Regressemos ao século XIII e situemo-nos num cenário fantástico. Um cavaleiro medieval volta das Cruzadas, onde esteve dez anos como combatente pela Fé, e encontra o seu país devastado por causa da fome, da doença e da guerra, a que não é alheia a exacerbação religiosa. Face ao terrível, o crente duvida da sua crença e, como acontece a muitos mortais, interroga-se sobre o sentido da existência. Quando a Morte lhe surge com a intenção de o levar, o cavaleiro ainda não encontrou a resposta e recusa-se a partir. Estrategicamente, para conquistar tempo, propõe-lhe um jogo de xadrez que ela aceita, convencida de que nunca perde. E, assim, se sentam frente a frente a Morte e o cavaleiro…
Este foi o primeiro filme de Ernest Ingmar Bergman que vi e que me prendeu à sua belíssima obra cinematográfica, da qual se tem dito que transmite uma visão sombria, complicada, atormentada, enigmática, trágica, angustiada, dilemática, solitária, dolorosa, temerosa da vida, sempre com Deus por perto. Tudo isso é verdade, mas ainda há nela subtileza, serenidade, cumplicidade, desejo e a felicidade possível.
Também se tem dito que essa obra está permanentemente ancorada na sua infância, onde sobressai um pai luterano demasiado rígido e uma mãe frágil e temperamental, como se retrata em “Fanny e Alexandre”. Pode ser que assim seja, mas esse viver que foi o seu, não seria suficiente sem o toque de génio que lhe permitiu explorar de modo único as eternas questões da Humanidade, as questões que transcendem tempos e lugares.
É pela contribuição na Sétima na Arte que se primeiramente se recorda Bergman, porém era como “homem de teatro” que ele se reclamava: o teatro, disse-o, era a sua vida. Compreende-se: estudou Arte e Literatura na Universidade de Estocolmo e foi aí que se interessou pelos clássicos: Shakespeare, Ibsen, Strindberg, entre outros. Foi também aí que dirigiu uma companhia de estudantes, não tendo deixado nunca mais os palcos afamados, onde encenou numerosas peças, que em número superam os filmes.
Dei-me hoje conta que, depois de uma longa vida, o “metteur em scéne” morreu. E, morreu, segundo uma das suas filhas, "calma e docemente". Afinal, de acordo com o que ele certa vez declarou: "Quando eu era jovem, tinha um medo terrível de morrer, mas agora penso na morte de modo compreensivo. É como uma luz que se apaga. Nada que deva causar muita preocupação."
O homem desassossegado com a vida partiu dela com algum sossego.
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2 comentários:
Helena
Obrigada pela belissíma mensagem de serenidade.
Ab. Fátima
Um casal de meia-idade numa ilha qualquer. Ele é tão pacífico que nem consegue matar uma galinha. Mas há uma guerra. A pouco e pouco o homem vai-se embrutecendo, até chegar a matar um soldado desarmado, depois de lhe ter roubado dois salvo-condutos que davam direito a sair da ilha numa barcaça. A fuga acontece por entre milhares de cadáveres boiando no mar. Todos os passageiros adormecem, excepto o casal de protagonistas, que fixam a vista no vazio. O timoneiro olha todos com um riso escarninho. Em seguida, deixa-se deslizar para fora do barco. O filme acaba. Pelo meio, fica uma frase de alguém que, referindo-se ao mundo e à humanidade, diz mais ou menos o seguinte: “Se eu é que tivesse feito isto, sentiria vergonha.”
Para mim, esta é uma dos mais belas e inquietantes obras de Ingmar Bergman: “A Vergonha”. A minha homenagem.
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