já se terá tornado trivial. É como observar um fruto e ver se ele está bom. A escolha do problema contém numa certa medida a noção da qualidade do fruto. Vi amigos meus passar anos, partes importantes das suas vidas, a tentar encontrar as soluções exactas do modelo de Ising a três dimensões, ou o modelo completo da turbulência, coisas deste tipo, e esses problemas não estavam amadurecidos. São exemplos de problemas mal escolhidos.

À medida que a ciência se torna cada vez mais especializada fala-se de trabalho interdisciplinar. Sabemos que é um defensor dessa investigação. Porque é que pensa que ela é tão importante? E como pode ser feita?

A noção de que hoje em dia um engenheiro químico deve saber um pouco de biologia, porque a certa altura o seu trabalho vai depender de conhecimentos específicos neste domínio e ele não poderá evoluir sem isso, parece-me óbvia. Agora, as dificuldades são muito claras. Se tivermos a tentação de ter uma espécie de educação global, que cobre tudo, então acabaremos por não saber nada bem e isso é muito perigoso. Por exemplo, eu diria que no passado uma grande parte da química-física era feita assim – por químicos que não eram suficientemente bons para fazer química, acabando por se mudar para a química-física, ou por físicos que não sendo suficientemente bons para fazer física, se mudaram para a fronteira. Este tipo de perigos existe e para os evitar tem que se ser muito inflexível. Por exemplo, quando eu estava na Escola Superior de Física e Química Industrial, em Paris, éramos muito inflexíveis em relação ao facto dos químicos saberem o suficiente de física e os físicos o suficiente de química. Tem que se ser muito exigente para evitar que tudo se transforme num folclore. Não quero dizer nomes, mas penso no caso particular de alguém de economia, que veio da física estatística, e que escreveu recentemente um livro sobre as crises dos mercados financeiros que é apenas bla, bla, bla. Ele menciona coisas que conhece das transições de fase e diz que essas coisas se transpõem para a economia, mas sem o justificar com argumentos rigorosos. Existe então um perigo. Interdisciplinaridade? Sim, precisamos dela claramente, mas temos que ter muito cuidado…

É sabido que é um proponente da proximidade entre investigação e indústria. Quem, na sua opinião, beneficia mais nesta relação? E qual o limite máximo para o nível de financiamento de fundos privados em centros de investigação?


Penso que devemos distinguir dois tipos de casos, um dos quais não gosto particularmente. Por vezes vê-se nas universidades que um determinado grupo dispõe de uma máquina poderosa, digamos um aparelho de ressonância nuclear, e uma empresa aparece e diz que fez este plástico, vidro, borracha, e pede ajuda para determinar algo no seu interior, e frequentemente vão entregar uma amostra sem sequer dizerem ou saberem exactamente o que contém. O grupo deve apenas dar uma caracterização da amostra. Acho isso muito mau, muito perigoso. É uma tentação muito grande quando se adquire um grande equipamento, porque facilmente o podemos utilizar de uma maneira errada. Por outro lado, o que realmente gosto é de pessoas que aparecem com uma nova ideia ou problema, discutimos e apercebermo-nos após algum tempo que talvez possamos colaborar. Nós vivemos esta situação em muitos problemas de adesão. Pudemos criar uma espécie de acção conjunta, em que um ou dois estudantes de doutoramento, ou um jovem do nosso laboratório se tornavam consultores da indústria. O tipo de situação em que se pretende realmente compreender um processo para o melhorar mais tarde, por exemplo, dá-me muito gozo. Existem alguns centros em França que apenas fazem ensaios para a indústria e eu vejo isso com alguma relutância.

Num país como Portugal, com praticamente nenhuma indústria hi-tech é difícil ligar a investigação ao sector privado. Pensa que isto é um problema inultrapassável para o financiamento da investigação em física?

Vou dar-vos um contra-exemplo que adoro, que se passou na Sérvia há já algum tempo, muito antes do fim da Jugoslávia. Tinha um bom amigo sérvio que estava a trabalhar em dispersão de neutrões e reactores e num dado momento Tito disse que não havia dinheiro suficiente, e que se os investigadores quisessem continuar a sua actividade teriam de encontrar financiamento localmente. Ora esta é exactamente a mesma situação que descreveram: não havia nenhuma grande indústria, etc. O que fez o meu amigo? Sabia que a indústria mais activa na Sérvia estava relacionada com o consumo de porcos. Então dirigiu-se às pessoas que matavam porcos, que comiam porcos, etc., e apercebeu-se que havia alguns problemas. Depois de matarem os porcos, o sangue entrava nos pulmões, e isso criava toda uma série de dificuldades, de infecções... E porque ele tinha sido treinado em baixas temperaturas - era bastante conhecedor de tubagens, etc., disse que pondo um mecanismo na traqueia dos porcos o problema seria resolvido. A ideia funcionou e a indústria pecuária aumentou o lucro, e o meu amigo recebeu o seu financiamento. Não era muito dinheiro, cerca de 25 000 dólares por ano para o seu laboratório, mas para a Sérvia era apreciável. Penso que este exemplo é muito bom. Na maior parte dos casos não devemos criticar o estado das coisas e dizer que não podemos fazer nada. Devemos, em vez disso, tentar fazer alguma coisa.

Na última década, testemunhámos um declínio do interesse da física nos alunos do liceu. Quais são para si as causas deste declínio? Porque é que a física perdeu o seu glamour para os jovens? Como pensa que esta situação poderia ser invertida?

Os meios de comunicação social enfatizaram alguns aspectos negativos da ciência, as suas repercussões na poluição do ambiente, os novos métodos genéticos de reprodução e as suas implicações éticas... Gerou-se algum receio, e podemos percebê-lo, existem boas razões para isso. Mas precisamos de persuadir os jovens do liceu justamente a lutar contra estas más utilizações da ciência. Não podemos simplesmente abandonar a ciência, precisamos de mais ciência para resolver estes problemas. Este é um dos lados da questão. O outro lado relaciona-se com um problema de civilização. Nos nossos países, neste momento os jovens são educados num meio em movimento constante: vêem imagens durante curtos intervalos de tempo, não estão treinados a fazer um esforço persistente; a existência da televisão e dos computadores, da Internet, não é uma grande ajuda, porque os jovens podem navegar na Net sem nada ver com atenção. A TV mostra-lhes um grande romance resumido numa hora e ficam com a impressão que o conhecem, o que não é verdade. Por todas estas razões, a nossa época não é favorável, sendo difícil lutar contra isso. Mas espero que, com alguns truques, se possa arranjar maneiras de as crianças não viverem inteiramente em frente aos ecrãs. Por exemplo, levando-as a descobrir a botânica ou a geologia no campo, etc.

… eles realmente gostam muito de sair…

Sim. Penso que é algo muito importante, não esquecendo o aspecto técnico. Disse uma vez em França que seria muito vantajoso para todas as crianças de 14 anos terem a oportunidade de passar o Verão por exemplo numa oficina, reparando carros. Os americanos têm algo parecido. Talvez não reparando carros, mas servindo em cafés ou outras coisas... Nós não temos este hábito. O Presidente da Câmara de Toulouse mostrou-se interessado quando fiz esta proposta. Pensou nisso, mas não conseguiu avançar por causa do sistema legal. Era impossível pôr uma criança de 14 anos numa acção de Verão destas por causa da protecção legal de menores... Por isso a ideia nunca funcionou.

Hoje escolheria de novo a física?

Penso que escolheria a biologia. Mas é difícil dizer, é uma questão virtual. Não creio que escolhesse letras. Dentro da biologia, escolheria claramente a neurofisiologia.

4 comentários:

Alexandre Sousa disse...

Habituei-me a passar por aqui, sempre que posso.
Convosco, a aprendizagem é mesmo até ao dia da grande viagem.

Um abraço

Anónimo disse...

"Na maior parte dos casos não devemos criticar o estado das coisas e dizer que não podemos fazer nada. Devemos, em vez disso, tentar fazer alguma coisa." Clap, clap, clap!

Rui leprechaun disse...

A 2ª questão é importantíssima!!!

A ideia de que a investigação consiste em colocar a boa pergunta é importante. [...] A questão de decidir se uma pergunta é verdadeiramente boa passa também por saber se o assunto está maduro, se temos possibilidades de chegar a bom termo...

That's it... this is it!!!

Por isso, o fruto só amadurece no tempo próprio, como ele também o diz.

E sim! Agora ele escolheria a neurofisiologia... because the time is NOW!!!

A descoberta dos mecanismos da consciência humana e da sua relação com a mente e o cérebro irão por certo marcar uma enorme viragem no modo como percebemos a Ciência e as outras formas de sondarmos a realidade, nomeadamente a Filosofia e Metafísica e a Religião.

Mas é necessário fazer a pergunta correcta, a mais simples!... e o "Abre-te Sésamo!" desvendará os tesouros ocultos nessa gruta...

...da sublime humana consciência...

Rui leprechaun

(...na sua intangível vera essência! :))

Anónimo disse...

Que entrevista encantadora!

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